quinta-feira, 30 de abril de 2020

O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo I - Infância (4)

Simone de Beauvoir



02. A Experiência Vivida




O SEGUNDO SEXO
SlMONE DE BEAUVOIR



continuando...


Além dessa esperança que o brinquedo da boneca concretiza a vida caseira fornece também à menina possibilidade de afirmação. Grande parte do trabalho doméstico pode ser realizado por uma menina muito criança; habitualmente dele os meninos são dispensados; mas permite-se, pede-se mesmo à irmã, que varra, tire o pó, limpe os legumes, lave um recém-nascido, tome conta da sopa. A irmã mais velha, em particular, é assim amiúde associada às tarefas maternas. Por comodidade, hostilidade ou sadismo, a mãe descarrega nela boa parte de suas funções; ela é então precocemente integrada no universo da seriedade; o sentido de sua importância ajudá-la-á a assumir sua feminilidade, mas a gratuidade feliz, a despreocupação infantil são-lhe recusadas. Mulher antes da idade, ela conhece cedo demais os limites que essa especificação impõe ao ser humano; chega adulta à adolescência, o que dá à sua história um caráter singular. A menina sobrecarregada de tarefas pode ser prematuramente escrava, condenada a uma existência sem alegria. Mas se só lhe pedem um esforço ao seu alcance, ela experimenta o orgulho de ser eficiente como um adulto e regozija-se de ser solidária com as "pessoas grandes". Essa solidariedade é possível pelo fato de não haver entre a menina e a dona de casa uma distância considerável. Um homem especializado em seu ofício acha-se separado da fase infantil por anos de aprendizado; as atividades paternas são profundamente misteriosas para o menino; neste, mal se esboça o homem que será mais tarde. Ao contrário, as atividades da mãe são acessíveis à menina; "já é uma mulherzinha", dizem os pais; e julga-se por vezes que ela é mais precoce do que o menino: em verdade, se se acha mais próxima da fase adulta é porque esta fase permanece mais infantil na maioria das mulheres. O fato é que ela se sente precoce, que se sente lisonjeada por desempenhar junto dos irmãos mais jovens o papel de "mãezinha"; torna-se facilmente importante, fala sensatamente, dá ordens, assume ar de superioridade sobre os irmãos encerrados no círculo infantil, fala com a mãe em pé de igualdade. 

Apesar dessas compensações, não aceita sem lamento o destino que lhe é apontado; crescendo, inveja a virilidade dos rapazes. Acontece que pais e avós escondem mal que teriam preferido um homem a uma mulher; ou demonstram maior afeição pelo irmão do que pela irmã: inquéritos provaram que os pais, em sua maioria, preferem ter filhos a ter filhas. Falam aos meninos com mais gravidade, mais estima, reconhecem-lhes mais direitos; os próprios meninos tratam as meninas com desprezo; brincam entre si, não admitem meninas em seus bandos, insultam-nas: entre outros insultos chamam-nas "mijonas", reavivando com tais palavras a secreta humilhação infantil da menina. Na França, nas escolas mistas, a casta dos meninos oprime e persegue deliberadamente a das meninas. Entretanto, se estas querem entrar em competição com eles, bater-se com eles, censuram-nas. Elas invejam duplamente as atividades pelas quais os meninos se singularizam: elas sentem um desejo espontâneo de afirmar seu poder sobre o mundo e protestam contra a situação inferior à qual são condenadas. Sofrem, entre outras coisas, a proibição de subir nas árvores, nas escadas, nos telhados. Adler observa que as noções de alto e baixo têm grande importância, a ideia de elevação espacial implicando uma superioridade espiritual, como se vê através de numerosos mitos heroicos; atingir um cume, um pico, é emergir para além do mundo dado, como sujeito soberano; é entre meninos um pretexto freqüente de desafio. A menina a quem essas proezas são proibidas e que, sentada ao pé de uma árvore ou de um rochedo, vê acima dela os meninos triunfantes, sente-se inferior de corpo e alma. Do mesmo modo, se é deixada para trás numa corrida ou numa prova de salto, se é jogada no chão numa briga, ou simplesmente mantida à margem.

Quanto mais a criança cresce, mais o universo se amplia e mais a superioridade masculina se afirma. Muitas vezes, a identificação com a mãe não mais se apresenta como solução satisfatória; se a menina aceita, a princípio, sua vocação feminina, não o faz porque pretenda abdicar: é, ao contrário, para reinar; ela quer ser matrona porque a sociedade das matronas parece-lhe privilegiada; mas quando suas frequentações, estudos, jogos e leituras a arrancam do círculo materno, ela compreende que não são as mulheres e sim os homens os senhores do mundo. É essa revelação — muito mais do que a descoberta do pênis — que modifica imperiosamente a consciência que ela toma de si mesma.

A hierarquia dos sexos manifesta-se a ela primeiramente na experiência familiar; compreende pouco a pouco que, se a autoridade do pai não é a que se faz sentir mais quotidianamente, é entretanto a mais soberana; reveste-se ainda de mais brilho pelo fato de não ser vulgarizada; mesmo se, na realidade, é a mulher que reina soberanamente em casa, tem ela, em geral, a habilidade de pôr à frente a vontade do pai; nos momentos importantes é em nome dele que ela exige, recompensa ou pune. A vida do pai é cercada de um prestígio misterioso: as horas que passa em casa, o cômodo em que trabalha, os objetos que o cercam, suas ocupações e manias têm um caráter sagrado. Ele é quem alimenta a família, é o responsável e o chefe. Habitualmente trabalha fora e é através dele que a casa se comunica com o resto do mundo: ele é a encarnação desse mundo aventuroso, imenso, difícil, maravilhoso ; ele é a transcendência, ele é Deus [1]. É o que experimenta carnalmente a criança na força dos braços que a erguem, na força do corpo contra o qual se encolhe. Por ele a mãe é destronada como outrora Ísis pelo deus Rá e a Terra pelo Sol. Mas a situação da criança é, então, profundamente mudada: é chamada a tornar-se um dia uma mulher semelhante a sua mãe todo-poderosa — nunca será o pai soberano; o laço que a ligava à mãe era uma emulação ativa. Do pai ela só pode esperar passivamente uma valorização. O menino apreende a superioridade paterna através de um sentimento de rivalidade: ao passo que a menina a sofre com uma admiração impotente. Já disse que isso que Freud chama complexo de Electra não é, como ele pretende, um desejo sexual; é uma abdicação profunda do indivíduo que consente em ser objeto na submissão e na adoração. Se o pai demonstra ternura pela filha, esta sente a existência magnificamente justificada; sente-se dotada de todos os méritos que as outras procuram adquirir com dificuldade: sente-se satisfeita e divinizada. É possível que durante toda a sua vida volte a procurar, com nostalgia, essa plenitude e essa paz. Se esse amor lhe é recusado, pode sentir- -se para sempre culpada e condenada, ou buscar alhures uma valorização de si e tornar-se indiferente ao pai, e até hostil. O pai não é, de resto, o único a deter as chaves do mundo; todos os homens participam normalmente do prestígio viril; não é permitido considerá-los como "substitutos" do pai. É imediatamente na qualidade de homens, que avôs, irmãos mais velhos, tios, pais das colegas, amigos da casa, professores, padres, médicos, fascinam a menina. A consideração comovida que as mulheres adultas testemunham ao Homem bastaria para colocá-lo num pedestal [2].


[1] "Sua generosa pessoa inspirava-me um grande amor e um medo e n o r m e . . . " diz Mme de Noailles falando do pai. "Ele antes de tudo me espantava. O primeiro homem espanta uma menina. Eu sentia bem que tudo dependia dele."

[2] E digno de nota o fato de que o culto do pai se encontre principalmente na mais velha das filhas; o homem interessa-se mais por uma primeira paternidade; muitas vezes ele é que consola a filha, como consola o filho quando a mãe é açambarcada pelos novos filhos, e a filha se apega ardentemente a ele. A caçula ao contrário nunca possui o pai sem partilha; ela tem em geral ciúmes dele e da irmã mais velha; ou ela se fixa nessa primogênita que a complacência do pai reveste de grande prestígio, ou ela se volta para a mãe, ou se revolta contra a família e procura apoio fora. Nas famílias numerosas a caçula encontra de outra maneira um lugar privilegiado. Naturalmente numerosas circunstâncias podem motivar predileções singulares no pai. Mas quase todos os casos que conheço confirmam essa observação acerca das atitudes invertidas da mais velha e da mais jovem.

Tudo contribui para confirmar essa hierarquia aos olhos da menina. Sua cultura histórica, literária, as canções, as lendas com que a embalam são uma exaltação do homem. São os homens que fizeram a Grécia, o Império Romano, a França e todas as nações, que descobriram a terra e inventaram os instrumentos que permitem explorá-la, que a governaram, que a povoaram de estátuas, de quadros e de livros. A literatura infantil, a mitologia, contos, narrativas, refletem os mitos criados pelo orgulho e os desejos dos homens: é através de olhos masculinos que a menina explora o mundo e nele decifra seu destino. A superioridade masculina é esmagadora: Perseu, Hércules, Davi, Aquiles, Lançarote, Duguesclin, Bayard, Napoleão, quantos homens para uma Joana d'Arc; e, por trás desta, perfila-se a grande figura masculina de São Miguel Arcanjo! Nada mais tedioso do que os livros que traçam vidas de mulheres ilustres: são pálidas figuras ao lado das dos grandes homens; e em sua maioria banham-se na sombra de algum herói masculino. Eva não foi criada para si mesma e sim como companheira de Adão, e de uma costela dele; na Bíblia há poucas mulheres cujas ações sejam notáveis: Rute não fez outra coisa senão encontrar um marido. Ester obteve a graça dos judeus ajoelhando-se diante de Assuero, e ainda assim não passava de um instrumento dócil nas mãos de Mardoqueu; Judite teve mais ousadia, mas ela também obedecia aos sacerdotes e sua proeza tem um vago sabor equívoco: não se poderia compará-la ao triunfo puro e brilhante do jovem Davi. As deusas da mitologia são frívolas ou caprichosas e todas tremem diante de Júpiter; enquanto Prometeu rouba soberbamente o fogo do céu, Pandora abre a caixa das desgraças. Há, é certo, algumas feiticeiras, algumas mulheres velhas que exercem nos contos um poder temível. Entre outras, no Jardim do Paraíso de Andersen, a figura da Mãe dos ventos lembra a Grande Deusa primitiva: seus quatro enormes filhos obedecem-lhe tremendo, ela os surra e os encerra dentro de sacos quando se conduzem mal. Mas tais personagens não são atraentes. Mais poderosas são as fadas, as sereias, as ondinas que escapam ao domínio do homem. Sua existência é incerta, porém, e apenas individualizada; elas intervém no mundo humano sem ter destino próprio: a partir do dia em que se torna mulher, a pequena sereia de Andersen conhece o jugo do amor e o sofrimento passa a ser seu quinhão. Nas narrativas contemporâneas, como nas lendas antigas, o homem é o herói privilegiado. Os livros de Mme de Ségur são uma curiosa exceção: descrevem uma sociedade matriarcal em que o marido, quando não está ausente, desempenha um papel ridículo; mas de costume a imagem do pai é, como no mundo real, aureolada de glória. É sob a égide do pai divinizado pela ausência que se desenrolam os dramas femininos de Little Women. Nos romances de aventura são os meninos que fazem a volta ao mundo, que viajam como marinheiros nos navios, que se alimentam na floresta com a fruta-pão. Todos os acontecimentos importantes ocorrem através dos homens. A realidade confirma esses romances e essas lendas. Se a menina lê os jornais, se ouve a conversa dos adultos, constata que hoje, como outrora, os homens dirigem o mundo. Os chefes de Estado, os generais, os exploradores, os músicos, os pintores que ela admira são homens; são homens que fazem seu coração bater de entusiasmo.

Esse prestígio reflete-se no mundo sobrenatural. Geralmente, em virtude do papel que assume a religião na vida das mulheres, a menina, mais dominada pela mãe do que o irmão, sofre mais, igualmente, as influências religiosas. Ora, nas religiões ocidentais, Deus Pai é um homem, um ancião dotado de um atributo especificamente viril: uma opulenta barba branca [3]:. Para os cristãos, Cristo é mais concretamente ainda um homem de carne e osso e de longa barba loura. Os anjos, segundo os teólogos, não têm sexo, mas têm nomes masculinos e manifestam-se sob a forma de belos jovens. Os emissários de Deus na terra: o papa, os bispos de quem se beija o anel, o padre que diz a missa, o que prega, aquele perante o qual se ajoelham no segredo do confessionário, são homens. Para uma menina piedosa, as relações com o pai eterno são análogas às que ela mantém com o pai terrestre; como se desenvolvem no plano do imaginário, ela conhece até uma demissão mais total. A religião católica, entre outras, exerce sobre ela a mais perturbadora das influências [4]. A Virgem acolhe de joelhos as palavras do anjo: "Sou a serva do Senhor", responde. Maria Madalena prostra-se aos pés de Cristo e os enxuga com seus longos cabelos de mulher. As santas declaram de joelhos seu amor ao Cristo radioso. De joelhos no odor do incenso, a criança abandona-se ao olhar de Deus e dos anjos: um olhar de homem. Insistiu-se muitas vezes a respeito das analogias entre a linguagem erótica e a linguagem mística como as falam as mulheres. Assim é, por exemplo, que Santa Teresa do Menino Jesus escreve:

Ó meu Bem amado, por teu amor aceito não ver nesta terra a doçura de teu olhar, não sentir o inexprimível beijo de tua boca, 'mas suplico-te que me abrases com teu amor. . .


Meu bem Amado, de teu sorriso 
jaze-me logo entrever a doçura. 
Ah! deixa-me em meu ardente delírio, 
Sim, deixa esconder-me em teu coração! [5]


Quero ser fascinada por teu olhar divino, quero tornar-me a presa de teu amor. Um dia, tenho a esperança, cairás impetuosamente sobre mim transportando-me para o lume do amor, tu me imergirás enfim nesse ardente abismo a fim de fazer de mim, e para sempre, a feliz vítima dele.


[3] "Por outro lado não sofria mais de minha incapacidade de ver Deus porque conseguira desde pouco tempo imaginá-lo com os traços de meu falecido avô; essa imagem, em verdade, era mais humana do que divina; eu não demorava em divinizá-la separando a cabeça de meu avô do busto e colocando-a mentalmente no fundo de um céu azul onde nuvens brancas lhe serviam de colar", conta Yassu Gauclère em L'Orange bleue.

[4] Está fora de dúvida que as mulheres são infinitamente mais passivas, entregues ao homem, servis e humilhadas nos países católicos: Itália, Espanha, França, do que nos países protestantes: países escandinavos e anglo-saxões. E isso vem em grande parte de sua própria atitude: o culto da Virgem, a confissão etc, convida-as ao masoquismo.

[5] Mon Bien-Aimé de ton premier sourire
Fais-moi bientôt entrevoir la douceur.
Ah! laisse-moi dans mon brûlant delire,
Oui, laisse-moi me cacher en ton coeur!


Mas disso não se deve concluir que essas efusões sejam sempre sexuais; quando a sexualidade feminina se desenvolve, vê-se antes tomada pelo sentimento religioso que a mulher votou ao homem desde a infância. É verdade que a menina conhece junto do confessor, e até ao pé do altar deserto, uma sensação muito próxima da que experimentará mais tarde nos braços de seu amante: é que o amor feminino é uma das formas da experiência em que uma consciência se faz objeto para um ser que a transcende; e são também essas delícias passivas que a jovem devota degusta na sombra da igreja.

Prostrada, com o rosto afundado nas mãos, ela conhece o milagre da renúncia; de joelhos, sobe ao céu; seu abandono nos braços de Deus assegura-lhe uma Assunção envolvida em nuvens e anjos. É sobre essa maravilhosa experiência que ela calca seu futuro terrestre. A criança pode também descobri-lo por outros caminhos: tudo a convida a entregar-se em sonho aos braços dos homens a fim de ser transportada para um céu de glória. Ela aprende que para ser feliz é preciso ser amada; para ser amada é preciso aguardar o amor. A mulher é a Bela Adormecida no bosque, Cinderela, Branca de Neve, a que recebe e suporta. Nas canções, nos contos, vê-se o jovem partir aventurosamente em busca da mulher; ele mata dragões, luta contra gigantes; ela acha-se encerrada em uma torre, um palácio, um jardim, uma caverna, acorrentada a um rochedo, cativa, adormecida: ela espera. Um dia meu príncipe virá... Some day he'll come along, the man I love... Os refrões populares insuflam-lhe sonhos de paciência e esperança. A suprema necessidade para a mulher é seduzir um coração masculino; mesmo intrépidas, aventurosas, é a recompensa a que todas as heroínas aspiram; e o mais das vezes não lhes é pedida outra virtude senão a beleza. Compreende-se que a preocupação da aparência física possa tornar- se para a menina uma verdadeira obsessão; princesas ou pastoras, é preciso sempre ser bonita para conquistar o amor e a felicidade; a feiura associa-se cruelmente à maldade, e, quando as desgraças desabam sobre as feias, não se sabe muito bem, se são seus crimes ou sua feiura que o destino pune. Amiúde, as jovens belezas destinadas a um futuro glorioso começam aparecendo num papel de vítima; as histórias de Geneviève de Brabant, de Grisélidis, não são tão inocentes como parecem; amor e sofrimento nelas se entrelaçam de maneira perturbadora; é caindo no fundo da abjeção que a mulher assegura para si mesma os mais deliciosos triunfos; quer se trate de Deus ou de um homem, a menina aprende que, aceitando as mais profundas demissões, se tornará todo-poderosa; ela se compraz em um masoquismo que lhe promete supremas conquistas. Santa Blandina, branca e ensanguentada nas garras dos leões, Branca de Neve jazendo como uma morta em um esquife de vidro, a Bela Adormecida, Atala desfalecida, toda uma coorte de ternas heroínas machucadas, passivas, feridas, ajoelhadas, humilhadas, ensinam à jovem irmã o fascinante prestígio da beleza martirizada, abandonada, resignada. Não é de espantar que, enquanto o irmão brinca de herói, a menina desempenhe de bom grado papel de mártir: os pagãos deitam-na às feras, Barba Azul arrasta-a pelos cabelos, o esposo-rei exila-a no fundo das florestas; ela se resigna, sofre, morre e sua fronte cobre-se de glória. "Ainda muito menina, eu almejava conquistar a ternura dos homens, inquietá-los, ser salva por eles, morrer em todos os braços", escreve Mme de Noailles. Encontra-se um exemplo notável desses devaneios masoquistas em Voile Noire de Marie Le Hardouin.


Aos 7 anos, não sei com que costela fabricava meu primeiro homem. Era grande, esbelto, extremamente jovem, vestido de cetim preto e com longas mangas arrastando pelo chão. Seus belos cabelos louros caíam- -lhe em pesados cachos sobre os ombros... Chamava-o Edmond... Aconteceu um dia que lhe dei dois irmãos. . . Esses três irmãos: Edmond, Charles e Cédric, todos os três vestidos de cetim preto, fizeram-me conhecer estranhas beatitudes. Seus pés calçados de seda eram tão belos e suas mãos tão frágeis que toda espécie de impulso subia-me à alma. . . Tornei-me sua irmã Marguerite. .. Gostava de me representar a mim mesma submissa à vontade de meus irmãos e totalmente à mercê deles. Sonhava que meu irmão mais velho, Edmond, tinha direito de vida e morte sobre mim. Eu não tinha nunca a permissão de erguer os olhos para seu rosto. Ele mandava açoitar-me por qualquer pretexto. Quando me dirigia a palavra, eu ficava tão transtornada pelo temor e a tristeza que não achava o que lhe responder e balbuciava sem cessar: "Simi meu senhor", "Não, meu senhor" e saboreava a estranha delícia de me sentir i d i o t a . . , Quando o sofrimento que ele me impunha era forte demais, eu murmurava "Obrigada, meu senhor" e ocorria um momento em que, quase desfalecendo de sofrimento, para não gritar eu pousava os lábios na mão dele enquanto, com algum impulso a quebrar-me enfim o coração, eu atingia um desses estados em que se deseja morrer por excesso de felicidade.




continua página 34...



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As mulheres de nossos dias estão prestes a destruir o mito do "eterno feminino": a donzela ingênua, a virgem profissional, a mulher que valoriza o preço do coquetismo, a caçadora de maridos, a mãe absorvente, a fragilidade erguida como escudo contra a agressão masculina. Elas começam a afirmar sua independência ante o homem; não sem dificuldades e angústias porque, educadas por mulheres num gineceu socialmente admitido, seu destino normal seria o casamento que as transformaria em objeto da supremacia masculina.
Neste volume complementar de O SEGUNDO SEXO, Simone de Beauvoir, constatando a realidade ainda imediata do prestígio viril, estuda cuidadosamente o destino tradicional da mulher, as circunstâncias do aprendizado de sua condição feminina, o estreito universo em que está encerrada e as evasões que, dentro dele, lhe são permitidas. Somente depois de feito o balanço dessa pesada herança do passado, poderá a mulher forjar um outro futuro, uma outra sociedade em que o ganha--pão, a segurança econômica, o prestígio ou desprestígio social nada tenham a ver com o comércio sexual. É a proposta de uma libertação necessária não só para a mulher como para o homem. Porque este, por uma verdadeira dialética de senhor e servo, é corroído pela preocupação de se mostrar macho, importante, superior, desperdiça tempo e forcas para temer e seduzir as mulheres, obstinando-se nas mistificações destinadas a manter a mulher acorrentada.
Os dois sexos são vítimas ao mesmo tempo do outro e de si. Perpetuar-se-á o inglório duelo em que se empenham enquanto homens e mulheres não se reconhecerem como semelhantes, enquanto persistir o mito do "eterno feminino". Libertada a mulher, libertar-se-á também o homem da opressão que para ela forjou; e entre dois adversários enfrentando-se em sua pura liberdade, fácil será encontrar um acordo.
O SEGUNDO SEXO, de Simone de Beauvoir, é obra indispensável a todo o ser humano que, dentro da condição feminina ou masculina, queira afirmar-se autêntico nesta época de transição de costumes e sentimentos.




Simone de Beauvoir - Documentário





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