sábado, 26 de outubro de 2019

Stendhal - O Vermelho e o Negro: Primeira Experiência da Vida (XXVII)

Livro I 

A verdade, a áspera verdade. 
Danton 


Capítulo XXVII

PRIMEIRA EXPERIÊNCIA DA VIDA




O tempo presente, grande Deus, é a arca do Senhor! Ai de quem toca nela. 

DIDEROT




O LEITOR CONSENTIRÁ QUE forneçamos muito poucos fatos claros e precisos sobre essa época da vida de Julien. Não é que eles nos faltem, muito pelo contrário; mas o que ele viu no Seminário talvez seja demasiado sombrio para o colorido moderado que procuramos conservar nestas páginas. Os contemporâneos que sofrem com certas coisas não podem lembrar-se delas senão com um horror que paralisa qualquer outro prazer, mesmo o de ler uma história.

Julien não era muito bem-sucedido em suas tentativas de hipocrisia de gestos; teve momentos de desgosto e mesmo de desânimo completo. Não tinha êxito, e ainda por cima numa carreira mesquinha. O menor amparo exterior teria sido suficiente para restituir-lhe a coragem, a dificuldade a vencer não era muito grande; mas ele estava sozinho como um barco abandonado em meio ao ocea no. E mesmo que eu fosse bem-sucedido, ele pensava, ter de passar a vida inteira em tão má companhia! Glutões que só pensam na omelete com toicinho que vão devorar no almoço, ou padres Castanèdes, para quem nenhum crime é demasiado infame! Eles chegarão ao poder, mas a que preço, meu Deus!

A vontade do homem é poderosa, leio isso em toda parte; mas será ela suficiente para superar tal desgosto? A tarefa dos grandes homens foi fácil; por terrível que fosse o perigo, eles o achavam belo; mas quem pode compreender, exceto eu, a feiura do que me cerca?

Esse momento foi o mais penoso de sua vida. Ser-lhe-ia tão fácil alistar-se num dos regimentos da guarnição de Besançon! Podia ser professor de latim, precisava de muito pouco para sua subsistência! Mas, nesse caso, não haveria mais carreira, nem futuro para sua imaginação: seria a morte. Eis o detalhe de um de seus tristes dias.

Minha presunção felicitou-se tantas vezes por eu ser diferente dos outros jovens camponeses! Pois bem, vivi o bastante para ver que diferença engendra ódio, dizia-se ele certa manhã. Essa grande verdade acabava de ser-lhe mostra da por um de seus mais irritantes insucessos. Durante oito dias esforçara-se por agradar um aluno que tinha reputação de santidade. Caminhava com ele pelo pátio, escutando com submissão tolices de fazer dormir em pé. De repente, o tempo virou anunciando uma tempestade, ouviram-se trovoadas, e o santo aluno exclamou, repelindo-o de forma grosseira:

– Escute: cada um por si neste mundo, não quero ser queimado pelo raio; Deus pode fulminá-lo como um ímpio, como um Voltaire.

Com os dentes cerrados de raiva e de olhos abertos para o céu riscado de raios, Julien exclamou: Mereço ser afogado se durmo durante a tempestade! Tentemos a conquista de um outro pedante qualquer.

Tocou a sineta para a aula de história sagrada do padre Castanède.

A esses jovens camponeses aterrorizados com o trabalho penoso e a pobreza de seus pais, o padre Castanède ensinava, nesse dia, que o governo, criatura tão terrível aos olhos deles, só tinha poder real e legítimo em virtude da delegação do vigário de Deus na terra.

Tornai-vos dignos da bondade do papa pela santidade de vossas vidas, por vossa obediência, sede como um bastão nas mãos dele, acrescentava, e haveis de obter uma posição soberba na qual comandareis como chefes, longe de todo controle; uma posição inamovível, da qual o governo paga um terço dos vencimentos e os fiéis, formados por vossas prédicas, os dois outros terços.

Ao sair da aula, o sr. Castanède deteve-se no pátio.

– É exatamente de um cura que se pode dizer: tanto vale o homem, tanto vale a posição, ele dizia aos alunos que formavam um círculo a seu redor. Conheci, eu que vos falo, paróquias das montanhas cujos ganhos eram maiores que os de muitas da cidade. Além do dinheiro, havia frangos gordos, ovos, manteiga fresca e uma série de outros prazeres; lá o cura é o primeiro sem contestação: não há boa refeição sem que ele seja convidado, bem recebido etc.

Assim que o sr. Castanède voltou a seus aposentos, os alunos dividiram-se em grupos. Julien não estava em nenhum; foi deixado à parte como uma ovelha sarnenta. Em todos os grupos, via um aluno lançar uma moeda no ar; se este acertasse no cara ou coroa, seus colegas concluíam que ele em breve teria uma dessas paróquias de ricos proventos.

A seguir vieram as anedotas. Certo padre jovem, ordenado há apenas um ano, tendo oferecido um coelho à servente de um velho cura, conseguira ser designado para vigário e, poucos meses depois, tendo o cura morrido em seguida, veio a substituí-lo na boa paróquia. Outro conseguira fazer-se designar como sucessor na paróquia de um burgo bastante rico comparecendo às refeições do velho cura paralítico e cortando-lhe os frangos com elegância.

Como os jovens de todas as carreiras, os seminaristas exageram os efeitos desses pequenos expedientes que têm algo de extraordinário e impressionam a imaginação.

Preciso adaptar-me a essas conversas, dizia-se Julien. Quando os assuntos não eram salsichas e boas paróquias, falava-se da parte mundana das doutrinas eclesiásticas, das disputas entre bispos e governadores, entre prefeitos e párocos. Julien via aparecer a ideia de um segundo Deus, mas de um Deus bem mais temível e poderoso que o outro: esse segundo Deus era o papa. Dizia-se, mas em voz baixa e quando se tinha certeza de não ser ouvido pelo sr. Pirard, que, se o papa não se dá o trabalho de nomear todos os governadores e prefeitos da França, é que confiou esse cuidado ao rei da França, nomeando-o filho mais velho da Igreja.

Foi nessa época que Julien acreditou poder tirar proveito de seu conhecimento do livro Do papa, do sr. de Maistre. Em verdade, ele surpreendeu seus colegas; mas isso foi ainda pior. Eles não gostaram que alguém expusesse melhor que eles suas próprias opiniões. O sr. Chélan fora imprudente em relação a Julien como o era em relação a si mesmo. Tendo lhe ensinado o hábito de raciocinar com exatidão e de não se contentar com palavras vãs, esquecera de dizer-lhe que, numa pessoa pouco estimada, esse hábito é um crime: pois todo bom raciocínio ofende.

Assim, dizer bem foi, para Julien, um novo crime. De tanto pensarem nele, os colegas conseguiram exprimir numa palavra todo o horror que ele lhes inspirava: apelidaram-no MARTIM LUTERO, principalmente, diziam, por causa da lógica infernal que o torna tão orgulhoso.

Vários jovens seminaristas tinham uma aparência mais viçosa e podiam ser considerados como rapazes mais bonitos que Julien; mas ele tinha as mãos brancas e não podia ocultar certos hábitos de delicado asseio. Isso não era uma vantagem na triste casa onde a sorte o lançara. Os camponeses sujos no meio dos quais vivia declararam que ele tinha costumes muito relapsos. Tememos fatigar o leitor com o relato dos incontáveis infortúnios do nosso herói. Por exemplo, os mais robustos de seus colegas quiseram adquirir o hábito de espancá-lo; ele foi obrigado a armar-se de um compasso de ferro e a anunciar, por sinais, que faria uso dele. Num relatório de espião, os sinais não podem figurar tão vantajosamente quanto as palavras.


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6 Henri Grégoire, bispo que participou da Revolução Francesa, contribuindo para a união do baixo clero. (N.T.) 
7 Ver no museu do Louvre, François, duque de Aquitânia, depositando sua couraça para vestir o hábito de monge.
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ADVERTÊNCIA DO EDITOR

Esta obra estava prestes a ser publicada quando os grandes acontecimentos de julho [de 1830] vieram dar a todos os espíritos uma direção pouco favorável aos jogos da imaginação. Temos motivos para acreditar que as páginas seguintes foram escritas em 1827.


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Henri-Marie Beyle, mais conhecido como Stendhal (Grenoble, 23 de janeiro de 1783 — Paris, 23 de março de 1842) foi um escritor francês reputado pela fineza na análise dos sentimentos de seus personagens e por seu estilo deliberadamente seco.


Órfão de mãe desde 1789, criou-se entre seu pai e sua tia. Rejeitou as virtudes monárquicas e religiosas que lhe inculcaram e expressou cedo a vontade de fugir de sua cidade natal. Abertamente republicano, acolheu com entusiasmo a execução do rei e celebrou inclusive a breve detenção de seu pai. A partir de 1796 foi aluno da Escola central de Grenoble e em 1799 conseguiu o primeiro prêmio de matemática. Viajou a Paris para ingressar na Escola Politécnica, mas adoeceu e não pôde se apresentar à prova de acesso. Graças a Pierre Daru, um parente longínquo que se converteria em seu protetor, começou a trabalhar no ministério de Guerra.

Enviado pelo exército como ajudante do general Michaud, em 1800 descobriu a Itália, país que tomou como sua pátria de escolha. Desenganado da vida militar, abandonou o exército em 1801. Entre os salões e teatros parisienses, sempre apaixonado de uma mulher diferente, começou (sem sucesso) a cultivar ambições literárias. Em precária situação econômica, Daru lhe conseguiu um novo posto como intendente militar em Brunswick, destino em que permaneceu entre 1806 e 1808. Admirador incondicional de Napoleão, exerceu diversos cargos oficiais e participou nas campanhas imperiais. Em 1814, após queda do corso, se exilou na Itália, fixou sua residência em Milão e efetuou várias viagens pela península italiana. Publicou seus primeiros livros de crítica de arte sob o pseudônimo de L. A. C. Bombet, e em 1817 apareceu Roma, Nápoles e Florença, um ensaio mais original, onde mistura a crítica com recordações pessoais, no que utilizou por primeira vez o pseudônimo de Stendhal. O governo austríaco lhe acusou de apoiar o movimento independentista italiano, pelo que abandonou Milão em 1821, passou por Londres e se instalou de novo em Paris, quando terminou a perseguição aos aliados de Napoleão.

"Dandy" afamado, frequentava os salões de maneira assídua, enquanto sobrevivia com os rendimentos obtidos com as suas colaborações em algumas revistas literárias inglesas. Em 1822 publicou Sobre o amor, ensaio baseado em boa parte nas suas próprias experiências e no qual exprimia ideias bastante avançadas; destaca a sua teoria da cristalização, processo pelo que o espírito, adaptando a realidade aos seus desejos, cobre de perfeições o objeto do desejo.

Estabeleceu o seu renome de escritor graças à Vida de Rossini e às duas partes de seu Racine e Shakespeare, autêntico manifesto do romantismo. Depois de uma relação sentimental com a atriz Clémentine Curial, que durou até 1826, empreendeu novas viagens ao Reino Unido e Itália e redigiu a sua primeira novela, Armance. Em 1828, sem dinheiro nem sucesso literário, solicitou um posto na Biblioteca Real, que não lhe foi concedido; afundado numa péssima situação económica, a morte do conde de Daru, no ano seguinte, afetou-o particularmente. Superou este período difícil graças aos cargos de cônsul que obteve primeiro em Trieste e mais tarde em Civitavecchia, enquanto se entregava sem reservas à literatura.

Em 1830 aparece sua primeira obra-prima: O Vermelho e o Negro, uma crónica analítica da sociedade francesa na época da Restauração, na qual Stendhal representou as ambições da sua época e as contradições da emergente sociedade de classes, destacando sobretudo a análise psicológica das personagens e o estilo direto e objetivo da narração. Em 1839 publicou A Cartuxa de Parma, muito mais novelesca do que a sua obra anterior, que escreveu em apenas dois meses e que por sua espontaneidade constitui uma confissão poética extraordinariamente sincera, ainda que só tivesse recebido o elogio de Honoré de Balzac.

Ambas são novelas de aprendizagem e partilham rasgos românticos e realistas; nelas aparece um novo tipo de herói, tipicamente moderno, caracterizado pelo seu isolamento da sociedade e o seu confronto com as suas convenções e ideais, no que muito possivelmente se reflete em parte a personalidade do próprio Stendhal.

Outra importante obra de Stendhal é Napoleão, na qual o escritor narra momentos importantes da vida do grande general Bonaparte. Como o próprio Stendhal descreve no início deste livro, havia na época (1837) uma carência de registos referentes ao período da carreira militar de Napoleão, sobretudo a sua atuação nas várias batalhas na Itália. Dessa forma, e também porque Stendhal era um admirador incondicional do corso, a obra prioriza a emergência de Bonaparte no cenário militar, entre os anos de 1796 e 1797 nas batalhas italianas. Declarou, certa vez, que não considerava morrer na rua algo indigno e, curiosamente, faleceu de um ataque de apoplexia, na rua, sem concluir a sua última obra, Lamiel, que foi publicada muito depois da sua morte.

O reconhecimento da obra de Stendhal, como ele mesmo previu, só se iniciou cerca de cinquenta anos após sua morte, ocorrida em 1842, na cidade de Paris.



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Leia também:

Stendhal - O Vermelho e o Negro: O Primeiro Adjunto (XVII)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: Um Rei em Verrières (XVIII)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: Pensar faz sofrer (XIX)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: As Cartas Anônimas (XX)
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Stendhal - O Vermelho e o Negro: Maneiras de Agir em 1830 (XXII - 1)
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Stendhal - O Vermelho e o Negro: O Seminário (XXV)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: O Mundo, Ou o Que Falta ao Rico (XXVI)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: Primeira Experiência da Vida (XXVII)
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