segunda-feira, 13 de fevereiro de 2023

Moby Dick: 12 - Biográfico

Moby Dick


Herman Melville



12 - BIOGRÁFICO

Queequeg era nativo de Kokovoko, uma ilha distante ao Oeste e Sul. Não está em nenhum mapa; os verdadeiros lugares nunca estão.

Quando era apenas um jovem selvagem correndo por suas florestas nativas numa tanga de capim, seguido por cabras que o mordiscavam como se ele fosse um broto verde, já naquela época, na alma ambiciosa de Queequeg espreitava o forte desejo de ver algo mais da Cristandade do que apenas alguns exemplares de baleeiros. Seu pai era um Grande Chefe, um Rei; seu tio, um Grande Sacerdote; e pelo lado materno podia ostentar tias que eram esposas de guerreiros invencíveis. Havia excelente sangue em suas veias – sangue real; embora infelizmente viciado, receio, dada a propensão ao canibalismo que alimentou em sua juventude desprovida de tutores.

Um navio de Sag Harbor visitou a baía de seu pai e Queequeg pediu uma passagem a bordo para as terras Cristãs. Mas o navio, estando com a tripulação completa, recusou seu pedido; nem toda a influência do Rei, seu pai, conseguiu persuadi-los. Mas Queequeg fez um juramento. Sozinho em sua canoa, remou até um estreito distante, por onde sabia que o navio teria de passar quando saísse da ilha. De um lado havia um recife de coral; do outro, uma língua estreita de terra, coberta por espessos manguezais que cresciam na água. Escondendo a canoa, ainda dentro dela, no mangue, com a proa apontada para o mar, sentou-se na popa, os remos nas mãos; quando o navio passou, ele partiu como um raio; emparelhou com ele; com um chute para trás, a canoa virou e afundou; subiu pelas correntes; e, atirando-se de bruços no convés, agarrou uma cavilha de arganéu e jurou que não a largaria nem que o cortassem em pedaços.

Em vão o capitão ameaçou atirá-lo ao mar; ergueu um facão sobre os seus pulsos descobertos; Queequeg era filho de Rei, e Queequeg não se mexeu. Intrigado por sua impetuosidade desesperada e seu desejo feroz de visitar a Cristandade, o capitão cedeu por fim e disse-lhe que podia ficar à vontade. Mas este admirável jovem selvagem – este Príncipe de Gales marítimo, nunca foi à cabine do Capitão. Puseram-no embaixo com os marinheiros e fizeram dele um baleeiro. Mas como o Czar Pedro, que quis trabalhar nos estaleiros de cidades estrangeiras, Queequeg não desdenhou tal ignomínia, desde que adquirisse o poder de ilustrar seus patrícios desavisados. Pois no fundo – assim me disse – impelia-o um desejo profundo de aprender com os Cristãos as artes por meio das quais pudesse fazer seu povo ainda mais feliz do que já era; e, mais do que isso, ainda melhor do que já era. Mas, ai!, o convívio com os baleeiros depressa o convenceu de que também os Cristãos podiam ser tanto infelizes quanto cruéis; infinitas vezes mais do que os pagãos de seu pai. Chegou finalmente em Sag Harbor; e vendo o que os marinheiros ali faziam; e seguindo para Nantucket; e vendo como gastavam os seus soldos naquele lugar, o pobre Queequeg desistiu. É um mundo perverso em todos os seus meridianos, pensou; vou morrer pagão.

E assim, idólatra convicto, ele viveu entre os Cristãos, vestiu as suas roupas e tentou falar suas galimatias. Por isso tinha modos estranhos, embora havia muito estivesse longe de sua terra.

Perguntei-lhe por gestos se não pretendia voltar e ser coroado; visto que seu pai já deveria ter morrido, pela idade e fragilidade, segundo os últimos relatos. Disse que não, ainda não; e acrescentou que receava que a Cristandade, ou melhor, os Cristãos, o tinha tornado inadequado para subir ao trono puro e imaculado dos trinta Reis pagãos antes dele. Mas que, em breve, voltaria, disse – assim que se sentisse rebatizado. Contudo, por algum tempo, ainda queria navegar e deixar suas sementes por todos os quatro oceanos. Tinham feito dele arpoador, e aquele ferro farpado ocupava agora o lugar de um cetro.

Perguntei-lhe qual era seu propósito imediato, em relação aos movimentos futuros. Respondeu que queria ir ao mar de novo, seguindo sua antiga vocação. Em vista disso, declarei que a caça da baleia também era meu desígnio, e conteilhe sobre minha intenção de partir para Nantucket, por ser o porto mais promissor para um baleeiro aventureiro embarcar. Ele decidiu na mesma hora me acompanhar até aquela ilha, embarcar no mesmo navio, fazer a mesma vigília, no mesmo barco, na mesma enrascada que eu, em suma, partilhar de minha sorte; com as minhas duas mãos nas suas, mergulhá-las na gororoba de ambos os mundos. Concordei alegre com tudo; porque, além da afeição que sentia por Queequeg, ele era um arpoador experiente e, como tal, de grande valia para alguém que, como eu, era totalmente ignorante dos mistérios da caça de baleias, embora conhecesse bem o mar, como conhecem os marinheiros mercantes.

Terminando sua história com uma última tragada, Queequeg me abraçou, apoiou sua fronte na minha e, apagando o candeeiro, viramos cada um para seu lado e logo estávamos dormindo.

Continua na página 67...

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Moby Dick: 12 - Biográfico
Moby Dick: 13 - Carrinho de mão
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Moby Dick é um romance do escritor estadunidense Herman Melville, sobre um cachalote (grande animal marinho) de cor branca que foi perseguido, e mesmo ferido várias vezes por baleeiros, conseguiu se defender e destruí-los, nas aventuras narradas pelo marinheiro Ishmael junto com o Capitão Ahab e o primeiro imediato Starbuck a bordo do baleeiro Pequod. Originalmente foi publicado em três fascículos com o título "Moby-Dick, A Baleia" em Londres e em Nova York em 1851,


O livro foi revolucionário para a época, com descrições intrincadas e imaginativas do personagem-narrador, suas reflexões pessoais e grandes trechos de não-ficção, sobre variados assuntos, como baleias, métodos de caça a elas, arpões, a cor do animal, detalhes sobre as embarcações, funcionamentos e armazenamento de produtos extraídos das baleias.

O romance foi inspirado no naufrágio do navio Essex, comandado pelo capitão George Pollard, que perseguiu teimosamente uma baleia e ao tentar destruí-la, afundou. Outra fonte de inspiração foi o cachalote albino Mocha Dick, supostamente morta na década de 1830 ao largo da ilha chilena de Mocha, que se defendia dos navios que a perturbavam.

A obra foi inicialmente mal recebida pelos críticos, assim como pelo público por ser a visão unicamente destrutiva do ser humano contra os seres marinhos. O sabor da amarga aventura e o quanto o homem pode ser mortal por razões tolas como o instinto animal, sendo capaz de criar seus fantasmas justamente por sua pretensão e soberba, pode valer a leitura. 


E você com o quê se identifica?


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