quinta-feira, 9 de fevereiro de 2023

Ulisses - Parte 1 (1c): O vão da porta

Ulisses

James Joyce

Parte 1

1


continuando...

O vão da porta foi escurecido por uma forma que entrava.

– O leite, senhor!

– Entre, mulher – disse Mulligan. – Kinch, pegue a jarra.

Uma mulher idosa avançou e ficou de pé junto ao cotovelo de Stephen.

– É uma linda manhã, senhor – disse ela. – Glória seja dada a Deus.

– A quem? – disse Mulligan, olhando para ela. – Ah, com certeza.

Stephen recuou e pegou a jarra de leite no armário.

– Os nativos da ilha – disse Mulligan a Haines casualmente – falam com frequência no colecionador de prepúcios.

– Quanto, senhor? – perguntou a velha.

– Um quarto – disse Stephen.

Ele a observou enquanto ela derramava na medida e daí dentro da jarra o leite grosso e branco, não o dela. Velhos mamilos mirrados. Ela derramou novamente uma medida completa e mais um pouco. Velha e reservada ela viera de um mundo matinal, talvez uma mensageira. Ela louvou as qualidades do leite, ao derramá-lo. Acocorada junto a uma vaca paciente ao raiar do dia no campo luxuriante, uma bruxa sobre o seu cogumelo, seus dedos enrugados rápidos nas tetas esguichantes. Elas mugiam à volta dela que tão bem conheciam, gado de pêlo úmido e sedoso. Seda do gado e pobre mulher velha, nomes dados a ela em tempos idos. Uma velha mulher errante, forma humilde de um imortal servindo seu conquistador e seu alegre traidor, corneada em comum acordo pelos dois, uma mensageira da manhã secreta. Servir ou reprovar, qual dos dois ele não poderia dizer; mas escarnecida a implorar seu favor.

– É mesmo, mulher – disse Buck Mulligan, derramando leite nas xícaras deles.

– Prove, senhor – disse ela.

Ele bebeu a pedido dela.

– Se pudéssemos viver de um alimento bom como esse – disse ele a ela numa voz um tanto elevada –, nós não teríamos um país cheio de dentes podres e de vísceras podres. Vivendo num lodaçal, comendo comida barata e com ruas cobertas de pó, de esterco de cavalo e de escarros de tuberculosos.

– O senhor é estudante de medicina? – perguntou a velha.

– Sou, mulher – respondeu Buck Mulligan.

– Ora vejam só – disse ela.

Stephen ouvia em desdenhoso silêncio. Ela inclina sua velha cabeça para uma voz que fala alto com ela, seu consertador-de-ossos, seu homem-médico: a mim ela menospreza. À voz que vai absolvê-la e ungir para o túmulo tudo que existe dela exceto suas entranhas sujas de mulher, feitas da carne do homem não à semelhança de Deus, a presa da serpente. E à voz autoritária que lhe ordena agora que fique em silêncio com olhos vacilantes e atônitos.

– Você está entendendo o que ele diz? – perguntou Stephen a ela.

– É francês que o senhor está falando? – disse a velha a Haines.

Haines falou com ela novamente, confiantemente numa fala mais longa.

– É irlandês – disse Buck Mulligan. – Você pode falar gaélico?

– Eu achei que era irlandês – disse ela – pelo som. O senhor é do oeste, senhor?

– Eu sou um inglês – respondeu Haines.

– Ele é inglês – disse Buck Mulligan – e ele acha que nós devíamos falar irlandês na Irlanda.

– E nós devíamos mesmo – disse a velha –, e eu estou envergonhada porque eu mesma não falo a língua. Eu ouvi dizer que é uma grande língua por aqueles que a conhecem.

– Grande não é bem a palavra para ela – disse Buck Mulligan. – Totalmente maravilhosa. Encha nossa xícara de mais chá, Kinch. A senhora quer uma xícara, dona?

– Não, obrigada, senhor – disse a velha, deixando deslizar até seu antebraço a asa do latão de leite e prestes a partir.

Haines disse a ela:

– A senhora tem aí a sua conta? Seria melhor que nós a pagássemos, você não acha Mulligan?

Stephen encheu novamente as três xícaras.

– Conta, senhor? – disse ela, parando. – Bem, são sete manhãs um quartilho por dois pence é sete vezes dois é um shilling e dois pence passados e estas três manhãs um quarto por quatro pence é três quartos é um shilling. Isto é um shilling e um e dois é dois e dois, senhor.

Buck Mulligan suspirou e, tendo enchido a boca com uma crosta de pão com bastante manteiga dos dois lados, esticou as pernas para a frente e começou a procurar nos bolsos de sua calça.

– Pague e se mostre satisfeito – disse Haines sorrindo para ele.

Stephen encheu uma terceira xícara, colorindo ligeiramente o chá com uma colher do leite grosso e forte. Buck Mulligan ergueu um florim, torceu-o em volta dos dedos e gritou:

– Um milagre!

Ele o passou pela mesa até a velha mulher, dizendo:

Não me peça mais nada, doçura,
Tudo que eu posso lhe dar eu lhe dou.


Stephen pôs a moeda na mão nada ansiosa dela.

– Ficamos lhe devendo dois pence – disse ele.

– Tem bastante tempo, senhor – disse ela, pegando a moeda. – Bastante tempo. Bom dia, senhor.

Ela fez uma reverência e saiu, seguida do canto terno de Buck Mulligan:

Amor dos meus amores, houvesse mais,
E mais seria depositado aos seus pés.


Ele se voltou para Stephen e disse:

– Para falar seriamente, Dedalus. Eu estou sem um níquel. Corra para o seu colégio e nos traga de volta algum dinheiro. Hoje os bardos precisam beber e festejar. A Irlanda espera que todo homem neste dia cumpra o seu dever.

– Isso me lembra – disse Haines se levantando – que eu tenho que visitar hoje a sua biblioteca nacional.

– O nosso banho de mar primeiro – disse Buck Mulligan.

Ele se voltou para Stephen e perguntou brandamente:

– É hoje o dia de sua lavagem mensal, Kinch?

Em seguida ele disse a Haines:

– O imundo bardo insiste em se lavar uma vez por mês.

– Toda a Irlanda é lavada pela corrente do golfo – disse Stephen enquanto deixava pingar mel em uma fatia de pão.

Haines do canto em que estava dando facilmente nó na echarpe em volta do colarinho aberto de sua camisa de tênis disse:

– Eu tenciono fazer uma coleção dos seus ditos se você me permitir.

Falando comigo. Eles se lavam e se banham e se esfregam. Remorso de consciência. Consciência. No entanto eis aqui uma mancha.

– Aquele sobre o espelho rachado de uma criada ser o símbolo da arte irlandesa é tremendamente bom.

Buck Mulligan chutou o pé de Stephen por baixo da mesa e disse em tom caloroso:

– Espere até ouvi-lo sobre Hamlet, Haines.

– Bem, eu estou falando sério – disse Haines, ainda se dirigindo a Stephen. – Eu estava exatamente pensando nisso quando aquela pobre criatura entrou.

– Eu ganharia algum dinheiro com isso? – perguntou Stephen.

Haines riu e, enquanto tirava seu macio chapéu cinzento do gancho da rede, disse:

– Eu não posso dizer, com certeza.

Ele saiu perambulando para a porta. Buck Mulligan se inclinou para Stephen e disse de maneira vigorosa e áspera:

– Agora você meteu os pés pelas mãos. Por que você disse isso?

– E daí? – disse Stephen. – O problema é ganhar dinheiro. De quem? Da leiteira ou dele. É uma questão duvidosa, eu creio.

– Eu faço o seu cartaz com ele – disse Buck Mulligan – e então você vem com seu olhar de soslaio nojento e com suas chacotas jesuítas sombrias.

– Eu vejo pouca esperança – disse Stephen – vindo dela ou dele.

Buck Mulligan suspirou tragicamente e pôs a mão no braço de Stephen

– Vindo de mim, Kinch – disse ele.

Num tom de voz subitamente mudado ele acrescentou:

– Para falar com toda a sinceridade eu acho que você está certo. Dane-se tudo o mais para o qual eles sirvam. Por que você não os manobra como eu faço? Para o inferno com todos eles. Vamos sair da hospedaria.

Ele se levantou, desamarrou solenemente o cinto e despiu seu penhoar dizendo resignadamente:

– Mulligan está despojado de suas vestes.

Ele esvaziou os bolsos sobre a mesa.

– Aqui está seu traponasal – disse ele.

E colocando seu colarinho duro e a gravata rebelde ele falou com eles ralhando com eles e com a corrente oscilante de seu relógio. Suas mãos mergulharam e inspecionaram seu tronco enquanto ele clamava por um lenço limpo. Remorso de consciência. Meu Deus, nós simplesmente temos que vestir o personagem. Eu quero luvas de pelica e botas verdes. Contradição. E eu me contradigo? Muito bem então, eu me contradigo. Malachi mercurial. Um projétil preto, mole, voou de suas mãos falantes.

– E aí está o seu chapéu do Quartier Latin – disse ele.

Stephen o apanhou e o pôs na cabeça. Haines os chamou da porta.

– Vocês vêm, rapazes?

– Eu estou pronto – respondeu Buck Mulligan, indo para a porta. – Saia, Kinch. Você comeu tudo o que nós deixamos, eu creio.

Resignado ele saiu com palavras e passos solenes, dizendo, quase com tristeza:

– E saindo ele encontrou Butterly.

Pegando sua bengala do porta-guarda-chuvas, Stephen os seguiu para fora e, enquanto eles desciam a escada, puxou a lenta porta de ferro e a trancou. Pôs a chave pesada no seu bolso interno.

Ao pé da escada Buck Mulligan perguntou:

– Você trouxe a chave?

– Eu a tenho – disse Stephen, passando à frente deles.

Ele continuou andando. Atrás dele ele ouviu Buck Mulligan dar pauladas com sua toalha de banho pesada nos rebentos terminais de samambaias e gramas.

– Pra baixo, senhor! Como ousa, senhor!

Haines perguntou:

– Vocês pagam aluguel por esta torre?

– Doze libras – disse Buck Mulligan.

– Ao secretário de Defesa do estado – acrescentou Stephen por cima do ombro.

Eles pararam enquanto Haines observava cuidadosamente a torre e finalmente dizia:

– Bastante fria no inverno, eu diria. Vocês a chamam Martello, não é?

– Billy Pitt as mandou construir – disse Buck Mulligan – quando os franceses estavam no mar. Mas a nossa é o omphalos.

– Qual a sua ideia sobre Hamlet? – perguntou Haines a Stephen.

– Não, não – gritou Buck Mulligan aflito. – Eu não sou igual a Tomás de Aquino com as cinqüenta e cinco razões que ele criou para sustentar isso. Espere até que eu tenha tomado primeiro algumas cervejas.

Ele se voltou para Stephen, dizendo, à medida que puxava para baixo as pontas de seu colete amarelo-claro:

– Você não conseguiria fazer isso com menos de três cervejas, Kinch, conseguiria?

– Já se esperou tanto tempo – disse Stephen indiferentemente –, que se pode esperar mais.

– Vocês aguçam minha curiosidade – disse Haines amavelmente. – É algum paradoxo?

– Ora! – disse Buck Mulligan. – Nós superamos Wilde e os paradoxos. É muito simples. Ele prova por álgebra que o neto de Hamlet é o avô de Shakespeare e que ele próprio é o fantasma de seu próprio pai.

– O quê? – disse Haines começando a apontar para Stephen. – Ele próprio?

Buck Mulligan atirou sua toalha à maneira de uma estola em volta do pescoço e, se inclinando para soltar uma gargalhada, disse no ouvido de Stephen:

– Ó, sombra de Kinch o mais velho! Jafé à procura de um pai!

– Nós estamos sempre cansados de manhã – disse Stephen a Haines. – E é uma história bastante longa para contar.

Avançando novamente, Buck Mulligan ergueu as mãos.

– Só a sagrada cerveja pode desatar a língua de Dedalus – disse ele.

– Eu quero dizer – explicou Haines a Stephen enquanto eles prosseguiam – que esta torre e estes penhascos aqui me lembram de certa forma Elsinore. Que se projeta acima de sua base dentro do mar, não é?

Subitamente Buck Mulligan se voltou por um instante para Stephen mas não falou. No instante breve e silencioso Stephen viu sua própria imagem de luto barato e empoeirado entre os trajes alegres deles.

– É um conto maravilhoso – disse Haines, fazendo-os parar novamente.

Olhos, pálidos como o mar que o vento refrescara, mais pálidos, firmes e prudentes. O rei dos mares, ele olhou em direção ao sul por sobre a baía, vazia a não ser pela fumaça emplumada do barco-correio vago no horizonte claro e uma vela bordejando Muglins.

– Eu li uma interpretação teológica disso em algum lugar – disse ele confundido. – A ideia de Pai e de Filho. O Filho se esforçando por se identificar com o Pai.

Imediatamente Buck Mulligan sorrindo mostrou um rosto sorridente e amplamente satisfeito. Ele olhou para eles, com sua boca bem delineada alegremente aberta, seus olhos, dos quais retirara subitamente todo traço de esperteza, piscando com uma jovialidade louca. Moveu sua cabeça de boneca de um lado para o outro, com as abas do seu chapéu-panamá tremulando, e começou a entoar com uma voz pacata feliz e tola:

Eu sou um fulano muito esquisitinho.
Minha mãe é judia, meu pai passarinho.
José carpinteiro não sabe o que faz.
E eu brindo ao Calvário e coisas que tais.


Ele ergueu um dedo indicador como aviso:

Os que ainda duvidam que eu sou divindade
Não vão tomar o vinho que eu farei à vontade
Vão ter que beber água e a água somente
Que verto quando o vinho vira água novamente.


Ele puxou com força a bengala de Stephen em sinal de despedida e, correndo para o cimo do penhasco escarpado, fez seus dedos tremularem dos lados do corpo como barbatanas ou asas prestes a se erguer no ar, e entoou:

Então, adeus, adeus! Escrevam o que falei
E contem a todo mundo que eu ressuscitei
Meu talento inato não pode falhar
E com a brisa do Jardim eu hei de voar.


Ele saltou na frente deles em direção ao buraco de quarenta pés de profundidade, pulando lépido, com as mãos tremulando como se fossem asas, o chapéu de Mercúrio oscilante ao sopro do vento trazendo de volta até eles os gritos suaves e curtos dos passarinhos.


continua na página 30...
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Ulisses - Parte 1 (1c): O vão da porta
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Joyce, James 
Ulisses [recurso eletrônico] / James Joyce ; tradução Bernardina da Silveira Pinheiro ; [seleção, elaboração e tradução das notas de capítulos Flavia Maria Samuda]. - Rio de Janeiro : Objetiva, 2010. Romance irlandês.

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