segunda-feira, 13 de abril de 2020

tempo é história: Calçacurta: 5A - nunca olhei pelo retrovisor

CalçaCurta

novela


nunca olhei pelo retrovisor
5A - 4ª ed


baitasar



eu penso que, não chega a ser uma convicção – somente uma suspeição, digo isso, antes que me acusem de ingênuo –, morto que está morto pode não ter sido um anjo de bondade no decorrer da sua vida, mas tem o instante de revirar-se do avesso e virar um anjo atento, aplicado, dedicado e persistente, durante o seu guardamento de corpo presente

isso tudo vai depender, é claro, da visitação que o defunto recebe e das intenções dos cumprimentos, das lembranças trazidas à baila, das saudações de cortesia e do respeito às recomendações feitas

Senhor, eu preciso sentar um pouquinho. A minha cabeça está girando... não... não é a minha cabeça, é o seu caixão de morto que não para de rodopiar... sei lá, estou confuso e com náuseas. Não posso com seu cheiro de morto, na verdade, nunca pude... quando o senhor entrava no carro sentia náuseas, enfim, o senhor é o primeiro morto que preciso cuidar pessoalmente.

parece que as maldades feitas estão todas aqui, queria estar em um lugar mais atraente, um lugar sem fantasmas, uma ocupação onde não é preciso mentir nem ter medo, não é arrependimento, só um breve cansaço

Xupa-racha!

Sim, senhor, não levantei a voz, muito menos a cabeça, tudo girava, uma quentura insuportável, sufocando, suando, o defunto girando, o santuário rodando, tudo uma rosa-morta, queria gritar por ajuda, o medo amordaçava

Ninguém precisa saber dessa história por tanto tempo abandonada. Esquece, é melhor assim. As pessoas estão cansadas de tantas tristezas, ameaças, doenças e mortes. Não traga esse pesadelo para cá, deixe no quartinho escuro dos fundos. Aceite que as pessoas querem continuar não sabendo. Afinal, tudo já foi destruído. Esqueça os desaparecidos, abandonando-os irá fazer bem a todos. Hoje, as pessoas não se importam mais com o passado. O que aconteceu – e pode nem ter acontecido, entendeu? – foi tudo arquivado no esquecimento pelos caprichos da vida. O mundo mudou. A internet mudou o mundo, mas se engana quem acha que estou obsoleto.

não aguentei mais e parei de resistir, queria gritar pra parar, queria tanto fugir, recomeçar, o calor, a sede, o vômito indo e vindo, arranquei a camisa, os sapatos joguei longe, as calças empurrei com as mãos e pés, continuava jogado no chão, os olhos afogados, cicatrizando, girando, girando

lembrei que poderia rezar, não lembrava de nada, tanto tempo sem rezar

e rezei pra tudo que foi santo ou santa, quem sabe alguém ouviria, não sabia nenhuma reza brava, mas se soubesse também rezaria

Nem tudo, senhor...

Não entendi, Xupa-racha.

a capela foi parando de rodar, a arca foi parando de rodopiar, afrouxei os dedos e desgrudei as mãos, respirei fundo e devagar, muito devagar, até que parou, suspirei fundo e recomeçou a girar para o outro lado, no sentido horário – que horas seriam? – mais rápido, mais rápido, Não, meu Deus! De novo, não, e não me pareceu que alguém, quem quer que fosse, havia me escutado, eu estava sozinho no chão, não queria me entregar, apavorado, temia que tudo prosseguisse, nenhuma esperança, pelo menos, não aqui dentro, continuo louco pra fugir

Nem tudo mudou... as madeireiras e as mineradoras, senhor...

o morto sentou e me procurou, abriu os braços e ergueu as mãos, O frangote está mal, fiquei quieto, talvez esquecesse de mim, senti o cheiro da morte e não consegui evitar o horror e o enjoo, engoli a mim mesmo duas vezes

o defunto continuava girando com os olhos fechados, filho-da-puta!, como consegue, O que têm elas, Xupa-racha?

Continuam...

não consegui seguir respondendo, senti que todos os enjoos da minha vida chegavam até aqui, foi por pouco que não soltei tudo, disfarcei e me engoli mais uma vez

Porra, seu merda! Desengasga, caralho!

sinto o gosto do estômago nas palavras que se soltam rodopiando, bêbadas e tontas, um gosto de despejo vomitado e engolido

Senhor, as madeireiras e as mineradoras continuam reduzindo crianças e adultos em escravos. Miseráveis que perdem os pulmões e a vida digna. Esse povo segue abandonado. Sem falar nas derrubadas clandestinas...

E daí, seu merda?

se vai ser preciso segurar o morto no seu lugar de morto pra ser velado, já vou avisando que eu não consigo, o calçacurta não está se comportando como um morto

Mas, senhor...

O que você tem com isso, seu merdinha? E não são tantos assim...

Mas senhor... não estou falando de estatísticas...

Cala a boca, seu idiotinha! O inútil está se relacionando com esses comunistinhas filhos-da-puta dos direitos humanos?

não tem jeito, ele está com esse discurso decorado que repete e declama do inimigo invisível, o calçacurta está se comportando como de costume, usque in aeternum

os giros e rodopios continuam me jogando no chão, os olhos fechados, os dedos enfiados nas lajotas do piso duro, desconfortável e derretido

Não é exagero, senhor...

Tudo mentira, Xupa-racha!

Então, os serviços de informação estão falhando ou tem alguém fazendo vistas grossas.

Cuidado com as palavras , Xupa-racha.

deu um suspiro, espiou os lados e deitou de novo

Senhor, essa gente segue não respeitando a legislação ambiental e grileiros ocupam terras e se associam a grupos milicianos pra sua proteção. O agronegócio expande a ocupação com produtos químicos, promove o desmatamento e as crianças continuam sem escolas, sem saúde ou saneamento básico.

Xupa-racha, tudo exagero!

Mas, senhor...

Porra, caralho! O que é?

Isso tudo está no relatório feito pela nossa gente.

Não acredito, isso é fake...

O quê, senhor?

Falso, Xupa-racha. Você precisa se modernizar na linguagem.

Foi escrito assim...

É algum comunistinha filho-da-puta infiltrado!

já faz tempo que dura essa correria atrás dos comunistinhas – tempo demais, Canta passarinho, canta! É melhor dar logo um nome, Aqui, ninguém tem tempo para perder, Vai te foder, Nossa, o amigo é desbocado. Um comunistinha mal-educado. O amigo não está com sede e com fome? Eu sei que é dureza, mas pode ficar mais dureza. É tudo uma questão de tempo e força de vontade, pode acreditar... o amigo vai falar. Então, é melhor falar tudo de uma vez, senão o amiguinho sofre e morre. Um desperdício, né? Ninguém precisa sofrer, né? Tem que ser muito doente para gostar de sofrer. Então... fala... onde estão os outros? E os cubanos? Não vai responder, né? Uma pena... vai levar choque no rabo até se cagar todo ou prefere nos bagos? Viu, eu sou um democrata... o amiguinho pode escolher... ou quem sabe, um choque nesse seu cachimbo morto no meio das pernas?

parece que nunca acabará a teoria do inimigo-amigo, o palpite do medo que vive ao nosso lado, sorte daqueles que sabem escolher seu líder

até mesmo eu, o chofer condutor do chefe das Operações no Porão, precisei me cuidar, assustado com tanta humilhação, mentiras e abusos em nome de tudo, há desonra em quem pratica e o espasmo da consciência em quem sofre

O senhor lembra?

Lembra do quê, caralho? Tanta merda para esquecer e um merdinha guarda-defunto tonto aparece para perguntar se eu lembro... eu lembro de tudo, caralho! De tudo... mas deixa assim, entendeu?

O senhor lembra do Curupira? Sou fascinado por essa história. Um dos presos confessou que o Curupira existia e tinha os cabelos vermelhos. Foi o que bastou...

Uma aberração, Xupa-racha! E você... já está melhor?

Por que, senhor?

Xupa-racha, eu só estou morto...

o que esse porra louca, desalmado, um escroto que já teve muito poder, quis dizer com isso

Eu estou bem, senhor...

Venha aqui.

não acredito que esse degenerado ignorante vai me fazer levantar, Só um instante, senhor... onde estão minhas calças... a camisa...

Pronto, senhor.

Chegue mais perto...

Assim está bem, senhor?

Porra, Xupa-racha. Sou eu que fede desse jeito? Ou é você?

Os dois, senhor.

Vá lavar essa sua cara preta! E coloque as calças... aquilo foi um desatino...

O quê, senhor?

A porra da Operação Cabelo Vermelho! Foram me procurar para delatar um guri que tinha os cabelos vermelhos.

Eu lembro que o senhor contou o caso do preso que confessou tudo o que sabia – e o que não sabia –, mas não sabia do tal Curupira...

Você lembra demais, Xupa-racha. É bom tomar mais cuidado com o que você lembra e também com as palavras que solta por aí.

ainda lembro das risadas no carro, a animação e o bom humor na voz, Esse eu quero morto e a fotografia dos pés!

nunca vi essa foto, se existiu... desapareceu, mas continuam por aí as lembranças que perambulam sem cemitério, sem os vermes pra comerem tudo, sem a fotografia e o nome na pedra, memórias sem acabamento viram pesadelos pra uns e encantamento pra outros

Foram os dois fatos, já tinha um relato que me chegou dos informantes nas ruas. Então, resolvi apurar melhor a tal informação. Apertei o cerco no interrogatório dos comunistinhas que tinha nas mãos.

Foi quando o senhor teve a confirmação?

Não foi tão fácil, mas pode se dizer que o interrogatório foi um sucesso. Segundo o relato, o guri tinha o corpo coberto de pelos, os pés voltados para trás e os cabelos vermelhos!

Foi o que bastou...

Uma aberração, Xupa-racha!

O moleque era o inimigo a ser derrubado...

Isso mesmo, assim que soube do guri me mandei um bom tempo para o mato.

O senhor descobriu por que ele vivia no mato?

Provavelmente, iniciar uma guerra.

Uma guerra no meio do mato, senhor?

Esqueceu do Vietnã? Ou o Xupa-racha nunca ouviu falar?

Merda...

Diziam que ele defendia a mata dos grileiros. Tudo mentira, Xupa-racha!

Conta-se que o senhor corria pelos capões com um facão em uma das mãos e gritava a pleno pulmão, Vi de pegar... aberração do cú vermelho!

Tudo mentira, Xupa-racha. Por esse tempo, como você bem sabe, eu já tinha só um pulmão e um pedacinho do outro.

– Com licença...

– Sim, respondi assustado, sem saber de onde tinha aparecido essa voz educada, mas com um jeito sinistro que faz o morto revirar no caixão

– O senhor está falando com o defunto? Até aí tudo bem, a ocasião é para isso mesmo, mas com as calças na mão?

eu falei para você colocar as calças, xupa-racha

– Ah, sim... eu estava trocando as calças, ia colocar um pijama. Está muito quente aqui.

viu como é fácil mentir, xupa-racha. a mentira é uma necessidade humana

– É verdade, mas acho que é melhor ligar o ar-condicionado, o estranho visitante parou de falar e deu um olhar panorâmico para fora da capela mortuária, A madrugada vai ser fria, mas nada que possa incomodar alguém já tão acostumado com madrugadas em claro.

esse deve ser um espião comunistinha que veio ver se morri mesmo

– E o senhor quem é?

– Desculpe, eu devia ter me apresentado. Sou da funerária Arquivo Morto.

– Nunca ouvi falar.

merda, me acharam...

– É... não fazemos publicidade dos nossos serviços.

não vai perguntar quais são esses serviços

– E quais são exatamente esses serviços? Não recebi nenhuma ordem ou aviso sobre vocês.

– Nada demais...

eu conheço essa conversa mole... fui eu que inventei

– Estou aqui para saber se tudo está conforme o contratado pelo morto.

– O senhor Calçacurta contratou os serviços de vocês?

eu não lembro de nada disso, devia estar bêbado

– Não exatamente ele, mas a sua esposa.

– Dona Clara?

– Isso mesmo...

mas que porra é essa? funerária arquivo morto? a clarinha? xupa-racha tem angu nesse ensopado, a clarinha não se mete em nada, é uma dondoca come-dorme. não é o estilo dela

– Por que? Ela fez algum comentário? Achei que seria a Confraria dos Incubados que cuidaria de tudo.

– Somos uma repartição da Confraria. Limpamos a sujeira...

mas que porra é essa? virei sujeira para ser limpa e retirada debaixo do tapete

– ... e também atendemos clientes especiais. Esse senhor nos chamou em muitos eventos.

eu não lembro, nunca me preocupei com detalhes, fazia meu serviço, batia o ponto e saia, nunca olhei para o retrovisor

– E o que o senhor precisa saber?

cuidado com o que vai dizer, não vai bater com a língua nos dentes

– O café, os salgadinhos, as bolachas e a água já chegaram?

– Sim, estão na outra sala... esqueceram o papel higiênico...

– Eu sei, mas estamos providenciando... um fardo chega?

– Acho que chega... não chega?

– Esse é o meu cartão, caso precisem de qualquer coisa.

– Obrigado.

– Não esqueça das calças...

– Sim... sim...

Ele já foi, Xupa-racha?

Já, senhor.

– Ah, desculpe... esqueci de avisar que a viúva mandou fechar tudo por aqui. O velório só começa amanhã.

– Ok, pode deixar que eu fecho tudo.

– Combinado, boa noite.

– Boa noite.

Mas que porra é essa? Vou passar minha última noite de corpo presente sozinho?

celular sem bateria, uma câmara mortuária sem rádio ou tv, um morto e ninguém pra receber o seu adeus, essa noite vai ser longa, vai faltar assunto

Senhor...

Desembucha, Xupa-racha...

O senhor nunca ouviu falar nessa funerária?

O meu negócio nunca foi enterrar ninguém? Podemos mudar de assunto? Não está mais interessado no diabo vermelho?

os relatos e detalhamento daqueles eventos estão soterrados por um culto secreto, o silêncio ficou perdido pelo som das metralhas e trilhas alargadas pelo mesmo facão que cortava pés

O tal guri apareceu e sumiu.

Dizem que não quis ficar na cidade e que virou um pequenino deus que luta contra os estragos inúteis na mata.

Bobagens, podem dar o nome que quiserem... Chico... Dorothy... é tudo a mesma coisa... querem desestabilizar o governo!

os índios do araguaia encontraram um esqueleto sem os pés e afirmam pelos deuses da mata que é o curupira, outros dizem que sem os pés virados pra trás não se pode afirmar nada, No fim de tudo, o senhor voltou dessa excursão com uma vontade danada de baixar o cacete. Deu pena, mas não tinha nada o que fazer. O tal guri nunca foi achado, mas conhecendo o senhor como eu conheço não acredito que perdeu a viagem.

foi a primeira vez que vi um defunto fazer cara de paisagem

O que foi, Xupa-racha?

O senhor botou as mãos no Curupira?

Estávamos em guerra...

Com quem, senhor?

Ora com quem? Você é burro ou ingênuo, Xupa-racha? Acho que os dois, né? Um depravado burro e recatado... com quem estávamos em guerra? Jura que não sabe?

entendia o morto, o que atraia o calçacurta era o ritual, como sentar pra tomar um cafezinho antes do cigarro, quanto mais se prolongava maior era o prazer, o gosto da carne na boca, entre os dentes

Senhor, eu não sei.

Ora, com quem... com esses comunistinhas de merda que se recusam aceitar nosso jeito de mandar. Entendeu, seu bosta?

nunca vi razão pra tanto, mas jamais duvidei que a boca fechada fosse o caminho da salvação pra seguir com a vida, um chofer condutor que não troca palavras além das indispensáveis, Pra onde, senhor?

Não sei, por aí...

Sim, senhor.

nunca olhei pelo retrovisor





Nenhum comentário:

Postar um comentário