terça-feira, 18 de julho de 2023

Úrsula - Epílogo

Maria Firmina dos Reis


Úrsula

Epílogo 


Dois anos eram já passados sobre os tristes acontecimentos que narramos, e ninguém mais na província se lembrava dos execrandos fatos do convento de *** e da horrenda morte de Tancredo. A justiça, se a pintam vendada, completamente cega ficou, e os assassinatos do apaixonado mancebo e do seu fiel Túlio impunes.
E o sudário do esquecimento caíra sobre eles; porque a lousa do sepulcro os tinha encerrado para sempre!
E as pesquisas da justiça cansaram de mistérios e tergiversações e também foram abandonadas.
Só um homem conhecia o assassino; mas esse homem era incapaz de uma denúncia – esse homem só curava da alma, e a sua missão era toda de paz. A Deus, pois, pertencia o castigo do culpado.
No convento dos carmelitas, havia dois anos, entrara um homem que pedira o hábito, e logo depois começara o seu noviciado.
Esse homem era um velho, com a fronte e o rosto sulcados de rugas, a pele macilenta, e o corpo vergado e encarquilhado como do convalescente de moléstia atroz, debilitante e prolongada.
Quem era ele ninguém o sabia no convento. Chamava-se frei Luís de Santa Úrsula.
Afirmavam alguns leigos que esse velho era um louco; porque às vezes, rompendo fervorosa oração, possuía-se de frenesi, os olhos chamejavam- -lhe, rangia os dentes, e caía por terra em delíquio.
Trazia cilícios, jejuava rigorosamente, e as noites velava-as inteiras.
E se lhe pudessem ver o coração aí encontrariam escrito com caracteres de fogo:

– Úrsula!

A noite ia já alta. Era uma destas noites invernosas, em que o céu se tolda de nimbos espessos e negros. Nem uma estrela se pintava no céu, nem a via láctea esclarecia um ponto sequer do firmamento. Era tudo trevas. O vento zunia com estampido e a chuva caía em torrentes com fragor imensos, como sói acontecer nas regiões equatoriais. 
Então o sino, lugubremente tangido, anunciou aos irmãos carmelitas que um dos seus tocava as portas da eternidade. E logo no convento agitou-se um longo e lúgubre murmúrio.
Era o salmo que recorda ao pecador que é pó, e encaminha-o no transe derradeiro.
E o cântico misterioso e solene ecoou nas abóbadas do santuário.
O irmão, que gemia a derradeira dor, era o noviço frei Luís de Santa Úrsula, a quem chamavam – o louco.

— Meu filho! – murmurou-lhe um piedoso monge – não nos faltam consolações no seio da igreja. Aquele que confia no Senhor parte em sua santa paz. Depositai no meu coração o segredo de vossas culpas: a penitência é um sacramento, que nos aplaina o caminho do céu.

— Confessar-me, irmão? E para quê?

— Para que as vossas culpas vos sejam perdoadas.

— Não – tornou o moribundo. — Sabeis vós o que vai por esta alma de torturas e ódio? Sabeis? Oh! Tenho o inferno no coração!

— Jesus! Meu Deus! – exclamou o religioso fazendo o sinal da cruz sobre o moribundo. — Irmão, em nome de Deus arredai do mundo o pensamento. O inferno no coração! Que estais aí a dizer?! O Senhor esclareça as trevas da vossa alma para que possa ela purificar-se. O arrependimento sincero, meu irmão, cura as mais profundas chagas do coração e apaga os mais atrozes crimes.

Entretanto o moribundo não parecia comover-se. Então o frade saiu, e voltando apresentou-lhe um Crucifixo.

— Irmão! – exclamou-lhe. — Eis o Filho de Deus, aquele cujo sacrifício sublime remiu o homem da cadeia da culpa. Encarai-o. É Deus, que vos vem pedir por preço do seu sangue a contrição da vossa alma. Negar-lha-eis?

Frei Luís de Santa Úrsula, ou antes o comendador Fernando P., volveu os olhos já baços pela morte, olhando para o Crucificado e depois para o padre, e disse:

— Amei-a, padre; amei-a mais que ao Filho de Deus, mais do que a salvação da alma, e por amor dela despenhei-me no inferno!... – e as lágrimas começaram a cair-lhe pelas áridas faces. 

— Não, meu filho! – objetou-lhe o religioso – Deus perdoa ao arrependido. Lembrai-vos de Madalena.

— Arrependido! – exclamou o moribundo – Arrependido, eu? Oh! Não, meu padre. Compadeceu-se Deus do meu martírio? Nunca. Matou-me a esperança no coração. Deixou lavrar o amor frenético no peito, que o rasgou, que deu-lhe a coragem do crime, sem dar-lhe a saciedade da vingança. Cometi muitos crimes, e ainda até hoje não serenou-me o coração sedento de ódio e de vingança. Feri o homem a quem ela adorava, vi correr-lhe o sangue que derramei, vi-o expirar a meus pés, sorri-me de prazer, e oh! Maldição! Não fiquei vingado!

— Oh! – exclamou o monge transido de pavor – Que horror!

— Esse homem fora preferido, fora o eleito do seu coração. Ela, ainda após a morte dele, dedicou-lhe o mesmo amor.

— Em nome do Senhor, arrependei-vos!

— Tancredo! – continuou com ódio – Tancredo, roubaste-na! Cedo tornar-nos-emos a encontrar no outro mundo e lá ainda te pedirei contas como neste!

— Tancredo?! – interrompeu o frade com admiração. – Tancredo! Filho, quantos crimes pesam sobre vós! Ao pé do cadáver de Tancredo estava um outro cadáver, e ambos pareciam feridos da mesma mão. Fostes também vós que o assassinastes?

— Sim. – disse. – Assassinou-o a minha vingança. Susana, Túlio, Tancredo e Úrsula, meu padre, todos fizeram de mim um objeto de zombaria.

— E ela? – perguntou o confessor.

— Ela?!... Ela morreu amaldiçoando-me!!... A infeliz enlouqueceu de dor, e eu não a pude salvar! Meu padre, – continuou – eu a vi no sepulcro, e não sei como não morri então!

— Não podeis por ventura suportar a vida sem ela?

— Oh! Não!... Não, meu padre!

— E não sabeis então que estais separado dela para sempre?

— Para sempre?! – indagou ele com aflição veemente, e um profundo suspiro agitou seu peito.

— Para sempre! – tornou-lhe o monge.

— E por quê? – murmurou ele com humildade. 

— Porque, meu filho, ela está no céu, e vós, homem criminoso e impenitente, vos despenhais no inferno

Houve então uma longa pausa. Faltavam as forças ao moribundo, cujo peito ansiava como combatido por uma luta terrível e renhida.
Fez um último esforço, porque sentia as prisões da vida despedaçarem-se, e estendendo os braços, tomou o Crucificado, levou-o aos lábios, e pondo-o sobre o coração, exclamou demonstrando o mais profundo arrependimento:

— Perdoai-me, Senhor! Porque na hora derradeira sufoca-me a enormidade das minhas culpas.

Lágrimas de sincera dor verteram seus olhos, que para sempre se cerraram; e a morte imprimiu-lhe no rosto a tranquilidade da contrição
Nesse dia chorava Adelaide suas primeiras lágrimas de dor, porque a opulência, e o fausto não bastavam para as estancar.
Seu primeiro esposo era já morto, envenenado por acerbos desgostos. Ela ludibriara o decrépito velho, que a roubara ao filho; e ele, em seus momentos de crime, impotente, amaldiçoava a hora em que a amara.
Ela depois também chorou, e chorou muito; porque as dores que o céu lhe enviou foram bem graves. Casou segunda vez, e o novo esposo, que não amava a sua deslumbrante beleza, a arrastou de aflição até o desespero.
E o remorso, que lhe pungia na alma, aumentava a grandeza das suas mágoas, porque a imagem daquela mulher, que tanto a amara, e cujos dias ela torturou sem piedade até despenhá-la no sepulcro, se lhe erguia melancólica na hora do repouso, e a amaldiçoava.
E depois eram já tão amargos os seus dias, que buscou afanosa a morada do descanso e da tranquilidade.
De todas essas vítimas do amor, apenas restam vestígios sobre a terra da desditosa Úrsula.
No convento de ***, junto ao altar da Senhora das Dores encontra-se uma lápide rasa e singela com estas palavras – ORAI PELA INFELIZ ÚRSULA! 


continua pág 146...

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Maria Firmina dos Reis nasceu em São Luís, no Maranhão, no dia 11 de outubro de 1825. Filha bastarda de João Pedro Esteves e Leonor Felipe dos Reis. Foi uma escritora brasileira, considerada a primeira romancista brasileira.
Em 1847, aos 22 anos, ela foi aprovada em um concurso público para a Cadeira de Instrução Primária, sendo assim a primeira professora concursada de seu Estado. Maria demonstrou sua afinidade com a escrita ao publicar “Úrsula” em 1859, primeiro romance abolicionista, primeiro escrito por uma mulher negra brasileira.
O romance “Úrsula” consagrou Maria Firmina como escritora e também foi o primeiro romance da literatura afro-brasileira, entendida esta como produção de autoria afrodescendente. Em 1887, no auge da campanha abolicionista, a escritora publica o livro “A Escrava”, reforçando sua postura antiescravista.
Ao aposentar-se, em 1880, fundou uma escola mista e gratuita. Maria morre aos 92 anos, na cidade de Guimarães, no dia 11 de novembro de 1917.
Em 1975, Maria recebe uma homenagem de José Nascimento Morais Filho que publica a primeira biografia da escritora, Maria Firmina: fragmentos de uma vida.
A importância da obra de Firmina, primeira escritora negra de que se tem notícia em nossa literatura, se deve ao pioneirismo na denúncia da opressão a negros e mulheres no Brasil do século XIX. Antes do Navio negreiro de Castro Alves, declamado pela primeira vez em 1868, Firmina já descrevia em seu livro Úrsula, de 1859, a crueldade do tráfico de pessoas sequestradas na África e transportadas nos porões dos “tumbeiros”. Neste mesmo romance, a crítica da escritora abrange o retrato lamentável da condição feminina da época ao delinear personagens como o pai de Tancredo ou o comendador, tiranos não só de escravos, mas também de mulheres.
Maria Firmina foi uma voz profundamente legítima e dissonante que não encontrou acolhida e reconhecimento em seu tempo. Longe de fracassar, essa voz ressoa hoje cheia de significado, recriminando males que ainda assombram e permeiam nossa sociedade.


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Úrsula - XX - A louca
Úrsula - Epílogo

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