quarta-feira, 22 de fevereiro de 2023

Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Sétimo - O processo de Champmathieu / III — Tempestade num crânio

Victor Hugo - Os Miseráveis


Primeira Parte - Fantine

Livro Sétimo — O processo de Champmathieu


III — Tempestade num crânio


Sem dúvida o leitor já adivinhou que Madelaine não era outro senão Jean Valjean.
Já deitámos um olhar para as profundidades desta consciência; é, todavia, chegada nova ocasião de lançar-lhes outro olhar. Não o fazemos, porém, sem emoção e estremecimento, porque não há nada mais aterrador do que esta espécie de contemplação. Os olhos do espírito não podem encontrar em parte alguma mais deslumbramentos nem mais trevas do que no homem, nem fixar-se em coisa nenhuma, que seja mais temível, complicada, misteriosa e infinita. Há um espetáculo mais grandioso ainda do que o céu, é o íntimo da alma.
Fazer o poema da consciência humana, ainda que não fosse senão em relação a um só homem, mesmo ao mais ínfimo dos homens, seria fundir todas as epopeias em uma só epopeia superior e definitiva. A consciência é o caos das quimeras, das ambições e das tentativas, é a fornalha dos sonhos, o antro das ideias vergonhosas: é o pandemónio dos sofismas, o campo de batalha das paixões. Penetrai, em certos momentos, através da face« lívida de um ente humano absorvido pela reflexão e olhai para além, observai-lhe a alma, contemplai-lhe a escuridão. Há ali, sob a superfície límpida do silêncio exterior, combates de gigantes como em Homero, brigas de dragões, de hidras, e nuvens de fantasmas, como em Milton, espirais visionárias como em Dante. Sombria coisa é o infinito que todo o homem contém em si e pelo qual ele regula desesperado as vontades do seu cérebro e as ações da sua vida!
Alighieri encontrou um dia uma porta sinistra, em frente da qual estacou vacilante. Eis-nos também em frente de uma, em cujo limiar do mesmo modo hesitamos. Contudo, entremos.
Pouco temos que acrescentar ao que o leitor já conhece do que sucedera a Jean Valjean, após o seu encontro com o pequenito Gervásio. Desde esse momento, tornara-se outro homem. Executou cabalmente os desejos do bispo. Foi mais do que uma transformação, foi uma transfiguração.
Conseguiu desaparecer, vendeu as pratas do bispo, conservando apenas os castiçais como recordação, andou de cidade em cidade, atravessou a França, veio para Montreuilsur-mer, concebeu e efetuou a ideia que já conhecemos, chegou a tornar-se inacessível a qualquer perseguição, e depois de tudo isto, estabelecido em Montreuil-sur-mer, feliz por sentir a consciência contristada pela recordação do seu passado e a primeira parte da sua vida desmentida pela segunda, passou a viver tranquilo, pacífico e cheio de esperanças, dominado apenas por dois pensamentos: ocultar o seu nome e santificar a vida; escapar aos homens e restituir-se a Deus.
Estes dois pensamentos Tinha-os ele tão estreitamente ligados no espírito, que quase formavam um só; ambos igualmente absorventes e imperiosos, dominavam-lhe as mínimas ações. De ordinário, achavam-se sempre de acordo para regular os procedimentos da sua vida; faziam-no encarar incessantemente as sombras, tornavam-no benévolo e simples, davam-lhe ambos os mesmos conselhos. Todavia, davam-se algumas vezes conflitos entre eles. Em tais circunstâncias, todos se recordam, o homem a que toda a gente de Montreuil-sur-mer chamava de senhor Madelaine não hesitava nunca em sacrificar o primeiro ao segundo; a segurança à virtude. Deste modo, a despeito de toda a reserva e prudência, conservara os castiçais do bispo, cobrira-se de luto pela sua morte, chamava e interrogava todos os rapazinhos saboianos que passavam pela cidade, diligenciava obter informações sobre as famílias de Faverolles e salvara a vida ao velho Fauchelevent, apesar das inquietadoras insinuações de Javert. Parecia julgar, como já notámos, a exemplo de todos os que têm sido sábios, santos e justos, que os seus primeiros cuidados não deviam ser nunca em proveito próprio.
Contudo, é necessário dizê-lo, ainda se não tinha apresentado nada de semelhante como o presente caso. Jamais as duas ideias que governavam o homem infeliz, cujos sofrimentos aqui narramos, haviam travado tão séria luta. Compreendeu-o ele confusa, mas profundamente, às primeiras palavras que Javert pronunciara quando entrou no seu gabinete.
No momento em que, de modo tão abrupto, ouviu articular aquele nome, que ocultava sob tão grandes espessuras, sentiu-se atacado de paralisia, embriagado pelo sinistro capricho do seu destino, invadido pelo estremecimento que precede os grandes abalos; curvou-se como o carvalho à aproximação da tormenta, como o soldado chegado o momento do assalto; sentiu descerem-lhe sobre a cabeça terríveis sombras, pejadas de raios e de relâmpagos sinistros. Ao escutar Javert, o primeiro pensamento que o assaltara, fora correr a denunciar-se, livrar Champmathieu da prisão e colocar-se em seu lugar; esta ideia, porém, foi-lhe tão dolorosa e pungente como uma incisão na carne viva; depois passou e ele disse consigo: «Veremos! Veremos». Reprimindo o primeiro impulso generoso e recuando ante o heroísmo
Seria belo, sem dúvida, depois das santas palavras do bispo, ao cabo de tantos anos de arrependimento e abnegação, no meio de uma penitência tão admiravelmente principiada, que este homem, mesmo em presença de tão terrível conjuntura, não tivesse hesitado um instante e continuasse a caminhar com o mesmo passo para o precipício aberto diante de si, no fundo do qual estava o céu; teria sido belo, mas não foi assim. Devemos dar conta das coisas que se passavam naquela alma e não podemos dizer senão o que lá se encontrava. O que primeiro o dominou foi o instinto da conservação; reatou à pressa o fio das suas ideias, sufocou as emoções que sentia, considerou a presença de Javert, perigo enorme, desviou, com a firmeza do terror, qualquer resolução que pudesse tomar, fez por olvidar o que devia fazer e tomou de novo o seu ar sossegado, como um lutador levantando o escudo.
Passou o resto do dia neste estado um turbilhão lá dentro, uma tranquilidade profunda cá fora, tomando apenas o que se poderia chamar «medidas de conservação». No cérebro tudo se lhe debatia ainda em confusão; a perturbação ali era tal, que não lhe deixava ver distintamente a forma de nenhuma ideia; ele próprio não poderia dizer de si mesmo senão que recebera um grande golpe. Transportou-se, como de costume, para junto do leito de Fantine, e prolongou a sua visita, por um instinto de bondade, dizendo a si mesmo que era necessário proceder assim e recomendá-la bem às irmãs, para o caso em que acontecesse ele ter de ausentar-se. Conhecia vagamente que teria talvez de ir a Arras; e sem de nenhum modo se haver resolvido a semelhante Viagem, disse consigo que, estando ao abrigo de qualquer suspeita, como ele o estava, não havia inconveniente em ser testemunha do que se passasse; e alugou o tilbury a Scaufflaire, a fim de estar preparado para o que pudesse acontecer.
Jantou com bastante apetite, e apenas entrou para o quarto, pôs-se a meditar.
Examinou a situação e achou-a inaudita; de tal modo inaudita, que no meio das suas cogitações, levado por um impulso de ansiedade, quase inexplicável, ergueu-se da cadeira em que estava sentado e foi correr os ferrolhos da porta. Receou que entrasse ainda mais alguma coisa. Fortificou-se contra o possível.
Pouco depois apagou a vela. A luz incomodava-o.
Parecia-lhe que podiam vê-lo. Mas quem?
Quem ele queria evitar que entrasse, entrara já; quem ele queria cegar, fitava-o. Era a sua consciência.
A sua consciência, isto é, Deus
Todavia, no primeiro momento, chegou a iludir-se; teve certo sentimento de segurança e de solidão; corridos os fechos da porta, tornou-se inexpugnável; extinta a luz sentiu-se invisível. Tornou-se então senhor de si, fincou os cotovelos na mesa, apoiou a cabeça nas mãos e pôs-se a meditar nas trevas.
«Onde estou eu? Não será tudo isto um sonho? O que foi que me disseram? É realmente verdade que vi o Javert e que ele me falou daquele modo? Quem será esse Champmathieu? Será possível que se pareça comigo a tal ponto? Quando me lembro de que ainda ontem estava tão tranquilo e longe de suspeitar semelhantes coisas! Que fazia eu ontem a esta hora? O que há, pois, em todo este incidente? Qual será o seu destino? Que hei-de fazer?»
Eis a tormenta que o agitava. As ideias passavam-lhe como ondas pelo cérebro, que perdera a força de as reter; e ele para o conseguir apertava a fronte entre as mãos.
Deste tumulto que lhe abalava a vontade e a razão, e do qual ele procurava tirar uma evidência e uma resolução, saía apenas livre a angústia.
A cabeça escaldava-lhe. Dirigiu-se para a janela e abriu-a de par em par. No céu não havia uma só estrela.
Em seguida foi novamente sentar-se junto da mesa.
Decorreu deste modo a primeira hora.
Entretanto, a pouco e pouco, começaram a formar-se-lhe no meio da meditação uns vagos delineamentos e pôde entrever com a exatidão da realidade, não o conjunto da situação, mas alguns pormenores.
Principiou por reconhecer que por mais extraordinária e crítica que fosse a sua situação, estava completamente senhor dela.
O seu espanto tornou-se ainda mais intenso.
Independentemente do severo e religioso fim a que visavam as suas ações, tudo quanto fizera até àquele dia não fora mais do que aprofundar a cova em que enterrara o seu nome. Era o seu nome o que ele sempre mais temera ouvir pronunciar nas suas horas de insónia dizia consigo próprio que seria esse o fim de tudo para ele; no dia em que esse nome tornasse a aparecer, o seu desaparecimento faria desvanecer em torno de si a sua vida nova, e quem sabe se talvez no interior dele a sua nova alma?
Estremecia só com a lembrança da possibilidade de semelhante pensamento. com efeito, se alguém naquelas ocasiões lhe houvesse dito que chegaria uma hora em que esse nome lhe soaria aos ouvidos, em que esse medonho nome Jean Valjean sairia subitamente da profunda obscuridade em que jazia e se ergueria diante dele, em que essa luz temível, feita para dissipar o mistério em que ele se envolvia, resplandeceria de improviso a seus olhos, e que esse nome o não ameaçaria, que essa luz só produziria uma obscuridade mais espessa, que o rasgar desse véu aumentaria mais o mistério, que aquele tremor de terra consolidaria o seu edilício, que esse prodigioso incidente não teria outro resultado, se a ele lhe aprouvesse, senão tornar-lhe a existência juntamente mais límpida e mais impenetrável, e que do seu confronto com o fantasma de Jean Valjean sairia o bom e digno burguês Madelaine, mais honrado, mais tranquilo e mais respeitado do que nunca; se alguém lhe tivesse dito tudo isto, encolheria os ombros e julgaria insensatas tais palavras. Pois bem! Fora precisamente o que lhe sucedera; tão grande montão de impossíveis era um facto e Deus permitira que tamanhas loucuras se tornassem realidades!
As suas visões continuavam a esclarecer-se; cada vez ia adquirindo mais profundo conhecimento da sua posição.
Parecia-lhe que acabava de acordar de um estranho sono e que no meio da noite, de pé, à beira de um abismo, diligenciando em vão recuar, resvalava para ele num declive rápido e inevitável. No mais denso das sombras entrevia um desconhecido que o desƟno se comprazia em tornar seu subsƟtuto e que o impelia em seu lugar para o medonho abismo. Era necessário que um ou outro caísse no precipício, para que ele se fechasse. Não havia mais do que deixar correr as coisas. A luz chegou à sua maior intensidade, e ele confessou a si próprio que o seu lugar nas galés estava vago; que, por mais que fizesse, elas lá o esperavam; que o roubo ao pequenito Gervásio ali o conduziria outra vez que esse lugar vazio o aguardava e atrairia até que o fosse preencher, o que era inevitável e fatal. Em seguida disse ainda para consigo que naquele momento tinha um substituto, porque parecia que um tal Champmathieu tomava essa crítica posição e que quanto a ele, presente nas galés na pessoa desse Champmathieu, presente na sociedade debaixo do nome de Madelaine, já nada tinha a temer, contanto que não obstasse a que os homens selassem sobre a cabeça desse Champmathieu, essa pedra de infâmia que, semelhante à pedra do sepulcro, uma só vez cai, para nunca mais se erguer.
Isto tudo era tão violento e extraordinário que subitamente se operou nele o movimento indescritível que nenhum homem experimenta mais de duas ou três vezes na vida, espécie de convulsão da consciência, que revolve quanto o coração contém de duvidoso, que se compõe de ironia, de alegria e desespero, e que bem poderia chamar-se uma gargalhada íntima.
De repente acendeu precipitadamente a vela e disse consigo:
«Mas que devo eu temer? Para que hei-de pensar nestas coisas? Estou salvo! Acabou-se tudo! Não havia senão uma porta entreaberta pela qual o passado poderia irromper na minha vida, e essa porta está para sempre fechada! Esse Javert que há tanto tempo me perturba, esse temível instinto que parecia ter-me adivinhado, que me adivinhou e que por toda a parte me seguia; esse medonho rafeiro que me não perdia a pista, ei-lo fora do rasto, atento para outra parte, absolutamente desnorteado! Agora está satisfeito, encontrou o seu Jean Valjean; deixar-me-á, portanto, tranquilo! Quem sabe? Talvez até queira sair da cidade! Fez-se tudo sem que eu desse um passo! Não entrei com coisa alguma em tudo isto! Mas, de facto, o que pode haver de desgraça neste acontecimento? Palavra de honra que quem me visse havia de julgar que me sucedeu alguma catástrofe! Afinal de contas, se isto acarreta prejuízo a alguém, não é minha a culpa. É tudo devido à Providência, que aparentemente assim o quer! Tenho eu porventura direito de contrariar os seus desígnios? O que exijo eu presentemente? Em que me vou envolver? Sou estranho a tudo! De que é que preciso? O fim a que tenho aspirado por tantos anos, o sonho de todas as minhas noites, o objeto das minhas súplicas ao céu, a segurança, alcancei-a definitivamente! E para que o quer Deus? Para que eu continue o que comecei, para que pratique o bem, para que possa ser um dia grande e animador exemplo, para que chegue a dizer que houve enfim alguma felicidade ligada à penitência que tenho cumprido e à virtude a que voltei! Realmente não compreendo porque tive medo de entrar em casa do excelente cura, de lhe contar tudo como a um confessor e de lhe pedir conselho; ter-me-ia evidentemente dito o mesmo que tenho pensado. Está decidido, deixemos caminhar as coisas! Deixemos completar a obra de Deus!»
Assim raciocinava ele no mais íntimo da consciência, debruçado sobre o que poderia chamar-se o seu próprio abismo. Levantou-se por fim da cadeira e pôs-se a passear no quarto.

— Vamos — disse ele, falando consigo próprio —, não pensemos mais nisto. Estou resolvido!

Não sentiu, porém, a mínima alegria. Pelo contrário.
Pretender obstar a que o pensamento volte a ocupar-se de uma ideia, seria o mesmo que querer impedir o mar de voltar a humedecer a areia da praia. Para o marinheiro, chama-se isto a maré; para o criminoso, chama-se remorso. Deus agita a alma, como agita o oceano.
Passados instantes e por mais que fizesse, continuou o sombrio diálogo, em que era de que falava e quem escutava, dizendo o que desejaria calar, escutando o que desejaria não ouvir, cedendo a essa potência misteriosa que lhe dizia: Pensa! Como há dois mil anos dizia a outro condenado: Caminha!
Antes de nos adiantarmos mais e para sermos completamente compreendidos, insistamos numa observação necessária.
É certo que o homem fala a si mesmo; não há um único ser racional que o não tenha experimentado. Pode mesmo dizer-se que o mistério do Verbo nunca é mais magnífico do que quando, no interior do homem, vai do pensamento à consciência e volta da consciência ao pensamento. É somente neste sentido que devem ser entendidas até palavras, frequentemente empregadas neste capítulo: disse, exclamou: diz, fala, exclama, cada um consigo mesmo, sem que seja quebrado o silêncio exterior. Há um grande tumulto; tudo fala em nós, exceto a boca. As realidades da alma, por não serem visíveis e palpáveis, nem por isso deixam de ser também realidades.
Aquele homem perguntou, pois, a si próprio em que ponto estava. Interrogou-se sobre aquela «resolução tomada». Confessou a si mesmo que tudo o que ele acabava de dispor no seu espírito era monstruoso, que «deixar correr as coisas e não se opor à vontade de Deus», era nem mais nem menos do que uma coisa horrível. Consentir que se consumasse aquele engano do destino e dos homens, não o impedir, antes favorecê-lo com o seu silêncio, nada fazer enfim, era fazer tudo, era o último grau da indignidade hipócrita, era um crime baixo, cobarde, dissimulado, hediondo, abjeto!
Pela primeira vez, ao cabo de oito anos, o desgraçado sentia o amargo sabor de um mau pensamento e de uma má ação.
Cheio de desgosto cuspiu-a de si e continuou a interrogar-se. Perguntou a si mesmo severamente o que entendera por: «Alcancei o meu fim!» Declarou que tinha, com efeito, um fim na vida. Mas qual era esse fim? Ocultar o seu nome? Iludir a polícia? Era por uma coisa tão pequena, que fizera quanto tinha feito? Porventura não tinha outro fim, que fosse o grande, o verdadeiro fim? Salvar, não a sua pessoa, mas a sua alma, tornar a ser honrado e bom, ser um justo! Não era isto o que ele sobretudo, o que ele unicamente desejara sempre e o que o bispo lhe ordenara: Fechar a porta ao seu passado? Mas é que ele não a fechava, grande Deus, abria-a, praticando uma ação infame; tornava-se um ladrão e o mais odioso dos ladrões: roubava a outro a sua existência, a vida, a paz, o seu lugar ao sol que nos alumia; tornava-se um assassino, matava moralmente um mísero homem, infligindo-lhe a medonha morte lenta, a morte a céu descoberto, que se chama galés!
Pelo contrário, salvar esse homem, vítima de um erro tão lúgubre, tornar a ser por dever o forçado Jean Valjean, era completar verdadeiramente a sua ressurreição e fechar para sempre o inferno de onde saíra!
Tornando a cair nele aparentemente, deixava-o na realidade! Era necessário fazer isto! Se o não fizesse, perderia quanto já fizera! Toda a sua vida teria sido estéril, toda a sua penitência se tornaria inútil! Bastava que dissesse: Para que fim? Sentia que o bispo estava ali, que se encontrava muito mais presente por já não existir, que não afastava dele os olhos, que dali em diante o maire Madelaine, mesmo com todas as suas virtudes, lhe parecia abominável e acharia puro e admirável o forçado Jean Valjean; que os homens só lhe viam a máscara, mas que o bispo lhe via o rosto; que os homens lhe viam a vida, mas que o bispo lhe via a consciência. Era indispensável, pois, ir a Arras libertar o suposto Jean Valjean e denunciar o verdadeiro! Ah, era este o maior dos sacrifícios, a mais pungente vitória, o último passo a dar, mas era indispensável! Doloroso destino! Não seria justo aos olhos de Deus sem tornar a ser infame aos olhos dos homens!

— Bem — disse ele —, adaptemos esta resolução, façamos o nosso dever, salvemos o homem.

Pronunciou estas palavras em voz alta, sem dar por tal.
Pegou nos livros, verificou-os e pô-los em ordem. Em seguida deitou fogo a um maço de obrigações de dívidas de que lhe eram devedores alguns comerciantes em más circunstâncias. Escreveu e fechou uma carta em cujo sobrescrito teria podido ler-se, se no quarto estivesse mais alguém naquela ocasião: «Ao senhor Laffite, banqueiro, rua d’Artois, Paris».
Em seguida tirou da secretária uma carteira que continha algumas notas de Banco e o passaporte de que naquele mesmo ano se servira para ir às eleições.
Quem o tivesse visto procedendo àquelas diversas operações a que ligava tão grande meditação, nem mesmo suspeitaria o que lhe ia na alma. O que fazia por vezes era mover os lábios, noutros momentos erguia a cabeça e fitava os olhos num ponto qualquer da parede, como se ali estivesse precisamente o que ele necessitava esclarecer ou interrogar.
Terminada a carta para Laffite, metera-a no bolso, assim como a carteira e continuou a passear no quarto.
A preocupação que o dominava não tivera o mínimo desvio. Continuava a distinguir claramente o seu dever, escrito em letras luminosas, que lhe fulguravam diante dos olhos e que via sempre para onde quer que olhasse: «Diz quem és! Denuncia-te!”
Via mesmo, e como se acaso se movessem diante dele com formas sensíveis, as duas ideias que tinham constituído até então a dupla regra da sua vida: ocultar o nome e santificar a alma. Pela primeira vez se lhe mostravam absolutamente distintas, podendo apreciar a diferença que as separava. Reconhecia que uma daquelas ideias era necessariamente boa, enquanto a outra podia tornar-se má; que aquela representava a dedicação e esta a personalidade; que uma dizia «o próximo» e a outra «eu»; que uma brotava da luz e a outra provinha das trevas. Estas duas ideias combatiam-se e ele assistia ao combate.
À proporção que meditava, iam-se-lhe elas tornando grandes aos olhos do espírito; atingiam já estaturas colossais; parecia-lhe que via lucrar em si mesmo, no infinito de que há pouco falámos, no meio de sombras e relâmpagos, uma deusa e um gigante.
Achava-se cheio de espanto, mas parecia-lhe que sentia vencer o pensamento bom. Conhecia que chegara a outro momento decisivo para a sua consciência e para o seu destino; que o bispo marcara a primeira fase da sua nova vida e que aquele Champmathieu lhe marcava a segunda. Após a grande crise, a grande prova.
Entretanto, a febre, por um momento acalmada, foi-lhe voltando a pouco e pouco. Mil pensamentos lhe atravessavam o cérebro, mas todos continuavam a fortificar-lhe a resolução
Por um momento dissera para consigo que tomara o caso talvez muito a sério porque, afinal de contas, esse Champmathieu era um ladrão, e por isso não merecia que se interessasse por ele.
Mas a este pensamento retorquiu ele: se este homem roubou, com efeito, alguma fruta, sofrerá apenas um mês de prisão. Daqui às galés vai muita distância. E quem sabe se roubou? Está isso porventura provado? O nome de Jean Valjean pesando sobre ele parece dispensar as provas. Não é deste modo que costumam proceder os procuradores régios? Julgam-no ladrão, porque o supõem forçado.
De outra veio-lhe à lembrança que lhe perdoariam, quando ele se denunciasse a si próprio, tomando em consideração o heroísmo do seu ato, a sua vida limpa de máculas há sete anos para cá e os serviços que prestara àquela terra.
Mas esta suposição desvaneceu-se logo, e ele sorriu-se amargamente, lembrando-se de que o roubo dos quarenta soldos feito ao rapazinho Gervásio o fazia reincidente, que esse processo reapareceria sem dúvida e que, nos termos da lei, o tornava réu de trabalhos forçados por toda a vida.
Afastou-se de toda a ilusão possível, desligou-se cada vez mais da terra, procurando consolação e força noutra parte, dizendo que era preciso cumprir o seu dever; que talvez depois de o ter cumprido não fosse mais desgraçado do que depois de o ter iludido; que s e deixasse correr as coisas, se ficasse em Montreuil-sur-mer, a consideração de que gozava, a sua boa reputação, as suas boas obras, a deferência e veneração com que o tratavam, a sua riqueza, popularidade e virtude, seriam temperadas com um crime. Que sabor poderiam ter estas coisas tão santas, ligadas a tal hediondez? Enquanto que se ele preenchesse o seu sacrifício, na prisão, no pelourinho, na golilha, no barrete verde, no trabalho incessante, na vergonha sem piedade, haveria em tudo aquilo um como sabor celeste!
Finalmente disse que havia necessidade disto, que assim estava decretado o seu destino, que não tinha direito de contrariar o que Deus dispunha, que em todo o caso era preciso escolher: ou a virtude fora e a abominação dentro, ou a santidade dentro e a infâmia fora.
Não lhe desfalecia o ânimo a revolver ideias tão lúgubres, mas fatigava-se-lhe o cérebro, de modo que já principiava, mau grado seu, a pensar em outras coisas, em coisas indiferentes.
Batiam-lhe violentas as artérias nas fontes, e ele ia e vinha sempre Soou meia-noite, primeiro no relógio da freguesia, depois na casa da câmara. Contou as doze badaladas, nos dois relógios, comparando o som dos dois sinos e lembrou-se nesta ocasião que alguns dias antes tinha visto em casa de um negociante de ferros velhos um sino que ali estava à venda, no qual se via gravado este nome: António Albino de Romainville.
Sentiu frio. Acendeu o fogão, mas não se lembrou de fechar a janela.
Em seguida tornou a cair em meditação. Foi-lhe necessário grande esforço para se recordar do que estava passando antes de ouvir bater a meia-noite. Por fim, sempre o conseguiu.

— Ah, sim! — murmurou ele. — Tinha resolvido denunciar-me. — De repente, lembrou-se de Fantine. — É verdade! E esta pobre mulher?

Aqui declarou-se nova crise.
Fantine, surgindo inopinadamente no meio da sua meditação, causava nele o efeito de inesperado raio de luz. Pareceu-lhe que tudo em volta de si mudava de aspecto e continuou a falar consigo próprio:

— Ainda não pensei senão em mim, não atendi senão a minha conveniência! Calar-me ou denunciar-me, ocultar a minha pessoa ou salvar a minha alma, ser um magistrado venerável e respeitado, ou um forçado infame e desprezível, são coisas que só a mim respeitam; é o eu, unicamente o eu! Mas, meu Deus! Isto é ser egoísta! São expressões diversas do egoísmo, mas sempre é egoísmo! Se eu pensasse um pouco nos outros? Ó primeiro dos mais santos deveres é pensar no próximo. Vejamos, examinemos! Posto eu de parte, desaparecendo, sendo esquecido, o que poderá suceder? Se me denuncio, prendem-me, soltam Champmathieu e tornam a mandar-me para as galés; muito bem e depois? O que se passa aqui? Aqui há um distrito inteiro, uma cidade cheia de fábricas, uma indústria, operários, homens, mulheres, velhos e crianças, uma multidão de pobre gente! Criei tudo isto, dei vida a tudo, em tudo, em todas as chaminés que deitam fumo foi o lume aceso por mim, fui eu quem meti na panela a carne para o jantar da família; produzi o bem-estar, estabeleci a circulação e o crédito; antes de mim não havia nada disto; animei, verifiquei, fecundei, estimulei e enriqueci todo o país, separando-me dele tiro-lhe a alma. Ausentando-me daqui, morre tudo. E esta mulher que tem padecido tanto, em cuja perdição há tantos motivos de estima e de quem eu, involuntariamente, ocasionei a última desgraça! E a criança que eu queria ir buscar, que prometi a sua mãe! Porventura não devo alguma coisa a essa mulher, em compensação do mal que lhe fiz? Se eu desapareço, que sucede? A mãe morre, a criança perde-se. Eis o que acontece se me denuncio. E se o não faço? Vejamos, se não me denuncio?

Depois de ter dirigido a si mesmo esta pergunta, parou; teve um momento de hesitação e de abalo, mas este momento foi rápido e respondeu com severidade:

— Esse homem vai para as galés, é verdade, mas que diabo! Para que roubou? Por mais que repita a mim mesmo o contrário, é um facto que roubou! Eu fico aqui, continuo como até agora. Em dez anos terei ganho dez milhões, espalho-os pelo país, não terei nada de meu, mas que me importa? Não é por mim que faço tudo isto! A prosperidade geral vai crescendo, as indústrias nascem e excitam-se mutuamente, a manufatura aumenta, as fábricas multiplicam-se e as famílias, cem mil famílias, vivem felizes; o território povoa-se; nascem aldeias onde não havia senão herdades, e nascem herdades onde não havia nada; a miséria desaparece e com ela os maus costumes, a prostituição, o roubo, o assassínio, todos os vícios, todos os crimes. Essa pobre mãe educa sua filha, e a par disto tudo, o país rico e honesto! Estava louco! Que absurdo, pensar em denunciar-me! Realmente, é preciso meditar muito e não ser precipitado. O quê! Porque me agradaria representar de magnânimo a generoso; no fim de tudo era um melodrama! porque não pensara senão em mim; porque quis salvar de uma punição, talvez um tanto exagerada, mas afinal justa, não sei quem, um ladrão, evidentemente um velhaco, deve perecer uma população inteira; deve uma pobre mulher morrer no hospital e uma infeliz criança ficar abandonada no meio da rua, como se fosse um cão? É abominável! Sem que mesmo a mãe tenha tornado a ver sua filha, sem que a criancinha quase conheça sua mãe. E tudo isto por causa de um sórdido ladrão de fruta que, com certeza, se não merece as galés por este roubo, merece-as sem a mínima dúvida, por outra coisa. Belos escrúpulos que salvam um culpado sacrificando muitos inocentes: que salvam o velho vagabundo, que poucos anos poderá viver, que no fim de contas não será mais infeliz nas galés do que no seu casebre, e que sacrificam uma população inteira, homens, mulheres e crianças! E a pobre pequenita Cosette, que só me tem a mim neste mundo e que está a estas horas roxa de frio, na pocilga dos tais Thenardier que são também uns canalhas! Pois hei-de faltar aos meus deveres para com toda esta pobre gente? Hei-de ir denunciar-me? Hei-de cometer semelhante inépcia? Calculemos tudo pelo pior. Suponhamos que há em tudo isto mau procedimento da minha parte e que mais para diante a consciência me exprobra; no aceitar em proveito dos outros essas exprobrações que só a mim respeitam, essa má ação que não prejudica senão a minha alma, é que consiste a dedicação, é nisto que está a virtude.

Em seguida levantou-se e continuou a passear. Desta vez pareceu-lhe que se sentia mais satisfeito.
Não se encontram os diamantes senão nas tenebrosas entranhas da terra; só se encontram as verdades nas profundidades do pensamento. Pareceu-lhe que depois de ter descido a estas profundidades, depois de ter andado às apalpadelas na maior densidade destas trevas, achara um desses diamantes, uma dessas verdades, que a tinha enfim na mão; contemplava-a portanto como deslumbrado.

— Sim, é isto mesmo! Cheguei à verdade, encontrei a solução. É necessário concluir alguma coisa. A minha resolução está tomada, deixemos caminhar as coisas! Não vacilemos, não recuemos. É o interesse de todos e não meu. Sou Madelaine, ficarei Madelaine. Desgraçado do que é Jean Valjean! Não sou eu, não conheço esse homem, não sei de quem se trata; se sucede haver neste momento alguém que seja Jean Valjean, avenha-se como puder! Não tenho nada com isso. É um nome fatal que paira no meio das sombras; se poisou sobre alguma cabeça, o mal é para ela.

E, olhando para um espelho que estava sobre o fogão, acrescentou:

— E então! Como alivia assentar numa resolução! Sinto-me outro.

Deu ainda alguns passos e parou de repente.

— Vamos! — disse ele. — É necessário não hesitar ante nenhuma das consequências do que resolvi. Há ainda alguns fios que me ligam a esse tal Jean Valjean! É necessário quebrá-los. Neste mesmo quarto há objetos que me acusam, objetos mudos que serviriam de testemunha; está decidido, é necessário que desapareça tudo.

E, tirando a bolsa da algibeira, abriu-a e procurou nela uma chavinha. Em seguida introduziu-a numa fechadura, cujo pequeno buraco mal se distinguia, perdida nas sombras mais carregadas da pintura do papel com que eram forradas as paredes e abriu um esconderijo, espécie de armário praticado entre o ângulo da parede e o pano da chaminé. Não havia neste esconderijo senão alguns farrapos; uma camisola de algodão azul, umas calças, uma mochila, tudo muito velho, e um cajado de espinheiro, emponteirado em ambas as extremidades.
Os que tinham visto Jean Valjean na época em que atravessara Digne em Outubro de 1815, teriam facilmente reconhecido todas as peças daquele miserável vestuário. Conservara-as como conservara os castiçais de prata, para se recordar sempre do seu ponto de partida. Só ocultava os andrajos que provinham das galés; os castiçais, que provinham do bispo, conservava-os patentes. Olhou depois furtivamente para a porta, como se receasse que ela se abrisse apesar do ferrolho que a fechava; em seguida, com um movimento rápido, inesperado, e de uma só braçada, sem mesmo olhar uma única vez para os objetos que tinha tão religiosa e perigosamente guardado durante tantos anos, pegou nos farrapos, no cajado, na mochila, e lançou tudo no fogão.
Feito isto tornou a fechar o esconderijo; e redobrando as precauções, já inúteis, por isso que já estava vazio, ocultou a porta encostando-lhe um grande móvel.
Passados instantes, estavam o quarto e a parede fronteira iluminados com um clarão avermelhado e trémulo. Tudo ardia; o cajado de espinheiro estalava e arrojava faíscas até ao meio do quarto.
A mochila, consumindo-se com os hediondos farrapos que continha, deixara a descoberto o que quer que era que brilhava no meio da cinza. Quem se curvasse um pouco teria facilmente reconhecido uma moeda de prata. Eram sem dúvida os quarenta soldos roubados ao pequeno saboiano.
Madelaine não olhava para o lume e continuava a passear de um para o outro lado, sempre no mesmo passo.
De repente, os olhos fixaram-se-lhe nos dois castiçais de prata, que o reflexo da chama fazia reluzir vagamente sobre o fogão.

— Ainda reside ali um Jean Valjean completo — disse ele para consigo. — É necessário destruir aquilo.

E pegou nos dois castiçais.
O fogão tinha bastante lume para que pudessem ser rapidamente desfigurados e transformados numa espécie de barra, impossível de reconhecer. Curvou-se sobre o lume e aqueceu-se por um instante, sentindo verdadeiro bem-estar.

— Que excelente calor!

Com um dos castiçais remexeu o braseiro. Um minuto mais e estariam ambos no fogo. Neste momento, porém, pareceu-lhe ouvir uma voz que lhe gritava de dentro de si mesmo:

— Jean Valjean! Jean Valjean!

Os cabelos eriçaram-se-lhe e apresentou ao mesmo tempo o aspecto de um bom homem que está ouvindo uma coisa horrível.

— Isso, acaba com tudo! — dizia a voz. — Completa o que estás fazendo! Destrói esses castiçais! Apaga essa recordação! Esquece-te de tudo! Deita a perder esse Champmathieu! Não hesites! Muito bem. Aplaude-te! Assim mesmo: está combinado, está dito e resolvido: reduz-se tudo a haver um homem, um velho que não sabe o que lhe querem, que não fez talvez coisa alguma, um inocente de quem o teu nome constitui toda a desgraça, sobre quem ele pesa como um crime, que vai ser julgado em teu lugar, que vai ser condenado e terminar os seus dias na abjecção e no horror! Muito bem. Sê tu homem honesto. Continua a ser o senhor maire, conserva-te honrado e respeitado, enriquece a cidade, alimenta os indigentes, educa os órfãos, vive feliz, virtuoso e admirado; e durante esse tempo, enquanto estiveres aqui rodeado de esplendor e alegria, haverá alguém que vestirá a tua camisola vermelha, que ignorado usará o teu nome, e que arrastará a tua grilheta pelas galés! Sim, está tudo assim bem combinado! Ah, miserável!

O suor corria-lhe pela fronte e os olhos espantados não se afastavam dos castiçais. Entretanto, o que lhe falava no íntimo, não terminara ainda. A voz continuava:

— Jean Valjean! Ouvir-se-ão em roda de ti inúmeras vozes que falarão muito alto, que farão grande ruído, abençoando-te; mas haverá uma, que ninguém ouvirá e que te amaldiçoará nas trevas. Escuta, pois, infame! Essas bênçãos tornarão a cair todas antes de chegarem ao céu, e só a maldição subirá até Deus!

Esta voz, em princípio fraca, e que se lhe elevara do mais recôndito da consciência, tornara-se gradualmente estrondosa e medonha, ouvindo-a depois junto do ouvido. Parecia-lhe que saíra de si mesmo e que passara a falar-lhe exteriormente. Julgou ouvir tão claras as suas últimas palavras, que correu a vista pelo quarto com uma espécie de terror.

— Está aí alguém?! — perguntou ele em voz alta e como desorientado. Depois acrescentou, soltando uma risada semelhante à de um idiota: — Que estúpido que eu sou! Não pode estar aqui ninguém.

Estava ali alguém com efeito, mas esse alguém era dos que os olhos humanos não podem ver.
Tornou a pôr os castiçais sobre o fogão. Depois continuou o seu passeio monótono e lúgubre, o qual perturbava os seus sonhos e despertava em sobressalto o homem que dormia no quarto que ficava por baixo.
Este passeio aliviava-o e embriagava-o ao mesmo tempo. Parece muitas vezes que o homem, nas ocasiões supremas, se agita para pedir conselhos a tudo que pode encontrar, nas sucessivas mudanças do lugar. Passados segundos já nem sabia onde estava.
Agora recuava ante as duas resoluções que adoptara simultaneamente. As duas ideias que o aconselhavam pareciam-lhe igualmente funestas.

— Que fatalidade! Que encontro o daquele Champmathieu, que julgavam ser ele! Ser precipitado justamente pelo meio que a Providência parecia ter em princípio empregado para o fortalecer e consolidar!

Por um momento encarou o futuro. Denunciar-se, grande Deus!, entregar-se! Encarou com grande desespero tudo o que tinha de abandonar e tudo a que teria de voltar; teria de dizer adeus àquela existência tão boa, tão pura, tão radiante, ao respeito que todos lhe tributavam, à honra, à liberdade!
Não tornaria a passear pelos campos, não ouviria mais cantar os passarinhos, no mês de Maio, não daria mais esmolas às criancinhas! Não sentiria mais a doçura dos olhos de reconhecimento e de amor, que costumam fitá-lo! Deixaria aquela casa, que tinha construído, aquele quartozinho! Tudo naquele momento lhe parecia encantador. Não tornaria a ler aqueles livros, nem a escrever sobre aquela mesa de pinho! A velha porteira, a única criada que tinha tido, não voltaria a levar-lhe o café pela manhã! Grande Deus!, em vez de tudo isto a golilha, a vestimenta vermelha, a grilheta ao pé, a fadiga, o cárcere, a tarimba, todos os horrores conhecidos! Na sua idade e depois de ter sido o que fora! Ainda se fosse novo! Mas velho, receber o tu de toda a gente, ser revistado pelo guarda-chusma e receber bastonadas do comitre! Trazer os pés nus em sapatos ferrados! Apresentar pela manhã e à tarde a perna ao martelo do vigia que verifica a segurança das manilhas! Sofrer a curiosidade dos visitantes, aos quais diriam: Aquele é o famoso Jean Valjean, que foi maire em Montreuil-sur-mer! À noite, gotejando suor, acabrunhado pela fadiga, com o barrete verde caído sobre os olhos, tornar a subir a escada de mão da prisão flutuante ligado a outra criatura, sob a chibata do esbirro! Oh, que miséria! Pode porventura o destino ter tanta maldade como qualquer ente inteligente, e tornar-se monstruoso como o coração humano!
E por mais que fizesse, recaía sempre no mais pungente dilema que lhe ocupava o fundo da meditação:
«Conservar-se no paraíso e tornar-se aí mesmo demónio! Voltar para o inferno e tornar-se nele anjo! O que havia de fazer, grande Deus, o que havia de fazer?!»
A tempestade de que se livrara com tanto trabalho, desencadeava-lhe novamente no cérebro. As ideias recomeçavam a confundir-se e apresentavam-se com a maquinal estupefação própria do desespero. O nome de Romainville ocorria-lhe sem cessar ao espírito, com dois versos duma cantiga que ouvira noutro tempo.
Recordava-se de que Romainville era um bosquezinho nas imediações de Paris, onde os jovens namorados iam colher lilases no mês de Abril. Vacilava tanto por dentro como por fora. Caminhava como uma criancinha a quem se larga a mão.
Em certos momentos, lutando com a fadiga, esforçava-se em recobrar a inteligência. Diligenciava formular pela última vez e definitivamente, o problema sob o qual tinha de certo modo caído exausto. Deveria denunciar-se? Deveria calar-se? Não conseguia ver coisa alguma distintamente. Os vagos aspectos de todos os raciocínios esboçados pela sua meditação, oscilavam e dissipavam-se sucessivamente como o fumo. O que ele sentia era que, qualquer que fosse a sua última resolução, necessariamente e sem que fosse possível escapar-lhe, morreria nele alguma coisa; que entraria para um sepulcro, tanto pela direita como pela esquerda; que passaria, de todos os modos, por uma agonia, a agonia da sua felicidade, ou da sua virtude.
Todas estas resoluções o tinham de novo assaltado. Não estava mais adiantado do que no princípio.
Assim se debatia no meio da angústia aquela desventurada alma. Mil e oitocentos anos antes deste homem desafortunado, tinha também o ente misterioso em que se reúnem todas as santidades e sofrimentos da humanidade desviado com a mão, ao sussurrar das oliveiras agitadas pelo vento feroz do infinito, o cálix terrível, que lhe aparecia envolto em sombras e transbordando de trevas nas alturas recamadas de estrelas.


___________________

Victor-Marie Hugo (1802—1885) foi um novelista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista pelos direitos humanos francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les Misérables e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras clássicas de fama e renome mundial.

_________________________



Victor Hugo

OS MISERÁVEIS

Título original: Les Misérables (1862)
Tradução: Francisco Ferreira da Silva Vieira (1851-1888)


Nenhum comentário:

Postar um comentário