segunda-feira, 13 de fevereiro de 2023

Gabriel G Márquez - Cem Anos de Solidão (8.2) - Como todas as coisas boas

Cem Anos de Solidão


Gabriel Garcia Márquez


(8.2)



para jomí garcía ascot 

e maría luisa elío


continuando...


Como todas as coisas boas que aconteceram na sua longa vida, aquela fortuna atabalhoada teve origem na casualidade. Até o final das guerras, Petra Cotes continuava se sustentando com o produto das suas rifas, e Aureliano Segundo dava um jeito de saquear de vez em quando os cofres de Úrsula. Formavam um casal frívolo, sem mais preocupações que a de se deitarem juntos todas as noites, mesmo nas datas proibidas, e se divertiam na cama até o amanhecer. “Essa mulher tem sido a sua perdição”, gritava Úrsula para o bisneto quando o via entrar em casa como um sonâmbulo. “Traz você tão embeiçado que qualquer dia destes vou vê -lo se torcendo de cólica, com um sapo metido na barriga.” José Arcadio Segundo, que demorou muito tempo para descobrir que tinha sido suplantado, não conseguia entender a paixão do irmão. Lembrava-se de Petra Cotes como uma mulher convencional, um tanto preguiçosa na cama e completamente desprovida de recursos para o amor. Surdo ao clamor de Úrsula e à troça do irmão, Aureliano Segundo só pensava então em encontrar um ofício que lhe permitisse sustentar uma casa para Petra Cotes, e morrer com ela, sobre ela e debaixo dela, numa noite de exaltação febril. Quando o Coronel Aureliano Buendía voltou a abrir a oficina, seduzido por fim pelos encantos pacíficos da velhice, Aureliano Segundo pensou que seria um bom negócio dedicar-se à fabricação de peixinhos de ouro. Ficou muitas horas no quartinho encalorado vendo como as duras lâminas de metal, trabalhadas pelo coronel com a paciência inconcebível do desengano, iam-se convertendo pouco a pouco em escamas douradas. O ofício lhe pareceu tão trabalhoso, e era tão persistente e urgente a lembrança de Petra Cotes que ao fim de três semanas desapareceu da oficina. Foi por essa época que Petra Cotes cismou de rifar coelhos. Reproduziam-se e se tornavam adultos com tanta rapidez que mal davam tempo para vender os números da rifa. No início, Aureliano Segundo não percebeu as alarmantes proporções da proliferação. Mas certa noite, quando já ninguém mais do povoado queria ouvir falar das rifas de coelhos, ouviu um estardalhaço na parede do quintal. “Não se assuste”, disse Petra Cotes. “São os coelhos.” Não puderam dormir mais, atormentados pelo tráfego dos animais. Ao amanhecer, Aureliano Segundo abriu a porta e viu o quintal entupido de coelhos, azuis no resplendor da alvorada. Petra Cotes, morta de rir, não resistiu à tentação de fazer uma brincadeira.

— Esses são os que nasceram esta noite — disse. 

— Que horror! — disse ele. — Por que é que você não experimenta com as vacas?

Poucos dias depois, tratando de desafogar o quintal, Petra Cotes trocou os coelhos por uma vaca, que dois meses mais tarde pariu trigêmeos. Assim começaram as coisas. Da noite para o dia, Aureliano Segundo se fez dono de terras e gado, e mal tinha tempo de ampliar as cavalariças e chiqueiros superlotados. Era uma prosperidade de delírio que a ele mesmo causava riso e não podia fazer outra coisa senão assumir atitudes extravagantes para descarregar o seu. bom humor. “Afastem-se, vacas, que a vida é curta”, gritava. Úrsula se perguntava em que trapalhadas se metera, se não estaria roubando, se não acabara por se transformar em ladrão de gado, e cada vez que o via abrindo champanha pelo puro prazer de jogar espuma na cabeça, reprovava aos berros o desperdício. Aborreceu-o tanto que, um dia em que Aureliano Segundo amanheceu com a paciência esgotada, apareceu com um caixote de dinheiro, uma lata de cola e uma brocha, e cantando a plenos pulmões as velhas cantigas de Francisco, o Homem, empapelou a casa por dentro e por fora, e de cima até embaixo, com notas de um peso. A antiga mansão, pintada de branco desde o tempo em que trouxeram a pianola, adquiriu o aspecto equívoco de uma mesquita. Em meio ao alvoroço da família, ao escândalo de Úrsula, ao júbilo do povo que encheu a rua para presenciar a glorificação do esbanjamento, Aureliano Segundo acabou empapelando tudo, da fachada até a cozinha, inclusive os banheiros e os quartos, e jogou as notas que sobraram no quintal. 

— Agora — disse finalmente — espero que ninguém nesta casa venha me falar de dinheiro. 

Assim foi. Úrsula mandou tirar as notas aderidas às grandes placas de cal, e voltou a pintar a casa de branco. “Meu Deus”, suplicava. “Faça-nos tão pobres como éramos quando fundamos este povoado, para que na outra vida não nos cobrem este desperdício.” As suas súplicas foram escutadas em sentido contrário. Realmente, um dos trabalhadores que descolava as notas tropeçou por descuido num enorme São José de gesso que alguém tinha deixado na casa nos últimos anos da guerra e a imagem oca se despedaçou contra o chão. Estava entupida de moedas de ouro. Ninguém se lembrava quem trouxera aquele santo de tamanho natural. “Três homens o trouxeram”, explicou Amaranta. “Pediram-me que o guardássemos enquanto a chuva passava e eu lhes disse que o pusessem aí no canto, onde ninguém fosse tropeçar nele, e aí o puseram com o maior cuidado, e aí ficou desde então, porque nunca mais voltaram para buscá-lo.” Nos últimos tempos, Úrsula lhe acendera velas e se ajoelhara diante dele, sem suspeitar que em lugar de um santo estava adorando quase duzentos quilos de ouro. A comprovação tardia do seu involuntário paganismo agravou o seu desconsolo. Cuspiu no espetacular montão de moedas, meteu-o em três sacos de lona e o enterrou num lugar secreto, à espera de que mais cedo ou mais tarde os três desconhecidos viessem reclamá-las. Muito depois, nos anos difíceis da sua decrepitude, Úrsula costumava intervir nas conversas dos numerosos viajantes que então passavam pela casa, e lhes perguntava se durante a guerra não tinham deixado ali um São José de gesso para que o guardassem enquanto passava a chuva. Estas coisas, que tanto consternavam Úrsula, eram comuns naquele tempo. Macondo naufragava numa prosperidade de milagre. As casas de sopapo e pau-a-pique dos fundadores tinham sido substituídas por construções de tijolo, com persianas de madeira e chão de cimento, que tornavam mais suportável o calor sufocante das duas da tarde. Da antiga aldeia de José Arcadio Buendía só restavam agora as amendoeiras empoeiradas, destinadas a resistir às circunstâncias mais árduas, e o rio de águas diáfanas cujas pedras pré-históricas foram pulverizadas pelas enlouquecidas picaretas de José Arcadio Segundo, quando se empenhou em preparar o leito para instituir um serviço de navegação. Foi um sonho delirante, comparável apenas aos do seu bisavô, porque o leito pedregoso e os numerosos obstáculos da correnteza impediam o trânsito de Macondo até o mar. Mas José Arcadio Segundo, num imprevisto impulso de temeridade, obstinou-se no projeto. Até então não dera nenhuma amostra de imaginação. Salvo a sua precária aventura com Petra Cotes, nunca se soube de nenhum caso seu com mulher. Úrsula o tinha em conta do exemplar mais apagado que a família produzira em toda a sua história, incapaz de se destacar sequer como animador de rinhas, quando o Coronel Aureliano Buendía lhe contou a história do galeão espanhol encalhado a doze quilômetros do mar, cuja carcaça carbonizada ele mesmo vira durante a guerra. O relato, que para tanta gente durante tanto tempo parecera fantástico, foi uma revelação para José Arcadio Segundo. Acabou com os galos em favor do melhor arrematante, recrutou homens e comprou ferramentas, e se empenhou na descomunal empresa de quebrar pedras, escavar canais, limpar escolhos e até nivelar cataratas. “Isto eu já sei de cor e salteado”, gritava Úrsula. “É como se o tempo desse voltas sobre si mesmo e tivéssemos voltado ao princípio.” Quando considerou o rio navegável, José Arcadio Segundo fez ao irmão uma exposição pormenorizada dos seus planos, e este lhe deu o dinheiro que faltava para a empresa. Desapareceu por muito tempo. Já se tinha dito que o seu projeto de comprar um navio não era mais que o conto-do-vigário para dar o fora com o dinheiro do irmão quando se divulgou a notícia de que uma estranha nave se aproximava do povoado. Os habitantes de Macondo, que já não se lembravam das empresas colossais de José Arcadio Buendía, precipitaram-se para a margem do rio e viram de olhos pasmados de incredulidade a chegada do primeiro e último navio que alguma vez atracou no povoado. Não era mais que uma balsa de troncos, arrastada mediante grossos cabos por vinte homens que caminhavam pela margem. Na proa, com um brilho de satisfação nos olhos, José Arcadio Segundo dirigia a dispendiosa manobra. Junto com ele chegava um grupo de matronas esplêndidas que se protegiam do sol abrasador com vistosas sombrinhas e traziam nos ombros lindos xales de seda e ungüentos coloridos no rosto e flores naturais no cabelo e serpentes de ouro nos braços e diamantes nos dentes. A balsa de troncos foi o único veículo que José Arcadio Segundo pôde levar até Macondo, e somente uma vez, mas nunca reconheceu o fracasso da sua empresa e sim proclamou a sua façanha como uma vitória da força de vontade. Apresentou contas escrupulosas ao irmão e muito em breve voltou a se enterrar na rotina dos galos. A única coisa que ficou daquela desventurada iniciativa foi o sopro de renovação que trouxeram as matronas da França, cujas artes magníficas mudaram os métodos tradicionais do amor, e cujo senso de bem-estar social arrasou com a antiquada taberna de Catarino e transformou a rua num bazar de lâmpadas japonesas e realejos nostálgicos. Foram elas as promotoras do carnaval sangrento que durante três dias afogou Macondo no delírio, e cuja única consequência perdurável foi ter dado a Aureliano Segundo a oportunidade de conhecer Fernanda del Carpio. 

Remedios, a bela, foi proclamada rainha. Úrsula, que estremecia diante da beleza inquietante da bisneta, não pôde impedir a eleição. Até então conseguira que ela não saísse à rua, a não ser para ir à missa com Amaranta, mas a obrigava a cobrir a cara com uma mantilha negra. Os homens menos piedosos, os que se fantasiavam de padres para dizer missas sacrílegas na taberna de Catarino, iam à igreja com o único propósito de ver, ainda que fosse por um só instante, o rosto de Remedios, a bela, de cuja beleza lendária se falava com um fervor recolhido em todo o âmbito do pantanal. Muito tempo se passou antes de que o conseguissem, e mais lhes teria valido se a ocasião não tivesse chegado nunca, porque a maioria deles nunca mais pôde recuperar a placidez do sono. O homem que tornou o fato possível, um forasteiro, perdeu para sempre a serenidade, enredou-se nas areias movediças da abjeção e da miséria, e anos depois foi espedaçado por um trem noturno quando adormeceu sobre os trilhos. Desde o momento em que foi visto na igreja, com um traje de pelúcia verde e um casaco bordado, ninguém pôs em dúvida que vinha de muito longe, talvez de uma remota cidade do exterior, atraído pela fascinação mágica de Remedios, a bela. Era tão bonito, tão galhardo e sereno, de uma excelência tão bem distribuída, que Pietro Crespi junto dele pareceria uma criança prematura, e muitas mulheres murmuraram entre sorrisos de despeito que era ele quem verdadeiramente merecia a mantilha. Não conversou com ninguém em Macondo. Aparecia nas manhãs de domingo, como um príncipe de contos de fada, num cavalo com estribos de prata e manta de veludo, e abandonava o povoado depois da missa. 

Era tal o poder da sua presença que, desde a primeira vez que foi visto na igreja, todo mundo deu por certo que entre Remedios, a bela, se estabelecera um duelo calado e tenso, um pacto secreto, um desafio irrevogável cuja culminância não podia ser somente o amor, mas também a morte. No domingo, o cavaleiro apareceu com uma rosa amarela mão. Ouviu a missa de pé, como fazia sempre, e no final interpôs no caminho de Remedios, a bela, e ofereceu-lhe rosa solitária. Ela a recebeu com um gesto natural, como estivesse preparada para aquela homenagem, e então descobriu o rosto por um instante e agradeceu com um sorriso. Foi tudo quanto fez. Mas não apenas para o cavaleiro, como todos os homens que tiveram o infeliz privilégio de vivê-lo aquele foi um instante eterno.

O cavaleiro instalava, a partir de então, a banda de música junto da janela de Remedios, a bela, e às vezes até o amanhecer. Aureliano Segundo foi o único que sentiu por ele uma compaixão cordial e tentou abalar a sua perseverança. “Não perca mais tempo”, disse a ele uma noite. “As mulheres dessa casa são piores do que as mulas.”

Ofereceu-lhe a sua amizade e convidou-o para tomar um banho de champanha, tentou fazê-lo entender que as fêmeas da família tinham entranhas de pedra, mas não conseguiu vulnerar a sua obstinação. Exasperado pelas intermináveis noites de música, o Coronel Aureliano Buendía ameaçou-o de lhe curar o sofrimento a tiro de pistola. Nada o fez desistir, salvo o seu próprio e lamentável estado de desmoralização. De garboso e impecável fez-se vil e esfarrapado. Corria o boato de que abandonara poder e fortuna na sua terra distante, embora na verdade nunca soubesse da sua origem. Tornou-se homem de briga, arruaceiro de bar, e amanheceu emborcado nas suas próprias excreções na taberna de Catarino. O mais triste do seu drama era que Remedios, a bela, não lhe dava atenção nem mesmo quando ele se apresentava na igreja vestido de príncipe. Recebera a rosa amarela sem a menor malícia, apenas divertida pela extravagância do gesto, e levantara a mantilha para ver melhor a cara dele, e não para lhe mostrar a sua. 

Realmente, Remedios, a bela, não era um ser deste mundo. Até com a puberdade já bem avançada, Santa Sofía de la Piedad teve de lhe dar banho e mudar de roupa, e mesmo quando já se pôde valer sozinha, tinha que vigiá-la para que não pintasse animaizinhos nas paredes com uma varinha lambuzada com o seu próprio cocô. Atingiu os vinte anos sem aprender a ler e escrever, sem se servir dos talheres na mesa, passeando nua pela casa, porque a sua natureza reagia contra qualquer espécie de convencionalismo. Quando o jovem comandante da guarda lhe declarou o seu amor, recusou-o simplesmente porque se assombrou com a sua frivolidade. “Olha que bobo que ele é”, disse a Amaranta. “Diz que está morrendo por minha causa, como se eu fosse uma cólica miserere.” Quando na verdade o encontraram morto junto à sua janela, Remedios, a bela, confirmou a sua impressão inicial.

— Vejam só — comentou. — Era um bobo total. 

Era como se uma lucidez penetrante lhe permitisse ver a realidade das coisas além de qualquer formalismo. Este era pelo menos o ponto de vista do Coronel Aureliano Buendía, para quem Remedios, a bela, não era de modo algum retardada mental, como se acreditava, e sim exatamente o contrário. “E como se viesse de volta de vinte anos de guerra”, costumava dizer. Úrsula, por seu lado, agradecia a Deus que tivesse premiado a família com uma criatura de uma pureza excepcional, mas ao mesmo tempo a perturbava a sua beleza, porque lhe parecia uma virtude contraditória, uma armadilha diabólica, no centro da sua candidez. Foi por isso que decidiu separá-la do mundo, preservá-la de toda tentação terrena, sem saber que Remedios, a bela, já desde o ventre de sua mãe estava a salvo de qualquer contágio. Nunca lhe passou pela cabeça a idéia de que a elegessem rainha da beleza no pandemônio de um carnaval. Mas Aureliano Segundo, animadíssimo com a inspiração súbita de se fantasiar de tigre, trouxe o Padre Antonio Isabel em casa para que convencesse Úrsula de que o carnaval não era uma festa pagã, como ela dizia, mas uma tradição católica. Finalmente convencida, embora rosnando de má vontade, deu o consentimento para a coroação. A notícia de que Remedios Buendía ia ser a soberana do festival transbordou em poucas horas os limites do pantanal, chegou até longínquos territórios onde se ignorava o imenso prestígio da sua beleza e provocou a inquietação dos que ainda consideravam o seu sobrenome como um símbolo da subversão. Era uma inquietação sem fundamento. Se havia alguém inofensivo naquele tempo, era o envelhecido e desiludido Coronel Aureliano Buendía, que pouco a pouco fora perdendo todo o contato com a realidade da nação. Fechado na sua oficina, a sua única relação com o resto do mundo era o comércio de peixinhos de ouro. Um dos antigos soldados que vigiaram a sua casa nos primeiros dias da paz ia vendê-los nas povoações do pantanal e voltava carregado de moedas e notícias. Que o governo conservador, dizia, com o apoio dos liberais, estava reformando o calendário para que cada presidente estivesse cem anos no poder. Que finalmente se havia assinado o acordo com a Santa Sé, e que tinha vindo de Roma um cardeal com uma coroa de diamantes e um trono de ouro maciço, e que os ministros liberais se fizeram fotografar de joelhos no ato de lhe beijar o anel. Que a corista principal de uma companhia espanhola, de passagem pela capital, fora sequestrada no seu camarim por um grupo de mascarados e no domingo seguinte dançara nua na casa de verão do Presidente da República. “Não fale de política”, dizia-lhe o coronel. “O que nos interessa é vender peixinhos.” O falatório público de que não queria mais saber da situação do país porque estava ficando rico com a oficina provocou as gargalhadas de Úrsula, quando chegou aos seus ouvidos. Com o seu incrível senso prático, ela não podia entender o comércio do coronel, que trocava os peixinhos por moedas de ouro, e em seguida transformava as moedas de ouro em peixinhos, e assim sucessivamente, de modo que tinha que trabalhar cada vez mais à medida que vendia, para satisfazer um círculo vicioso exasperante. Na verdade, o que interessava a ele não era o negócio e sim o trabalho. Precisava de tanta concentração para engastar escamas, incrustar minúsculos rubis nos olhos, laminar barbatanas e montar nadadeiras que não sobrava um só vazio para encher com a desilusão da guerra. Tão absorvente era a atenção que lhe exigia o preciosismo da artesania que em pouco tempo envelheceu mais do que em todos os anos de guerra, e a posição lhe entortou a espinha dorsal e a milimetria lhe gastou a vista, mas a concentração implacável o premiou com a paz de espírito. A última vez em que foi visto atender a algum assunto relacionado com a guerra, foi quando um grupo de veteranos de ambos os partidos solicitou o seu apoio para a aprovação das pensões vitalícias, sempre prometida e sempre no ponto de partida. “Esqueçam isso”, disse a eles “Não veem que eu recusei a minha pensão para evitar a tortura de ficar esperando até a morte?” No começo, o Coronel Gerineldo Márquez o visitava à tardinha e os dois se sentavam na porta da rua para evocar o passado. Mas Amaranta. não pôde suportar as lembranças que lhe suscitava aquele homem cansado cuja calvície o precipitava ao abismo de um velhice prematura, e o atormentou com indelicadezas injustas, até que ele não voltou mais, a não ser em ocasiões especiais, e desapareceu por fim anulado pela paralisia. Taciturno, silencioso, insensível ao novo sopro de vitalidade que estremecia a casa, o Coronel Aureliano Buendía compreendeu de leve que o segredo de uma boa velhice não é outra coisa senão um pacto honrado com a solidão. Levantava-se às cinco da manhã depois de um sono superficial, tomava na cozinha a sua eterna caneca de café amargo, trancafiava-se o dia inteiro na oficina, e às quatro da tarde passava pelo corredor arrastando um banquinho, sem observar sequer o incêndio da roseiras, nem o brilho da hora, nem a impavidez de Amaranta, cuja melancolia fazia um barulho de marmita perfeitamente audível ao entardecer, e se sentava na porta da rua até que o permitissem os mosquitos. Alguém se atreveu, certa vez, perturbar a sua solidão.

— Como vai, coronel? — disse ao passar.

— Aqui firme — ele respondeu. — Esperando o meu enterro passar. 

De modo que a inquietação causada pela reaparição pública do seu sobrenome, a propósito do reinado de Remedios a bela, carecia de fundamento real. Muitos, entretanto, não pensaram assim. Inocente da tragédia que o ameaçava, o povo transbordou na praça pública, numa barulhenta explosão de alegria. O carnaval tinha alcançado o seu mais alto nível de loucura, Aureliano Segundo tinha satisfeito por fim o seu sonho de se fantasiar de tigre e andava feliz entre a multidão exaltada, rouco de tanto rugir, quando apareceu vindo pelo caminho do pantanal um bloco enorme trazendo num andor dourado a mulher mais fascinante que se podia imaginar. Por um momento, os pacíficos habitantes de Macondo tiraram as máscaras para ver melhor a deslumbrante criatura com coroa de esmeraldas e capa de arminho, que parecia investida de uma autoridade legítima e não simplesmente de uma soberania de lantejoulas e papel crepom. Não faltou quem tivesse a suficiente clarividência para suspeitar de que se tratava de uma provocação. Mas Aureliano Segundo se sobrepôs imediatamente à perplexidade, declarou como hóspedes de honra os recém-chegados e sentou salomonicamente Remedios, a bela, e a rainha intrusa no mesmo pedestal. Até a meia-noite, os forasteiros fantasiados de beduínos participaram do delírio e até o enriqueceram com uma pirotecnia suntuosa e umas virtudes acrobáticas que fizeram pensar nas artes dos ciganos. De repente, no paroxismo da festa, alguém quebrou o delicado equilíbrio. 

— Viva o Partido Liberal! — gritou. — Viva o Coronel Aureliano Buendía! 

As descargas de fuzilaria abafaram o esplendor dos fogos de artifício e os gritos de terror anularam a música e o júbilo foi aniquilado pelo pânico. Muitos anos depois continuar-se-ia afirmando que a guarda real da soberana intrusa era um esquadrão do exército regular que debaixo das suas ricas chilabas escondia fuzis de verdade. O governo negou a culpa num decreto extraordinário e prometeu uma investigação rigorosa do episódio sangrento. Mas a verdade não se esclareceu nunca e prevaleceu para sempre a versão de que a guarda real, sem provocação de nenhuma espécie, tomou posições de combate a um sinal do seu comandante e disparou sem piedade contra a multidão. Quando se restabeleceu a calma, não restava no povoado um só dos falsos beduínos, e ficaram estendidos na praça, entre mortos e feridos, nove palhaços, quatro colombinas, dezessete reis de baralho, um diabo, três músicos, dois Pares de França e três imperatrizes japonesas. Na confusão do pânico, José Arcadio Segundo conseguiu pôr a salvo Remedios, a bela, e Aureliano Segundo carregou no colo para casa a soberana intrusa, com a roupa rasgada e a capa de arminho manchada de sangue. Chamava-se Fernanda del Carpio. Haviam-na selecionado como a mais bela entre as cinco mil mulheres mais belas do país e a trouxeram para Macondo com a promessa de proclamá-la rainha de Madagáscar. Úrsula cuidou dela como se fosse uma filha. O povo, em vez de pôr em dúvida a sua inocência, compadeceu-se da sua candidez. Seis meses depois do massacre, quando os feridos se restabeleceram e murcharam as últimas flores da vala comum, Aureliano Segundo foi procurá-la na cidade distante onde vivia com o pai e se casou com ela em Macondo, numa fragorosa festança de vinte dias.


continua página 129...

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