quinta-feira, 6 de julho de 2023

Dostoiévski - O Idiota: Primeira Parte (15b) - Que é, general?

O Idiota


Fiódor Dostoiévski

Tradução portuguesa por José Geraldo Vieira

Primeira Parte

15.

- Que é, general? Acha impróprio? Vamos deixar de lérias! Preferia o senhor que eu me sentasse no camarote do Teatro Francês como um inacessível modelo de virtude? Que eu corresse como a corça selvagem de todos quantos me andaram perseguindo nestes últimos cinco anos, e desfrutasse ares de soberba inocência, tudo como se eu fosse uma criatura imbecil? Aqui na presença de todos, ele veio e depôs cem mil rublos sobre a mesa, após estes meus cinco anos de inocência! E não há dúvida que trouxeram tróicas que estão lá fora me esperando. Ele me avalia em cem mil rublos Gánia, pois não é que você ainda está com ar de estar zangado comigo? Teria você imaginado, realmente, que eu poderia fazer parte de sua família? Eu, a mulher de Rogójin? Que foi que o príncipe disse ainda agora?

- Eu não disse que éreis de Rogójin! Vós não pertenceis a Rogójin! - proferiu o Príncipe com uma voz entrecortada.

- Nastássia Filíppovna, deixa disso! Deixa disso, querida! -disse Dária Aleksiéievna, não se podendo conter. - Se te agoniam tanto, então larga-os! Mas como tens coragem, realmente, de ir-te com um sujeito como esse, mesmo por cem mil rublos? Concordo que cem mil rublos é alguma coisa! Fica com os cem mil rublos e manda-o às favas! É assim que se trata essa canalha! Ah! Estivesse eu em teu lugar, punha-os todos na rua!... Palavra de honra.

Dária Aleksiéievna estava positivamente irada. Ela que era uma mulher de natural calma, conquanto muito impressionável.

- Não te encolerizes, Dária Aleksiéievna! - riu para ela Nastássia Filíppovna. - Pois se eu, que sou eu, não falei com cólera! Zanguei-me porventura? Apenas não posso compreender que bobagem me deu de querer entrar para a família daquele ali. Vi a mãe dele. Beijei a mão dela. E os artifícios que empreguei esta tarde em seu apartamento, Gánetchka, foram de propósito para ver pela última vez até onde você podia chegar. E, em verdade, você me surpreendeu. Eu contava com um arranjo qualquer, mas não este. Casar-se-ia você comigo, sabendo que aquele acolá me tinha dado pérolas quase às vésperas do nosso casamento, e que eu as aceitara? Ora, em sua casa, e na presença de sua mãe e de sua irmã, esse outro aqui esteve me pondo em leilão. E ainda assim, depois disso, você pôde vir até aqui para contratar casamento e esteve até para trazer sua irmã!? Teria razão Rogójin quando disse que você, por causa de três rublos, andaria de quatro patas até o Vassílievskii?

? - Oh! Se ia... - reafirmou Rogójin, subitamente, com um ar quieto, mas onde havia profunda convicção. 

- Eu chegaria a compreender, se você estivesse na penúria, mas contaram- me que você ganha um bom salário. E, a par da desgraça e de tudo o mais, pensar em levar uma mulher que você odeia para dentro de sua casa (sim, pois você me odeia, eu sei disso!). Sim, agora acredito que um homem como você até mataria qualquer pessoa por dinheiro! Todo o mundo está possuído hoje em dia a um tal grau, tão dominados todos pela ideia do dinheiro que parece que enlouqueceram. Desde a adolescência já começam a ser usurários! Um homem envolve em seda a sua navalha para que não deslize, vem por detrás de um amigo e lhe corta a garganta como a um carneiro, conforme li ultimamente. Afinal, você é um sujeito desavergonhado. Eu sou uma mulher desavergonhada, mas você é pior! Quanto a este porta-ramalhetes, nem digo nada... 

- Mas é a senhora? A Senhora, Nastássia Filíppovna?! - E o General Epantchín bateu com as mãos uma na outra, verdadeiramente estupefato - A senhora, tão fina, com ideias tão delicadas! E agora. Isso é linguagem? Isso são expressões?

- Eu agora estou embriagada! General - e Nastássia FilípPovna deu uma gargalhada -, quero dar o meu salto! Hoje, o meu dia Onomástico, meu dia de festa! Como estive esperando isto? Dária Aleksiéievna estás vendo este portaramalhete? Est Monsieur aux camélias? Aquele que está ali, rindo de nós!.

- Eu não estou rindo, Nastássia Filíppóvna, Eu estou somente escutando com a maior atenção - protestou Tótskii, com dignidade.

- Por que estive eu a atormentá-lo durante estes últimos cinco anos não consentindo que se fosse? Valia ele isso? Ele é justamente o que devia ser... Provavelmente julga que o tratei muito mal. Deume educação, manteve me como uma condessa e o dinheiro, o dinheiro que despendeu comigo!. Outrora procuroume um respeitável marido, lá no campo, e agora, aqui, depois Gánetchka. E, podem acreditar não vivi com ele estes cinco anos últimos, e ainda por cima lhe tomei dinheiro e cuidei que tinha direito a isso! Fui tão completamente perdida, em todo o sentido! Dir-me-ão: “Fique com os cem mil rublos e livre-se dele; é um sujeito horrível”. E realmente ele é horrível... Eu podia ter me casado há muito tempo, não com Gánia, mas com qualquer outro. Verdade é que isso também teria sido horrível. E porque passei cinco anos com minha angústia? E - será que acreditarão? - há quatro anos passados cheguei a pensar que seria melhor casar- me com Afanássii Ivánovitch sem demora! Pensei nisso sem nenhum despeito. Eu tinha toda sorte de ideias na cabeça naquela época e, querem saber? Conseguiria fazê-lo resolver-se. Sentia-se propenso a isso, embora vocês julguem impossível. Estava mentindo, acredito mas quando uma coisa se lhe mete na cabeça não sabe refrear-se. Mas depois, louvado Seja Deus, verifiquei que esse homem não valia a minha angústia! Repentinamente senti tal decepção que, se ele tivesse me proposto eu me negaria a casar-me com ele. Durante cinco anos estive representando esta farsa. Não, melhor é estar em meu lugar adequado, nas ruas! Prefiro uma orgia com Rogójin ou ir empregar-me amanhã como lavadeira. Sim, pois nada tenho de meu. Ao me ir, desistirei de tudo isto, largo aqui até os meus trapos. E quem há de querer uma mulher sem nada? Perguntai ali a Gánia se me quereria! Ora, nem mesmo Ferdichtchénko!

- Talvez Ferdichtchénko não quisesse, Nastássia Filíppovna. Eu sou uma cândida alminha! - atalhou Ferdichtchénko. - Mas de um eu sei que a quereria. O príncipe a tomaria. A senhora está aí a lastimar-se, mas olhe um pouco para o príncipe. Faça como eu que o estou espiando há uma porção de tempo. 

Nastássia Filíppovna voltou-se com curiosidade para o príncipe. 

- Isso é verdade? - perguntou-lhe.

- É verdade - balbuciou o príncipe.

- Aceitar-me-ia, como estou, sem nada?

- Aceitaria, Nastássia Filíppovna. 

- A coisa muda de figura - murmurou o general. - Já contava com isso.

O príncipe olhou de um modo sério, triste e penetrante para o rosto de Nastássía Filíppovna, que o continuava estudando. 

- Aqui está um achado! - disse ela, voltando-se inesperadamente para Dária Aleksiéievna. - E simplesmente por bondade de coração. Conheço-o. Encontrei um benfeitor! Mas talvez seja verdade o que dizem a respeito dele, que é um... “não lá muito...” Mas, com que vai o senhor viver, se está assim tão apaixonado? O senhor, um príncipe, está pronto a casar-se com a mulher de Rogójin?

- Vou casar-me com uma mulher honesta, Nastássia Filíppovna, e não com a mulher de Rogójin - explicou o príncipe.

- Acha então que sou uma mulher honesta?

- Sim, quero dizer isso.

- Ora, todos esses gestos... são de romances! Fantasias fora da moda, príncipe inefável. Hoje em dia o mundo já se tornou bem mais sábio. E como pode casarse, príncipe? Oh! Precisa de uma aia, bem mais do que de uma consorte! 

O príncipe levantou-se e, com voz trêmula, e tímida, mas com ar de absoluta convicção, pronunciou estas palavras:

- Nada sei sobre isso, Nastássia Filíppovna. Nada vi da vida: vós, quanto a isto, tendes razão. Mas considero que vós é que me daríeis honra, e não eu, a vós. Eu nada sou; mas tendes sofrido tanto, que sairdes desse inferno que tem sido vossa existência já é imenso! Por que então vos envergonhais, prontificando-vos a ir com Rogójin? Isso é delírio, febre... Devolvestes ao Sr. Tótskii setenta e cinco mil rublos e acrescentastes que desistis de tudo quanto se acha nesta casa. Quem aqui há que faria uma tal coisa? Nastássia Filíppovna... eu... eu vos amo. Amar-vos-ei até a morte. Por vós.., morrerei, Nastássia Filíppovna. Não consentirei que digam uma palavra sobre vós. Sois pobre, mas que tem isso? Trabalharei. Nastássia Filíppovna trabalharei...

As últimas palavras foram cobertas por uma risada mal sufocada de Ferdichtchénko e de Liébediev. O próprio general emitiu uma espécie de bufo desaprovatório. Ptítsin e Tótskii a custo continham um sorriso. Os demais estavam ofegantes por causa da própria estupefação.

- Mas talvez venhamos a ser ricos e não pobres, Nastássia Filíppovna. Riquíssimos - prosseguiu o Príncipe no mesmo tom de antes. - Ainda não me certifiquei e lastimo que durante o dia não tivesse tido tempo de providenciar a respeito da carta que recebi de Petersburgo, quando ainda na Suíça, carta que tenho aqui comigo, assinada pelo Sr. Salázkin, na qual ele me comunica que devo receber uma grande herança. Aqui está a carta...

E o príncipe, com efeito, desembaraçou, da papelada do bolso, uma carta.

- Mas é de estarrecer! - murmurou o general. - Isto aqui não passa de um perfeito hospício de alienados.

Durante alguns segundos reinou silêncio total.

- Está o senhor dizendo, príncipe, que se trata de uma carta, essa aí, da parte de Salázkin? – perguntou Ptítsin. - É um homem muito conhecido nos meios bancários. Trata-se de um advogado muito Sério e se de fato lhe mandou essa notícia, o senhor pode confiar completamente que é verdade. Acontece, por acaso, que conheço a letra dele, pois tenho tido negócios com ele, ultimamente... Consente que eu olhe, só para examinar a letra?

? Com a mão a tremer, o Príncipe estendeu a carta, sem proferir palavra.

- Esta agora!... Esta agora! - exclamou o general, olhando para todos, como fulminado. 

- Será que se trata realmente de uma herança?

Ninguém tirava os olhos de Ptítsin que percorria as linhas da carta com olhos de perito. A Curiosidade geral recebera um novo e violento estímulo. Ferdichtchénko não conseguia ficar imóvel. Rogójin olhava cheio de espanto e ansiedade rondando os olhos do Príncipe para Ptítsin, e vice-versa. Dária Aleksiéievna parecia suspensa no ar, tamanha era a sua Surpresa misturada de esperança. O próprio Liébediev não pôde deixar de sair do seu canto e, inclinando de viés, espiava a carta por cima do ombro de Ptítsin; mas às pressas e com medo, como quem pressente e pretende evitar uma pancada na cabeça por causa da ousadia.  


continua página 149...
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