segunda-feira, 23 de dezembro de 2024

Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Oitavo - Desforra / III — Javert satisfeito

Victor Hugo - Os Miseráveis


Primeira Parte - Fantine

Livro Oitavo — Desforra


III —  Javert satisfeito

     Eis o que sucedera.
     Dava meia-noite quando Madelaine saiu do tribunal de Arras. Tinha chegado à estalagem justamente a tempo de partir na mala-posta, da qual, como é sabido, tomara um lugar. Pouco antes das seis da manhã, chegara a Montreuil-sur-mer e o seu primeiro cuidado fora lançar no correio a sua carta para Laffite e em seguida dirigir-se à enfermaria para ver Fantine.  
     Apenas, porém, ele se ausentara da sala da audiência, o delegado, voltando a si do primeiro arrebatamento, tomou a palavra para deplorar o ato de loucura do respeitável maire de Montreuil-sur-mer, declarando que as suas convicções em nada tinham sido modificadas por aquele extraordinário incidente, que mais tarde se esclareceria, e requerera entretanto a condenação de Champmathieu, que era evidentemente o verdadeiro Jean Valjean. A persistência do delegado estava em visível contradição com o sentimento de todos, do público, do juiz e dos jurados. O advogado tivera pouco trabalho para refutar esta arenga e estabelecer que, depois das revelações do senhor Madelaine, isto é, do verdadeiro Jean Valjean, se achava completamente prejudicado aquele processo e que o júri já não tinha na sua presença senão um inocente. Ao advogado, que disto fizera objeto para alguns epifonemas, infelizmente pouco originais, sobre os erros judiciários, etc., etc., juntara-se o presidente no seu sumário e, daí a poucos minutos, Champmathieu era plenamente absolvido pelo júri.
     Todavia, o delegado necessitava dum Jean Valjean, escapando-lhe Champmathieu, lançou mão de Madelaine.
     Imediatamente depois da soltura de Champmathieu, encerrou-se o delegado com o presidente e conferenciaram ambos sobre a necessidade de se apoderarem da pessoa do maire de Montreuil-sur-mer. Estas palavras foram escritas pelo delegado na minuta do seu relatório ao procurador-régio.
     Passada a primeira impressão, o presidente fez poucas objeções. Era preciso que a justiça seguisse o seu curso. E depois, para se dizer tudo, o presidente, apesar de ser um homem bondoso e bastante inteligente, era ao mesmo tempo muito realista, e por isso sentira-se agastado por o maire de Montreuil-sur-mer ter dito imperador e não Bonaparte, quando falara do desembarque em Cannes.
     A ordem de prisão foi logo expedida. O delegado mandou-a imediatamente para Montreuil-sur-mer por um correio, a toda a brida, ao inspetor de polícia Javert.
     Como se sabe, Javert voltara para Montreuil-sur-mer apenas fizera o seu depoimento.
     Javert levantara-se da cama havia pouco, quando o correio lhe entregou o mandato de prisão.
     O próprio correio era um empregado de polícia muito entendido, o qual, em duas palavras, pôs Javert ao fato de quanto sucedera em Arras. A ordem de prisão assinada pelo delegado do procurador-régio era concebida nestes termos:

Ordeno ao inspetor Javert que prenda o senhor Madelaine, maire de Montreuil-sur-mer, que na audiência de hoje foi reconhecido como o forçado livre Jean Valjean.

     Quem não conhecesse Javert e que o tivesse visto no momento em que entrou na antecâmara da enfermaria não poderia adivinhar coisa alguma do que se passava, e ter-lhe-ia achado o aspecto mais natural que poderia imaginar-se. Estava tranquilo, frio, grave, com os cabelos grisalhos perfeitamente penteados, e acabara de subir a escada vagarosamente, como costumava. Mas quem o conhecesse bem e o examinasse atentamente teria estremecido. A fivela da sua gravata de coiro, em vez de estar na nuca, estava ao pé da orelha esquerda, sinal de agitação inaudita.
     Javert era um caráter completo, que tão pouco consentia uma ruga no seu dever como no seu vestuário; metódico com os celerados, rígido com os botões do seu casaco. Para ele colocar tão mal a fivela da gravata, era indispensável que tivesse experimentado uma dessas comoções que se poderiam denominar tremores de terra íntimos. Apresentara-se com toda a simplicidade, requisitara um cabo e quatro soldados na guarda vizinha, deixara os soldados no pátio e soubera onde era o quarto de Fantine pela porteira, que não suspeitou de coisa alguma, acostumada, como estava, a ver gente armada procurar o senhor maire.
     Javert, chegando ao quarto de Fantine, empurrou a porta com a brandura de um espião e entrou.
     Verdadeiramente, não entrou. Conservou-se estacado na porta entreaberta, com o chapéu na cabeça e a mão esquerda metida no peito da sobrecasaca, abotoada até ao pescoço. Nas pregas do cotovelo direito distinguia-se o castão de chumbo da sua enorme bengala, que desaparecia por detrás dele.
     Conservou-se assim perto dum minuto, sem que fosse notada a sua presença. De repente, Fantine ergueu os olhos, viu-o, e fez com que Madelaine se voltasse. No momento em que os olhos de Madelaine encontraram os de Javert, este, sem se mover, sem se aproximar, tornou-se espantoso. Nenhum sentimento humano consegue ser medonho como a alegria. Era o rosto de um demónio, apoderando-se da alma condenada que lhe pertencia. A certeza de ter, enfim, em seu poder Jean Valjean fez-lhe aparecer na fisionomia tudo o que tinha na alma. O fundo revolvido subiu à superfície. A humilhação de lhe ter quase perdido a pista e de se ter iludido por alguns instantes com Champmathieu desaparecia sob o orgulho de ter adivinhado tão bem e de ter conservado por tanto tempo um instinto tão infalível. O contentamento de Javert patenteava-se-lhe na atitude soberana. A deformidade do triunfo expandia-se-lhe na acanhada fronte. Era a horrorosa ostentação de um rosto satisfeito.
     Javert, naquele momento, estava no céu. Sem que o compreendesse muito claramente, mas, contudo, com uma confusa intuição da sua indispensabilidade e do seu bom êxito, conhecia que ele, Javert, personificava a justiça, a luz e a verdade, desempenhando o seu encargo de destruir o mal.
     Tinha por todos os lados em torno de si, a uma profundidade infinita, a autoridade, a razão, o assunto julgado, a consciência legal, a vindicta pública, todas as estrelas; protegia a ordem e fazia sair da lei o raio, vingava a sociedade, auxiliava o princípio absoluto; elevava-se no meio dos esplendores da glória; na sua vitória havia ainda um resto de desafio e de combate; de pé, altivo, brilhante, patenteava em pleno rosto a bestialidade sobrenatural de um arcanjo feroz; a sombra tremenda da missão que desempenhava tornava-lhe visível no punho contraído o vago cintilar do gládio social; feliz e indignado, tinha debaixo dos pés o crime, o vício, a rebelião, a perdição, o inferno; estava radiante. Sorria-se porque exterminava. Havia incontestável grandeza naquele S. Miguel monstruoso.
     Javert por tal modo medonho não tinha nada de ignóbil.
     A probidade, a sinceridade, a candura, a convicção, a ideia do dever, são coisas que, enganando-se, podem tornar-se hediondas, mas que mesmo nesse estado se conservam grandiosas; a majestade delas, próprias da consciência humana, persiste mesmo no horror; são virtudes estas que têm um vício o erro. A inexorável alegria honesta de um fanático em plena atrocidade conserva não sei que esplendor lugubremente venerável. Javert, sem que o suspeitasse, no meio da sua avantajada felicidade, era digno de lástima, como todo o ignorante que triunfa.
     Não podia haver coisa tão pungente e terrível como aquela figura, em que se patenteava o que poderia chamar-se maldade do bem.

continua na página 227...
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Victor-Marie Hugo (1802—1885) foi um novelista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista pelos direitos humanos francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les Misérables e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras clássicas de fama e renome mundial.

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Os Miseráveis: Fantine, Livro Oitavo - III —  Javert satisfeito
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Victor Hugo

OS MISERÁVEIS

Título original: Les Misérables (1862)
Tradução: Francisco Ferreira da Silva Vieira

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