quarta-feira, 1 de abril de 2020

Susan Sontag - Estados Unidos, visto em fotos, de um ângulo sombrio (03)

Sobre fotografia

Ensaios


Susan Sontag



ESTADOS UNIDOS, VISTO EM FOTOS, DE UM ÂNGULO SOMBRIO



continuando...



“Sinto-me muito pouco atraída a fotografar pessoas conhecidas ou mesmo temas conhecidos”, escreveu Arbus. “Eles me fascinam quando nunca ouvi falar a seu respeito.” Por mais que ela se sentisse atraída pelo estropiado e pelo feio, jamais teria ocorrido a Arbus fotografar bebês de talidomida ou vítimas de napalm — horrores públicos, deformidades com associações sentimentais ou éticas. Arbus não estava interessada em jornalismo ético. Escolhia os temas que ela pudesse acreditar terem sido encontrados por acaso, em seu caminho, sem nenhum valor associado a eles. Trata-se necessariamente de temas aistóricos, uma patologia antes privada do que pública, vidas antes secretas do que expostas.

Para Arbus, a câmera fotografa o desconhecido. Mas desconhecido para quem? Desconhecido para alguém protegido, que aprendeu a manifestar reações moralistas e prudentes. Como Nathanael West, outro artista fascinado pelos deformados e mutilados, Arbus proveio de uma família judia de grande desenvoltura verbal, obsessiva com a saúde, propensa à indignação e rica, para quem os gostos sexuais minoritários situavam-se muito abaixo do limite da percepção e para quem correr riscos era desprezado como mais uma insanidade dos góis. “Uma das coisas que me fizeram sofrer na infância”, escreveu Arbus, “foi que nunca experimentei a adversidade. Vivia confinada numa sensação de irrealidade. [...] E a sensação de estar imune era, por absurdo que pareça, dolorosa.” Experimentando um mal-estar bem parecido, West, em 1927, empregou-se como recepcionista noturno num hotel sórdido em Manhattan. O modo de Arbus procurar experiências e, portanto, de obter uma sensação de realidade era a câmera. Por experiência, entendia, se não a adversidade material, pelo menos a adversidade psicológica — o choque da imersão em experiências que não podem ser belas, o encontro com o que é tabu, cruel, mau.

O interesse de Arbus por anomalias exprime um desejo de violar sua própria inocência, de solapar sua sensação de gozar um privilégio, dar vazão à sua frustração por estar a salvo. Além de West, a década de 1930 oferece poucos exemplos desse tipo de angústia. De modo mais típico, ela faz parte da sensibilidade de uma pessoa educada, de classe média, que se torna adulta entre 1945 e 1955 — uma sensibilidade que viria a florescer justamente na década de 1960.

A década do trabalho sério de Arbus coincide com os anos 60 e deve muito a eles, a década em que as anomalias vieram a público e se tornaram temas de arte aprovados e seguros. Aquilo que na década de 1930 era tratado com angústia — como nos romances Senhorita Corações Solitários e O dia do gafanhoto — passaria a ser tratado, na década de 1960, com total desfaçatez, ou com franca satisfação (nos filmes de Fellini, Arrabal, Jodorowsky, em quadrinhos marginais, em espetáculos de rock). No começo dos anos 60, a próspera Feira de Aberrações em Coney Island foi proibida; fez-se pressão para pôr abaixo a zona de prostituição e de travestis do Times Square a fim de cobri-la com arranha-céus. À proporção que os habitantes dos submundos discrepantes são expulsos de seus territórios restritos — banidos como indecorosos, uma inconveniência pública, obscenos ou apenas não lucrativos —, eles passam cada vez mais a infiltrar-se conscientemente como um tema artístico, adquirindo certa legitimidade difusa e uma proximidade metafórica que produz mais distância ainda.

Quem poderia ter apreciado melhor a verdade das anomalias do que alguém como Arbus, que era, por profissão, uma fotógrafa de moda — uma fabricante da mentira cosmética que mascara as intratáveis desigualdades de nascimento, de classe e de aparência física? Mas, ao contrário de Warhol, que foi durante muitos anos um artista comercial, Arbus não criou sua obra séria promovendo e ironizando a estética do glamour, na qual fez seu aprendizado, mas sim lhe dando as costas inteiramente. A obra de Arbus é reativa — reativa contra o refinamento, contra aquilo que é aprovado. Era o seu jeito de dizer dane-se a Vogue, dane-se a moda, dane-se o que é bonito. Essa contestação toma duas formas não plenamente compatíveis. Uma é uma revolta contra a sensibilidade moral excessivamente desenvolvida dos judeus. A outra revolta, ela mesma intensamente moralista, se dirige contra o mundo do sucesso. A subversão moralista propõe a vida fracassada como um antídoto para a vida bem-sucedida. A subversão do esteta, que a década de 60 havia de tornar uma peculiaridade sua, propõe a vida como espetáculo de horror, como antídoto para a vida tediosa.

A maior parte da obra de Arbus situa-se no âmbito da estética de Warhol, ou seja, define-se em relação aos polos gêmeos do tédio e da anomalia; mas não tem o estilo de Warhol. Arbus não tinha o narcisismo de Warhol e seu gênio publicitário, nem a sutileza autoprotetora com que ele se isolava das anomalias, nem seu sentimentalismo. É improvável que Warhol, que provém de uma família de classe trabalhadora, jamais tenha sentido, com respeito ao sucesso, a ambivalência que afetava os filhos de judeus de classe média alta na década de 1960. Para alguém de formação católica, como Warhol (e quase todos da sua turma), um fascínio pelo mal surge de modo muito mais autêntico do que no caso de uma pessoa de origem judaica. Comparada com Warhol, Arbus parece extremamente vulnerável, inocente — e seguramente mais pessimista. Sua visão dantesca da cidade (e dos subúrbios) não tem nenhuma reserva de ironia. Embora boa parte do material de Arbus seja o mesmo retratado em, digamos, Chelsea Girls (1966), de Warhol, suas fotos nunca brincam com o horror, explorando-o a fim de produzir risos; não dão nenhuma passagem para a zombaria e nenhuma possibilidade de se considerar as anomalias estimáveis, como ocorre nos filmes de Warhol e de Paul Morrissey. Para Arbus, os seres anômalos e os Estados Unidos medianos eram igualmente exóticos: um menino que marcha numa passeata em favor da guerra e uma dona de casa em Levittown eram tão estranhos como um anão ou um travesti; subúrbios de classe média baixa eram tão remotos como o Times Square, asilos de loucos e bares de gays. A obra de Arbus expressava sua tendência contra o que era público (tal como ela o experimentava), convencional, seguro, tranquilizador — e entediante — e em favor do que era privado, oculto, feio, perigoso e fascinante. Esses contrastes parecem, agora, quase antiquados. O que é seguro já não monopoliza o imaginário do público. As anomalias não são mais uma área reservada, de difícil acesso. Pessoas bizarras, em condição sexual vergonhosa, emocionalmente vazias, são vistas todos os dias nas bancas de jornal, na televisão, nos metrôs. O homem hobbesiano vaga pelas ruas, perfeitamente visível, com gel no cabelo.

Sofisticada à conhecida maneira modernista — preferindo a estranheza, a ingenuidade e a sinceridade à esperteza e à artificialidade da arte elevada e do comércio elevado —, Arbus dizia que o fotógrafo de quem mais se sentia próxima era Weegee, cujas fotos brutais de crimes e de vítimas de acidentes eram artigos de primeira necessidade para os jornais populares na década de 1940. As fotos de Weegee são, de fato, perturbadoras, sua sensibilidade é urbana, mas a solidariedade entre seu trabalho e o de Arbus termina aí. Por mais ávida que ela estivesse para repudiar os componentes típicos da sofisticação fotográfica, como a composição, Arbus não carecia de sofisticação. E nada há de jornalístico em seus motivos para tirar fotos. O que pode parecer jornalístico, e até sensacionalista, nas fotos de Arbus situa-as, na verdade, na tradição central da arte surrealista — seu gosto pelo grotesco, sua declarada inocência com relação aos temas, sua tese de que todos os temas são apenas objets trouvés.

“Eu jamais escolheria um tema por aquilo que ele significasse para mim quando eu pensasse nele”, escreveu Arbus, um expoente pertinaz do blefe surrealista. Supostamente, não se espera que os espectadores julguem as pessoas que ela fotografa. Julgamos, é claro. E o próprio conjunto dos temas de Arbus constitui, em si mesmo, um julgamento. Brassaï, que fotografou pessoas semelhantes às que interessavam a Arbus — ver a sua La Môme Bijou, de 1932 —, também oferecia paisagens urbanas, retratos de artistas famosos. Hospital de doentes mentais, Nova Jersey, 1924, de Lewis Hine, poderia ser uma foto da última fase de Arbus (exceto pelo fato de as duas crianças mongoloides que posam no gramado terem sido fotografadas de perfil, e não de frente); os retratos de rua em Chicago tirados por Walker Evans em 1946 são um material digno de Arbus, bem como diversas fotos de Robert Frank. A diferença reside na série de outros temas e de outras emoções que Hine, Brassaï, Evans e Frank fotografaram. Arbus é auteur no sentido mais restritivo, um caso tão específico na história da fotografia quanto foi, na história da pintura europeia moderna, Giorgio Morandi, que passou meio século produzindo naturezas-mortas e garrafas. Arbus não diversifica seu assunto, como fazem os fotógrafos mais ambiciosos — por pouco que seja. Ao contrário, todos os seus temas são equivalentes. E estabelecer equivalências entre anomalias, loucos, casais do subúrbio e nudistas constitui um julgamento muito forte, em cumplicidade com uma reconhecível atitude política partilhada por muitos americanos instruídos e liberais de esquerda. Os temas das fotos de Arbus são todos membros da mesma família, habitantes de uma única aldeia. Acontece apenas que a aldeia são os Estados Unidos. Em vez de mostrar uma identidade entre coisas diferentes (o panorama democrático de Whitman), todos são mostrados de modo que pareçam iguais.

Em seguida às esperanças mais risonhas para os Estados Unidos, veio um abraço amargo e triste da experiência. Existe uma melancolia peculiar no projeto fotográfico americano. Mas a melancolia já estava latente no auge da afirmação whitmaniana, tal como representada por Stieglitz e seu círculo da Photo-Secession. Stieglitz, empenhado em redimir o mundo com sua câmera, ainda estava chocado pelos elementos da civilização moderna. Fotografou Nova York na década de 1910, num espírito quase quixotesco — câmera/lança contra arranha-céu/moinho de vento. Paul Rosenfeld descreveu os esforços de Stieglitz como uma “afirmação perpétua”. Os apetites whitmanianos tornaram-se devotos: o fotógrafo, agora, patrocina a realidade. Precisa-se da câmera para revelar padrões nessa “insípida e maravilhosa opacidade chamada Estados Unidos”.

Obviamente, uma missão tão envenenada por dúvidas acerca dos Estados Unidos — mesmo no máximo de seu otimismo — estava destinada a, bem cedo, se esvaziar, à medida que os Estados Unidos, no período após a Primeira Guerra Mundial, se entregavam com mais arrojo aos grandes negócios e ao consumismo. Os fotógrafos com menos ego e magnetismo do que Stieglitz gradualmente desertaram da luta. Podiam continuar a praticar a estenografia visual atomista inspirada em Whitman. Mas, sem o delirante poder de síntese de Whitman, aquilo que eles documentaram era descontinuidade, detrito, solidão, ganância, esterilidade. Stieglitz, ao usar a fotografia para contestar a civilização materialista, foi, nas palavras de Rosenfeld, “o homem que acreditava existir, em alguma parte, um Estados Unidos espiritual, e esses Estados Unidos não eram o túmulo do Ocidente”. O intuito implícito de Frank e Arbus, e de muitos entre seus contemporâneos e fotógrafos posteriores, é mostrar que os Estados Unidos são o túmulo do Ocidente.

Desde que a fotografia se desvencilhou da afirmação whitmaniana — desde que ela deixou de compreender como as fotos podiam ter em mira ser cultas, abalizadas, transcendentes —, o melhor da fotografia americana (e muitas outras coisas na cultura americana) entregou-se às consolações do surrealismo, e os Estados Unidos foram descobertos como o país surrealista, por excelência. Obviamente, é fácil demais dizer que os Estados Unidos são apenas uma feira de aberrações, uma terra devastada — o pessimismo barato típico da redução do real ao surreal. Mas a propensão americana para os mitos da redenção e da danação persiste como um dos aspectos mais revigorantes, mais sedutores, de nossa cultura nacional. O que abandonamos do desacreditado sonho de Whitman de uma revolução cultural são fantasmas de papel e um espirituoso e perspicaz programa de desespero.


* Na verdade, não é um equívoco. No rosto das pessoas, quando ignoram que estão sendo observadas, existe algo que nunca aparece quando elas sabem disso. Se não soubéssemos como Walker Evans tirou suas fotos no metrô (viajando centenas de horas, no metrô, de pé, com a lente da câmera à espreita entre dois botões do seu sobretudo), ficaria óbvio pelas próprias fotos que os passageiros sentados, embora fotografados de perto e de frente, não sabiam que estavam sendo fotografados; suas expressões são confidenciais, não são aquelas que as pessoas mostram para uma câmera.






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Susan Sontag (16 de janeiro de 1933, Nova Iorque — 28 de dezembro de 2004) foi uma escritora, crítica de arte e ativista dos Estados Unidos.

Graduou-se na Universidade de Harvard e destacou-se por sua defesa dos direitos humanos. Publicou vários livros, entre eles Styles of Radical Will, The Way We Live Now, Against Interpretation e In America, pelo qual recebeu em 2000 um dos mais importantes prémios do seu país, o National Book Award.

Publicou artigos em revistas como The New Yorker e The New York Review of Books e no jornal The New York Times.

Num de seus últimos artigos, publicado em maio de 2004 no jornal The New York Times, Sontag afirmou que "a história recordará a Guerra do Iraque pelas fotografias e vídeos das torturas cometidas pelos soldados americanos na prisão de Abu Ghraib. Ela faleceu aos 71 anos de idade de síndrome mielodisplásica seguida de uma leucemia mielóide aguda em 28 de Dezembro de 2004.



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"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível."


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Diante da dor dos Outros

Susan Sontag













"Imagens do sofrimento são apresentadas diariamente pelos meios de comunicação. Graças à televisão e ao computador, imagens de desgraça se tornaram uma espécie de lugar-comum. Mas como a representação da crueldade nos influencia? O que provocam em nós exatamente? Estamos insensibilizados pelo bombardeio de imagens?

Em “Ensaios sobre a fotografia”, publicado no Brasil no começo dos anos 1980, Susan Sontag abordou o tema em termos que definiram o debate pelas décadas seguintes. Aqui, em “Diante da dor dos outros”, faz uma nova e profunda reflexão sobre as relações entre notícia, arte e compreensão na representação dos horrores da guerra, da dor e da catástrofe.

Discutindo os argumentos sobre como essas imagens podem inspirar discórdia, fomentar a violência ou criar apatia, a autora evoca a longa história da representação da dor dos outros – desde “As desgraças da guerra”, de Francisco de Goya (1746-1828), até fotos da Guerra Civil Americana, da Primeira Guerra Mundial, da Guerra Civil Espanhola, dos campos nazistas de extermínio durante a Segunda Guerra, além de imagens contemporâneas de Serra Leoa, Ruanda, Israel, Palestina e de Nova York no 11 de setembro de 2001.

Num texto preciso e provocador, Sontag levanta questões cruciais para a compreensão da vida contemporânea. De sua reflexão surge uma formulação surpreendente e desafiadora: a relevância dessas imagens depende, em última instância, da maneira com que nós, espectadores, as encaramos."


Resenha Editorial


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