segunda-feira, 23 de dezembro de 2024

Dostoiévski - O Idiota: Segunda Parte (3b) - O príncipe sentou-se

O Idiota


Fiódor Dostoiévski

Tradução portuguesa por José Geraldo Vieira

Segunda Parte

3.

      O príncipe sentou-se. Ficaram outra vez calados.

- Quando o senhor não está diante de mim, me ponho a odiá-lo. Minuto por minuto, durante estes três meses, Liév Nikoláievitch, em que não o vi, eu o detestei. Palavra de honra. Sentia-me capaz até de envenená-lo. Digo-lhe isso, agora. Bastou o senhor ficar sentado comigo um quarto de hora apenas, e toda a minha raiva passou e o senhor me é caro, como merece. Fique comigo um pouco... 
- Quando estamos juntos, você acredita em mim; mas quando estou ausente deixa de acreditar, imediatamente, e começa a desconfiar de mim. Você é como seu pai - respondeu o príncipe, com um sorriso afável, tentando esconder a emoção. 
- Acredito em tudo quanto diz, quando estou em sua companhia. Compreendo, naturalmente, que não podemos ser postos no mesmo nível... 
- Por que acrescenta isso? Pronto, já se irritou outra vez contra mim - disse o príncipe, admirado.
- Está bem, irmão, é que a sua opinião, no caso, não foi pedida - respondeu. - Foi assentada sem nos consultar. Quer saber, nossas maneiras de amar são bem diferentes. E há uma diferença em tudo - prosseguiu devagar, depois de uma pausa. - Diz o senhor que a ama com piedade. Em mim, porém, não há nenhuma espécie de piedade por ela. E ela também me odeia, mais do que a qualquer coisa. Dei em sonhar com ela, agora, e sonho que está sempre a rir de mim, com outros homens. E é isso, deveras, o que ela está fazendo, irmão. Está aí, está indo para o altar comigo, e todavia se esqueceu de me lançar ao menos um pensamento. É o mesmo que se estivesse trocando de sapato. Não vai acreditar em uma coisa. Sabe há quantos dias não a vejo? Cinco dias. Não ouso ir à casa dela. Perguntaria logo: “Que é que veio fazer aqui?” Ela me cobriu de vergonha.
- De vergonha? Não diga isso. 
- Então o senhor não sabe? Ora, pois se, como o senhor ainda agora mesmo disse, ela fugiu de mim, com o senhor, justamente no dia em que ia ser o casamento! 
- Mas você vai agora pensar que... 
- Então ela não me envergonhou em Moscou, com aquele oficial, Zemtiújnokov? Estou farto de saber isso! E quando já tinha combinado comigo o dia do casamento! 
- Impossível! - sustentou o príncipe. 
- Sei disso direitinho! - E Rogójin teimava com convicção. - Dirá o senhor que ela não é uma mulher dessas! Não adianta vir dizer- me que ela não é uma mulher dessas, irmão! Isso é asneira, Com o senhor, claro que ela não fará isso, e até se horrorizará com essas coisas, decerto. Mas comigo ela se porta assim. A coisa é essa. Ela me olha com profundo desprezo. Eu sei com toda a exatidão que só para me ridicularizar fingiu um caso com Keller. aquele oficial, o homem que boxeia... O senhor naturalmente ignora as partidas que ela me pregou em Moscou! E o dinheiro - a dinheirama que eu gastei!... 
- E... e você vai se casar com ela, agora? E que é que você vai fazer depois? - perguntou-lhe o príncipe, horrorizado. 

     Rogójin desceu um olhar terrível e sombrio sobre o príncipe e não respondeu.

- Há cinco dias que não a vejo - continuou ele, depois de um minuto de intervalo. - É bem capaz de me fugir outra vez. “Em minha casa ainda mando eu”, disse ela. “Se me der na veneta rompo contigo e vou para o estrangeiro”. Disse- me isso também... Que iria para o estrangeiro - observou ele, como entre parênteses, com um olhar todo especial jogado para dentro dos olhos do príncipe. - Eu sei que às vezes ela diz isso somente para me amedrontar, procurando meios de se rir de mim. Mas momentos há em que fica sinistra e taciturna, e não há meios de lhe arrancar palavra. E é disso que tenho pavor. Um dia julguei que o melhor sistema a adotar seria levar-lhe presentes sempre que a fosse ver. E o resultado foi que me ridicularizou ainda mais. irritou-se, deu à criada, a Kátia, o xale que eu lhe trouxera. Um xale igual àquele jamais ela o teve, não obstante haver sempre vivido suntuosamente. E quanto a marcar a data em que deva ser o nosso casamento, nem ouso abrir os lábios perguntando. Que raio de noivo estuporado sou eu que até medo tenho de visitá-la! Planto-me aqui, sentado, e quando já não suporto mais então saio, passo escondido diante da casa dela, fico em um vão pelas esquinas, a espreitar. Ainda um destes dias fiquei a noite inteira, até amanhecer, vigiando-lhe a porta. Cá uma desconfiança. E ela deve me haver visto, lá da janela. “Que me farias tu”, disse ela depois, “caso viesses a saber que te engano?” Então não me contive e lhe arrumei: “Vai fazendo uma ideia, desde já...
- Ideia... de quê?
- Sei lá! - riu Rogójin conturbado. - Em Moscou não a surpreendi com ninguém, por mais pistas que procurasse. Chamei-a de parte, certa ocasião, e então lhe fiz saber: “Prometeste casar comigo. Vais entrar para uma família honrada. Sabes o que foste até aqui?” E lhe disse o que ela havia sido.
- Teve essa coragem? 
- Tive, sim. 
- E depois? - “Agora nem mesmo como um criado te suportarei, quanto mais como marido!”. “Pois daqui não me vou sem que retires essa frase; aconteça o que acontecer”. “E eu chamarei Keller, então, e direi a ele que te jogue para fora segurando-te pela nuca”. Então me atirei a ela e a espanquei até ficar negra e azul. - Impossível!... - bradou o príncipe. - Estou lhe dizendo como foi - reafirmou Rogójin, vagarosamente, mas com os olhos em chamas. - E pelo espaço de trinta e seis horas não dormi, não comi e nem bebi. Não saí do quarto dela. Fiquei ajoelhado diante dela. “Não vou embora enquanto não me perdoares; nem mesmo morto. E se chamares alguém, eu me atirarei ao rio, pois que será de mim, doravante, sem ti?” E ela esteve todo aquele tempo como uma alucinada. Chorava... De repente, quis até me matar com uma faca. Depois me injuriou. Chamou Zaliójev, Keller e Zemtiújnokov. E diante de todos eles apontava para mim e me ridicularizava. “Que tal achas irmos nós, aqui, sem contar contigo, é claro, ao teatro, em bando? Vocês, amigos, que dizem, hein, cavalheiros? Ele que fique para aí. Ou será que pensa que vai também, ou que eu deva ficar com ele? Quando sair darei ordem para que te tragam o chá, escutaste, Parfión Semiónovitch? Deves estar com o estômago dando horas”. Voltou do teatro sozinha. “Esses teus amigos não passam de uns covardes e de uns pobres diabos! Ficaram com medo de ti e até quiseram me apavorar. Disseram: Ele vai lhe fazer pagar caro. Nastássia Filíppovna! É homem para lhe cortar a garganta, veja o que está fazendo! Pois agora, escuta: vou para o meu quarto de dormir e nem sequer fecharei a porta. Vês o medo que me inspiras? Fica sabendo e, se não acreditares, vai verificar. Trouxeram-te o chá?” Disse-lhe eu: “Não, e nem quero”. “Nem estou aqui para insistir, era só o que faltava. Isso de birras, enjoa”. E fez conforme dissera: não fechou por dentro a porta do quarto. Na manhã seguinte. ao aparecer e dar comigo, emitiu uma gargalhada. “Qual, és mesmo um cretino! Pois fica para aí”. “Perdoa-me!” insisti eu. “Não me enfureças! E desde já fica certo que não me caso contigo absolutamente! Passaste a noite toda nessa cadeira. E não dormiste?” “Não”. “Estúpido! E estás resolvido a não almoçar nem jantar. também?”. “Estou. Só quero uma coisa: que me perdoes!”. “Se soubesses como isso te calha bem! Tal e qual um selim em uma vaca! E nem cuides que eu me esteja afligindo. Importa- me lá que comas ou não. Cuidas que com isso me enterneces? Causas-me mais é ódio, isso sim!” Apesar de tal declaração daí a pouco deu em troçar de mim, e fiquei admirado da raiva lhe haver passado, pois ela guarda raiva por um tempo incrível, principalmente quando alguém a irrita. Então compreendi que me tem em tão pouca conta que nem mesmo um sentimento de ódio lhe mereço. E esta é que é a verdade. “Sabes que em Roma existe o Papa, não sabes?”. “Mais ou menos “ Nunca pegaste sequer em uma História Universal, Parfión Semiónovitch?”. “Sou um burro, nunca aprendi nada”. “Pois vou te dar uma História a ler. Certa vez um Papa se zangou com um imperador que então resolveu se ajoelhar, descalço, diante do palácio, ficando três dias sem comer nem beber à espera de ser perdoado. E que cuidas tu que o imperador pensou e que juras fez enquanto esteve ajoelhado acolá? Escuta, eu mesma te vou ler”. Deu um pulo e trouxe o livro: “Poesia”, disse, e começou a ler-me em versos o que o imperador jurara durante aqueles três dias, isto é, de como se vingaria do Papa. “Não estás gostando, Paffión Semiónovitch?”, perguntou-me. “Está muito certo tudo quanto me leste”, afirmei eu. “Ah! Então achas que está certo? Então também estás fazendo o teu juramentozinho, hein? “Quando ela se casar comigo eu a farei recordar-se desta passagem. Humilhá-la-ei até meu coração folgar.” “Não, não sei, quem te diz que estou pensando isso?”. “Há, ainda dizes que não. Afinal, qual é a resposta certa?”. “Sei lá. Não estive a fazer projetos ainda”. “Mas, e para agora, que idéias tens em mente?”. “Contemplar-te, ver-te a andar pela sala. ouvir o frufru do teu vestido e sentir que meu coração transborda... Depois. se saíres daqui da sala, ficarei à escuta. E se não ouvir nada então me consolarei em recordar todas as tuas palavras, uma por uma... E o timbre da tua voz, e tudo que te vi fazer. Já na noite passada não pensei em nada só para ficar ouvindo bem a tua respiração; enquanto dormias te remexeste, mudando de posição...” “Está bem, então sou eu que te devo dizer que em todo esse tempo não pensaste nem te arrependeste de me haver espancado?!”. “Quem te diz que não pensei? Devo ter pensado...”. “E se eu não te perdoar e não casar contigo?”. “Já te disse que me afogo”. “Mas talvez me mates, antes!”, disse ela e pareceu ficar refletindo. E então se zangou outra vez e saiu da sala. Uma hora depois voltou, parou diante de mim e declarou: “Eu me casarei contigo, Parfión Semiónovitch. E não porque tenha medo de ti”, explicou com um semblante sinistro. “Se me devo perder, qualquer forma serve. Puxa a cadeira para junto da mesa. Mandei vir teu jantar. E se eu me casar mesmo contigo, serei séria no que te diz respeito”. Permaneceu calada, depois, algum tempo, até que acrescentou: Afinal de contas não és um lacaio, logo não fica bem eu te tratar como um lacaio”. E então marcou, a seguir, a data do casamento. E eis que, uma semana depois, fugiu de mim, indo se acoitar na casa de Liébediev. Mal embarafustei pela casa adentro, veio a mim e explicou: “Não desisti, propriamente, apenas exijo o tempo que cuidar necessário para viver livre, pois sou dona de mim mesma. Aconselho-te a aproveitar também, caso queiras, a tua liberdade”. E eis em que pé estamos agora... Diga-me, Liév Nikoláievítch, que pensa de tudo isso?
- E você próprio, que pensa você disso tudo? - perguntou-lhe o príncipe, por sua vez, olhando amarguradamente para Rogójin. 
- Então o senhor acha que eu posso pensar?! - foram as palavras que irromperam dos lábios de Parfión Semiónovitch. 

     Decerto quis acrescentar alguma coisa, mas ficou calado, com um desânimo desesperador. O príncipe levantou-se decidido a despedir-se de vez, o que fez com estas palavras:

- Não quero atrapalhá-lo, de forma alguma. - E falava mansamente, quase a esmo, aparentemente, mas como se respondesse a algum secreto pensamento.
- O senhor quer saber de uma coisa? - disse Rogójin, com repentina impetuosidade, os olhos faiscando. - Como é que o senhor me vem com isto agora? Quer me dizer que deixou de a amar? Ou se trata de mais um fingimento? Eu vejo as coisas. E por que foi então que veio para cá com tamanha pressa? Por piedade. - e o rosto dele esboçou maldosa ironia. - Ah! Ah!
- Você pensa que eu o estou enganando, agora? - perguntou o príncipe.
- Não. E creio no senhor. Mas é que não entendo isso! Não vi a sua piedade ser maior do que o meu amor! 

     Toda a sua face ardia em um desejo premente de se explicar. E havia nela uma certa malícia.

- Escute, dentro de você, amor e ódio se confundem! - disse o príncipe sorrindo. - Mas um prevalecerá e então talvez a perturbação venha a ser pior. É o que lhe digo, irmão Parfión... 
- Quer dizer que eu a matarei?

     O príncipe estremeceu. 

- Você a odiará amargamente, por causa desse amor, por causa de toda essa tortura que você está sofrendo agora. O que me parece mais estranho em tudo isso é que ela ainda pense em se casar com você. Quando ouvi isso ontem, mal pude acreditar e fiquei tão aflito. Veja bem: ela o largou duas vezes e fugiu no dia do casamento. Portanto, ela tem qualquer pressentimento. Que é que ela descobriu em você, agora? O dinheiro não pode ser; seria bobagem. E é claro que você esbanjou muito, ultimamente. Será simplesmente para arranjar marido? Ora, acharia muitíssimos outros. Qualquer outro seria preferível, mil vezes, visto como você, realmente, poderá chegar até a assassiná-la. E ela sabe disso muitíssimo bem, agora, decerto. Ou será porque você a ama tão apaixonadamente? É verdade que pode muito bem ser por isso. Já me disseram que há mulheres que apreciam tal espécie de amor...  

     Mas o príncipe calou-se e ficou pensativo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário