domingo, 27 de outubro de 2019

O Brasil Nação - v2: § 69 – Mais Dejanira... e nova túnica - Manoel Bomfim

Manoel Bomfim


O Brasil Nação volume 2



SEGUNDA PARTE 
TRADIÇÕES



À glória de
CASTRO ALVES
Potente e comovida voz de revolução


capítulo 8



A Revolução Republicana



§ 69 – Mais Dejanira... e nova túnica




Este é um dos casos em que a forma é tudo, e inclui a própria substância. Aproveitando em tal excesso a manifestação dos militares, os republicanos viciaram a sua obra, essa propaganda que vinha de decênios, e transformaram a intervenção do Exército, de legítimo apoio à revolução republicana, em absorção dela com o motivo de zelos, que, evidentemente, eram excessivos. Não se condena o 7 de Abril porque a tropa, toda, lhe garantira o êxito, juntando-se à massa popular em protesto no campo de Sant’Ana, preferindo, nessa atitude, o Brasil já levantado, ao monarca que ultrajava a nação. A agitação de rua vinha de dias; foram para ela os políticos civis, que nunca mais abandonaram o controle da ação. Não há, nisto, nada de semelhança com esse 15 de novembro, em que os oficiais, já em contestação com o poder civil, por motivo de interesses de classe, levantaram-se, e abatem o regime, para resultados que tiveram de ser consagrados como a “República proclamada pelo Exército e a Marinha, em nome da Nação”. De fato, os propagandistas entregaram-se aos oficiais amotinados, que se substituíram à propaganda, para depois se substituírem à nação. Foi, na concretização dos desenvolvimentos, o erro inicial, erro de essência, com o que se desviou, desde logo, a República, para a sequência de faltas, prepotências, deturpações, desastres, crimes, misérias... que tem sido a vida mesma do regime.

Destarte, englobada num levante de quartéis, a proclamada República foi, com aquela marcha de regimentos para o indisputado triunfo, um surdo estalar em que se abafou a mal-alinhavada propaganda. O chefe do Governo vencido deu, na emergência, o ótimo da ação que lhe era própria: foi altivo; acreditou, como sempre, nos seus gestos, repetiu ordens alheias à realidade, falou em patriotismo... sem que isto lhe aproveitasse, para ouvir de Floriano – que os seus galões os ganhara no serviço da pátria, não no de ministros. A réplica mais própria foi a de Deodoro, a restringir os motivos do movimento às queixas que o Exército tinha do mesmo Ouro Preto!... Subtendido que a República estava na conquista do poder pelo Exército, se bem que o nome do movimento fosse proclamação da República, esqueceram-se completamente de dizê-lo de público: por fora da coisa, ao romper do dia, e às três horas da tarde, andava um propagandista consciente da significação daquilo, Aníbal Falcão, a procurar José do Patrocínio, para que a Câmara Municipal, instituição popular, desse o tom civil e popular à revolução. Com isto concordaram muito dignamente os militares, que se tinham esquecido do caso; e assim se fez. E o trono, por onde andava?... E todos que, ao pé dele, se diziam os representantes da nação?... Na facilidade do triunfo, foi tudo deixado de lado, como já inexistente. Alguns dos que não tinham ainda compreendido bem os fatos, chamaram-no, e Pedro II pôde vir, quase só, mas tranquilamente garantido, pela mesma facilidade da vitória republicana. Foi para o paço da cidade, onde, também tranquilos e garantidos, o procuraram alguns dos contumazes resolvedores de crises políticas. Estavam fora do mundo: concederam que o ministério não podia continuar... já estava demitido, e percorreram a lista dos possíveis chefes do Governo... Então, lembraram-se de que era indispensável a aquiescência do chefe militar no movimento, e trataram de encontrá-lo. Ouro Preto, deixado livre... no momento, como todos os outros considerados monarquistas, também foi ao paço: “Ouro Preto, sendo chamado, insistiu para a sua demissão, que obteve com muita dificuldade, retirando-se em seguida para a casa do Barão de Javary, onde foi preso...” tal o consigna a insuspeita imparcialidade do Padre Galante... Partiram os mensageiros do trono à procura de Deodoro, que conforme bem o sabia o mesmo trono, já havia organizado o seu ministério. Voltavam-se para ele, e procuraram-no, como outrora, na noitada de 6 de abril, andara o outro em busca de Vergueiro, para que viesse salvar o primeiro Império. Agora, a salvação possível, e certamente aceita, era a de submeter-se o poder imperial à espada do general revoltado... Ainda assim, não foi possível: Deodoro só foi alcançado à noite, quando, cansado de fazer a República, ia recolher-se. Nem quis receber o recado, que vinha em nome de Saraiva, e mandou: “Diga ao Saraiva que é tarde...” Quando a resposta chegou ao paço já encontrou nos raros fiéis, o inteiro desalento. No ambiente, quase vazio, as fisionomias descoravam com as últimas e vagas esperanças dissipadas. Estava o paço guardado por tropas que apenas exigiam – pedissem licença para entrar. E entravam cada vez menos: quando se fechou o dia 15, não havia mais monarquistas no Brasil. O trono caiu no abandono proporcional à miséria da alma dos dirigentes. Dos milhares que andavam a fazer a política imperial não houve um gesto de defesa, nem sequer uma voz de protesto... Não houve, da parte deles, nem olhares de simpatia para a criatura que só, e dignamente, expiava uma culpa que era deles mesmos. Os que não foram ignóbeis logo, ali, na hora da vitória da revolução, foram insignificantes e incaracterizados. Realmente digno, recatadamente nobre, só se destacou o imperante destronado. Para que não parecesse batalha sem inimigos, o governo provisório consagrou a vitória, e todos os seus riscos, prendendo três adversários, depois demonstrados sem perigo para as instituições. Além destes, deportados, expatriaram-se Muritiba e Nioac, pela insignificante razão de serem fâmulos do paço.

Era, a monarquia, coisa assim abandonada? Não. Enquanto existiu, afora os republicanos que persistiam republicanos, todos os que se julgavam com direito a ser voz na política, diziam-se monarquistas, com todas as veras. E defenderam explicitamente o trono, enquanto isso lhes pareceu útil e sem riscos. Logo que se pronunciou a propaganda republicana (1872), solenemente se proclamou a criação de um guarda suíssa para a defesa das instituições. Defesa armada, como se vê, que eles não compreendem outra. Havia a propaganda republicana, chilra, banal, pobre... em todo caso, uma oposição de princípios aos da monarquia; lógicos e sinceros, os que desta viviam, em defesa dela, deviam contrapor à propaganda republicana, outra propaganda... Nunca o fizeram. Apelaram, bestialmente, para a contradita dos empastelamentos e da bordoada, como os sucessores ainda hoje o fazem. No segundo ano de vida do jornal de propaganda “A República”, atacaram-no, para tais efeitos, que o Sr. P. da Silva teve de consignar o sucesso:


Vários adeptos da nova doutrina (República) fundaram
na capital uma tipografia e publicaram um jornal...
Amedrontou-se o ministério... Resolveu empregar a violência para combater a propaganda: Magotes de pessoas que o público acreditou instigados pela polícia, assaltaram uma noite a tipografia e a sala da redação, rebentaram máquinas... quebraram... destruíram... retiraram-se pacificamente... De todos os cidadãos sensatos partiram acusações contra a polícia. Nos periódicos e nas câmaras ecoaram brados, e soube-se igualmente que o imperador reprovara o ato. Defendeu o ministro da justiça os agentes da polícia... ordenou investigações e inquéritos... que não deram resultado... [31]


[31] Gonzaga Duque, “Revoluções Brasileiras”, pág. 256; P. da Silva, “História do Império”, I, II, pág. 163.


Tudo faz crer que Pedro II tenha condenado a façanha: com toda razão, ele confiava mais no liberalismo dos seus papos de tucano, do que nos arreganhos dos que, na hora decisiva, o abandonariam ignobilmente – ratos a passar em debandada para o novo chaveco... Aderiram todos à República, mesmo os que de modo nenhum se podiam ajustar a ela, qualquer que fosse. Passaram-se, como se passariam para outra coisa os que hoje incorporam a substanciosa República de que vivem. Ontem, ainda havia alguns sinceros, para permanecerem republicanos em face da monarquia pronta a recebê-los; hoje, desses tiranetes, reles gozadores, todos ostensivamente autoritários, não há um com a coragem lógica de pronunciar-se pelo regime da franca e exclusiva autoridade: dizem-se todos republicanos presidencialistas, na medida em que a República os enche. Amanhã... serão parlamentaristas, absolutistas, fascistas, ou sovietistas... se houver nominal parlamentarismo, absolutismo, fascismo, ou comunismo, que os queira.

Não podia ser de outra forma: na República, como no Império de 1822, e no parlamentarismo de 1838, enquistou-se tudo, das respectivas políticas condenadas, combatidas e vencidas revolucionariamente. Em 1888, a Câmara Municipal de São Borja foi suspensa e processada, por haver proposto que se consultasse a Nação quanto à sucessão do trono na pessoa da Princesa Isabel... No ano seguinte, os processadores estavam com a ditadura militar que sucedera ao trono. E é indispensável insistir no acentuar dessas misérias, porque tal foi o vírus em que se corrompeu, definitivamente, a República já malnascida. O segundo Império se realizou em Pedro II, realmente o mais digno, nele, e que mais sofreu dos serviços dos seus políticos do que de toda a campanha republicana. Iam com ele, servis, abjetos, sem um protesto eficaz contra a absorção que ele fazia da soberania da nação. Tornavam indispensável tal absorção. Prestavam-se, no seu serviço, até a crimes, como a guerra do Paraguai... e quando despojados das  graças, tornavam-se insidiosos adversários, eximindo-se de todas as culpas, implacáveis, a abater o trono sob a acusação do poder pessoal. E como se tanto não bastasse para incompatibilizar o mesmo trono com o Brasil essencialmente democrata, eles o submetiam ao ridículo, em que se dissolviam todos os prestígios, de que a espúria instituição tanto carecia. Vinham cá para fora, a ampliar cacoetes e revelar, desmedidas, fraquezas e deslealdades, que isolavam de mais em mais a coroa da nação. Feita com eles mesmos, a República tinha que ser a espúria oligarquia em que se depravou o regime. Com dois séculos e meio de influxo bragantino, conduzido invariavelmente por um Estado em que toda a miséria dos dirigentes – colônia e Império se refazia de crise em crise, a revolução para a República tinha que ser integral substituição de tudo – ideias, programas, homens e processos; renovação, com reforma bem profunda, e de que emergisse, finalmente, a alma do Brasil essencial – sentimentos e voz de um povo que nasceu e se fez através da implacável e pérfida espoliação de todo o indispensável à consciência humana; alma que apenas tem sofrido e gemido, para a inesgotável tristeza da sua lira, festa de infantil melancolia, soluços sob um sol radiante, desânimo sem luta ostensiva.

Foi muito fácil a República, porque os que lhe fechavam o caminho nada significavam; mas guardavam esses caminhos por onde ela tinha de prosseguir, e, na essência das qualidades e dos recursos próprios, eles, que nada haviam dado para a defesa das instituições de onde vinham; eles, que já tinham criado as condições – questões militares, escravocratismo... eles, que deram os motivos imediatos para a condenação do trono; eles, em quem se encontrava a ideologia da política nacional, deram os moldes da insignificante propaganda republicana; e, na hora, vieram em enxurrada para a mesma República – para o mandonismo abjeto de sempre, mais abjeto, ainda, pois que lhe falta o critério fictício do mandão supremo.

Desta sorte, todas as insuficiências e misérias da República têm a mesma razão: as misérias e insuficiências de sempre; a péssima qualidade da classe dirigente, nunca apurada, nunca renovada, desde a penúria mental dos primitivos coimbrenses.


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"Manoel Bomfim morreu no Rio aos 64 anos, em 1932, deixando-nos como legado frases, que infelizmente, ainda ecoam como válidas: 'Somos uma nação ineducada, conduzida por um Estado pervertido. Ineducada, a nação se anula; representada por um Estado pervertido, a nação se degrada'. As lições que nos são ministradas em O Brasil nação ainda se fazem eternas. Torcemos para que um dia caduquem. E que o novo Brasil sonhado por Bomfim se torne realidade."


Cecília Costa Junqueira



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Bomfim, Manoel, 1868-1932  
                O Brasil nação: vol. II / Manoel Bomfim. – 1. ed. – Rio de Janeiro: Fundação Darcy Ribeiro, 2013. 392 p.; 21 cm. – (Coleção biblioteca básica brasileira; 31).


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Leia também:

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