terça-feira, 25 de julho de 2023

Marcel Proust - A Prisioneira (Toda a seiva local)

em busca do tempo perdido

volume V
A Prisioneira


continuando...


Toda a seiva local que existe nas velhas famílias aristocráticas não é o suficiente; é preciso que nelas nasça uma criatura inteligente o bastante para não desdenhá-la, para não apagá-la sob o verniz mundano. A Sra. de Guermantes, infelizmente espirituosa e parisiense, e que, quando a conheci, só conservava de seu torrão o sotaque, ao menos, quando queria pintar sua vida de mocinha, achara para a sua linguagem (entre o que teria parecido involuntariamente provinciano demais ou, pelo contrário, artificialmente letrado) um desses compromissos que fazem o encanto de La Petite fadette de George Sand ou de certas lendas relatadas por Chateaubriand nas Memórias d'outre-tombe. Meu prazer era, sobretudo, ouvi-la contar alguma história acerca de camponeses com ela. Os nomes antigos, os velhos costumes, davam algo de muito saboroso a essa aproximação entre o castelo e a aldeia. Uma certa aristocracia permanece regional por ter mantido contato com as terras onde é soberana, de modo que a frase mais simples faz desenrolar-se diante de nossos olhos todo um mapa histórico e geográfico da História da França. Se não havia naquilo afetação, nenhum desejo de fabricar uma linguagem para seu próprio uso, então essa forma de pronunciar era um verdadeiro museu de História da França através da conversação.

- Meu tio-avô Fitt-jam- nada tinha que espantasse, pois sabia-se que os Fitz-James proclamam de bom grado serem grãos senhores franceses e não querem que pronunciem seu nome à maneira inglesa. Aliás, é preciso admirar a tocante docilidade das pessoas que, até então, tinham julgado dever esforçar-se por pronunciar gramaticalmente certos nomes e que, de súbito, após ter ouvido a duquesa de Guermantes pronunciá-los diversamente, aplicavam-se à pronúncia que nem sequer haviam suposto. Assim, a duquesa, que tivera um bisavô que assessorava o conde Chambord, para implicar com o marido que se tornara orleanista, gostava de proclamar:

- Nós, os velhos de Frochedorf. - O visitante que até então julgara correto dizer "Frohsdorf" mudava de opinião o mais depressa possível e passava a dizer sem parar "Frochedorf".

Certa vez em que perguntava à Sra. de Guermantes quem era um jovem requintado que ela me apresentara como seu sobrinho e de quem mal ouvira o nome, tal nome não o distingui melhor quando, do fundo da garganta, a duquesa emitiu com força mas sem articular:

- É o é leonês, cunhado de Robert. Ele pretende ter a forma do crânio dos velhos galeses. -

Então compreendi que ela dissera: é o pequeno Léon (o príncipe de Léon, de fato cunhado de Robert de Saint-Loup).

- Em todo caso, não sei se ele tem o crânio - acrescentou ela -, mas o seu modo de se vestir, que aliás é bem chique, não tem muito o jeito daquele país. 

Um dia em que, de Josselin, onde eu estava em casa dos Rohan, tínhamos saído em peregrinação, vieram camponeses, um pouco de todas as partes da Bretanha. Um grandalhão leonês olhava assombrado para as calças beges do cunhado de Robert. 

- Que tem você que tanto me olha? Aposto que não sabe quem sou eu -, disse Léon. E, como o camponês dissesse que não: - Pois bem, sou o teu príncipe. 

- Ah! - respondeu o camponês se descobrindo e pedindo desculpas -, pensei que o senhor fosse um englische. -

E, se, aproveitando esse ponto de partida, eu estimulava a Sra. de Guermantes a falar dos Rohan (a quem sua família muitas vezes se aliara), sua conversação se impregnava um pouco do encanto melancólico das romarias bretãs e, como diria aquele verdadeiro poeta que é Pampille, "do acre sabor dos crepes de trigo preto cozidos num fogo de juncos"'.

[Pampille era pseudônimo da Sra. Léon Daudet, autora de um livro de receitas. (N. do T)] 

Do marquês de Lau (de quem se conhece o triste fim, quando, surdo, fazia-se levar à casa da Sra. H***, cega), ela contava os anos menos trágicos, quando, depois da caça, em Guermantes, punha chinelos para tomar o chá com o rei da Inglaterra, ao qual não se considerava inferior e com quem, como se vê, não fazia cerimônia. Ela assinalava este fato com tanta graciosidade que lhe acrescentava o penacho à mosqueteiro dos fidalgos um tanto gloriosos do Périgord.

Além disso, mesmo na simples qualificação de pessoas, ter o cuidado de diferenciar as províncias era na Sra. de Guermantes, fiel a si própria, um grande encanto que uma parisiense de origem nunca saberia possuir; e aqueles simples nomes de Anjou, de Poitou e do Périgord refaziam paisagens em sua conversação. Para voltar à pronúncia e ao vocabulário da Sra. de Guermantes, é por esse aspecto que a nobreza se mostra verdadeiramente conservadora, com tudo o que esse termo carreia, ao mesmo tempo, de um tanto pueril, um tanto perigoso, de refratário ao progresso, mas igualmente de divertido para o artista. Eu queria saber como se escrevia antigamente o nome Jean. Fiquei sabendo ao receber uma carta do sobrinho da Sra. de Villeparisis, que se assina-conforme foi batizado e figura no Gotha-Jehan de Villeparisis, com o mesmo e belo h inútil, heráldico, tal como é admirado, colorido de vermelhão ou de ultramar, num livro de horas ou num vitral. 

Infelizmente, não dispunha de tempo para prolongar indefinidamente essas visitas, pois desejava na medida do possível não voltar para casa depois de minha amiga. 

Ora, era sempre a conta-gotas que podia obter da Sra. de Guermantes as informações sobre suas toaletes, informações que eram úteis para mandar fazer toaletes do mesmo gênero para Albertine, na medida em que uma moça possa usá-las. 

- Por exemplo, senhora, no dia em que devia jantar na casa da Sra. de Saint-Euverte antes de ir à casa da princesa de Guermantes, estava usando um vestido todo vermelho, com sapatos vermelhos; estava extraordinária, parecia uma grande flor de sangue, um rubi em chamas; como se chamaria isso? E uma moça pode usar um vestido assim?

A duquesa, dando ao rosto fatigado a radiosa expressão que possuía a princesa des Laumes quando Swann lhe fazia cumprimentos outrora, olhou, rindo até as lágrimas, com ar zombeteiro, interrogativo e deslumbrado, para o Sr. de Bréauté, sempre presente àquela hora, e que fazia amornar sob o monóculo um sorriso indulgente para esse figura de intelectual por causa da exaltação física de rapaz que ele parecia ocultar. A duquesa dava a impressão de dizer: "Que terá ele, estará louco?" Depois, virando-se para mim com ar carinhoso: 

- Eu não sabia que parecia um rubi em chamas ou uma flor de sangue, mas lembro-me de fato que usei um vestido vermelho: era de cetim rubro como então costumava usar-se. Sim, uma moça pode, a rigor, usar isso, mas você me disse que ela não saía à noite. É um vestido de festa de gala, não pode ser usado apenas para fazer visitas. 

O extraordinário é que daquele sarau, enfim não tão antigo, a Sra. de Guermantes só se lembrasse de sua toalete e tivesse esquecido uma coisa que no entanto, conforme veremos, deveria ter grande importância para ela. Parece que nas pessoas de ação, e os mundanos são pessoas de ação (minúsculas, microscópicas, mas enfim pessoas de ação), o espírito esgotado pela atenção naquilo que há de ocorrer dentro de uma hora, só confia muito pouco à memória. Muitas vezes, por exemplo, não era para despistar e parecer não ter se enganado, que o Sr. de Norpois, quando lhe falavam de prognósticos que ele havia emitido a respeito de uma aliança alemã que nem sequer fora concluída, dizia: 

- Devem estar enganados, não me recordo absolutamente, isto não parece coisa minha, pois nesse tipo de conversa sou sempre muito lacônico e jamais teria predito o sucesso de golpes espetaculares, que em geral não passam de cabeçadas e habitualmente degeneram em atos de violência. É inegável que, num futuro remoto, poderia efetuar-se uma aproximação franco-alemã, a qual seria muito vantajosa para os dois países, e dela a França não tiraria só desvantagens, creio; mas jamais falei sobre tal assunto, porque o fruto ainda não está maduro e, se querem a minha opinião, penso que, ao pedirmos a nossos velhos inimigos que convolem conosco em justas bodas, correríamos o risco de um tremendo fracasso e só receberíamos bordoadas. - 

Dizendo isto, o Sr. de Norpois não mentia, simplesmente se esquecera. De resto, a gente se esquece depressa daquilo que não pensou com profundidade, do que nos foi ditado pela imitação e pelas paixões circundantes. Elas mudam, e com elas modifica-se a nossa recordação. Ainda mais que os diplomatas, os políticos não se lembram do ponto de vista que adotaram em certa ocasião, e algumas de suas palinódias se referem menos a um excesso de ambição do que a uma falta de memória. Quanto às pessoas mundanas, estas lembram-se de pouca coisa.

A Sra. de Guermantes afirmou-me que, no sarau ao qual comparecera de vestido vermelho, já não se lembrava que ali estivera a Sra. de Chaussepierre, que certamente eu me enganava. Ora, sabe Deus no entanto se, desde então, os Chaussepierre não ocuparam o espírito do duque e até da duquesa! Eis o motivo. O Sr. de Guermantes era o mais antigo vice-presidente do Jockey quando o presidente faleceu. Certos membros do clube que não têm relações e cujo único prazer é dar bolas pretas às pessoas que não os convidam, fizeram campanha contra o duque de Guermantes, o qual, certo de ser eleito e bem negligente quanto a essa presidência que valia muito pouco relativamente à sua posição mundana, não cuidou de nada. Ressaltaram que a duquesa era dreyfusista (no entanto, o Caso Dreyfus já se encerrara há muito tempo, mas vinte anos depois ainda se falava nele, e ela só o era havia dois anos), recebia os Rothschild, que se favoreciam demais desde algum tempo dos grandes potentados internacionais, como o duque de Guermantes, que era meio alemão. A campanha encontrou um terreno bastante propício, pois os clubes invejam muito as pessoas em destaque e detestam as grandes fortunas. A de Chaussepierre não era pequena, mas não dava para ofuscar ninguém; ele não gastava um tostão, o apartamento do casal era modesto, a mulher andava vestida de lã preta. Louca por música, dava muitas reuniões pequenas para as quais eram convidadas muito mais cantoras do que à casa dos Guermantes. Mas ninguém falava nelas, tudo isso se passava sem refrescos, até o marido estava ausente, na obscuridade da rua de Ia Chaise. Na ópera, a Sra. de Chaussepierre passava despercebida, sempre na companhia de pessoas cujo nome evocava o meio mais "ultra" da intimidade de Carlos X, mas pessoas apagadas, pouco mundanas. No dia da eleição, para surpresa geral, a obscuridade triunfou sobre o esplendor: Chaussepierre, segundo vice-presidente, foi eleito presidente do Jockey, e o duque de Guermantes levou carona, isto é, permaneceu como primeiro vice-presidente. Claro que ser presidente do Jockey não representa muita coisa para os príncipes da mais alta estirpe como eram os Guermantes. Mas não sê-lo quando chegou a vez, ver-se preterido por um Chaussepierre cuja mulher Oriane não só não cumprimentava dois anos antes, como chegava a se mostrar ofendida de ser cumprimentada por aquele morcego desconhecido era duro para o duque. Ele pretendia estar acima desse fracasso, assegurando aliás que era à sua velha amizade a Swann que o devia. Na realidade, sua cólera era interminável. Muito curioso era o fato de jamais terem ouvido o duque de Guermantes servir-se da expressão bel et bien, bastante trivial, no sentido de "inteiramente". Mas desde a eleição do Jockey, quando lhe falavam do Caso Dreyfus, bel et bien surgia logo:

- Caso Dreyfus, Caso Dreyfus, é fácil de dizer e o termo é impróprio; não se trata de uma questão de religião, mas bel et bien de uma questão política.- 


continua na página 16...
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Volume 2
Volume 3
Volume 4
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A Prisioneira (Prefácio)
A Prisioneira (Toda a seiva local)

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