sábado, 31 de agosto de 2024

Ensaio - precisamos recomeçar: 06

primeiro dia

baitasar

o que mais escutamos nesse dia de reencontros, Precisamos recomeçar, eu sei, todos sabemos, os olhos na minha volta sabem, nos reconhecemos na escola, talvez já seja suficiente, talvez não, como cartões postais minguados, retratos distraídos de um pesadelo, ainda distantes uns dos outros, lembro que chorei prantos ocultos, quase morto, escapando em um barco anônimo, deixando para trás fotografias, livros, chinelos e cuecas

flutuava sobre as ruas, esquinas sumiram, Abaixa a cabeça! Cuidado com os fios, a dor da separação, muitos pedidos de socorro, nenhum aviso, Rompeu o dique! Saiam das suas casas!

canalhas derrubam árvores, velhacos anunciam promessas infames e continuam com suas histórias de mentiras e privilégios, várzeas aterradas, portas e comportas de ferro mal cuidadas, arrombadas, estradas arrancadas, outros enganadores se juntam e se anunciam diferentes, sinto a perturbação entre nós, até quando teremos medo das marias que anunciam um outro mundo possível, mais amoroso e cuidado, tenho pena dos achatados e perdidos na ânsia de sobreviver com suas salvaguardas e regalias, hesitantes em uma outra vida possível, então, seguem acreditando em mais mentiras, dia após dia, e nas ruas empilhadas com suas casas vazias e frias

a escola talvez rejunte nas pessoas os desejos

Como recomeçar, nos perguntamos, Precisamos parar de anunciar mentiras que sabemos que são mentiras bem cuidadas e protegidas pela ganância, respondo, silêncio, a conversa parece que não vai no rumo do esquecimento que muitos ainda querem, olho meu colega nos olhos, quase sussurro, E o muro, pergunto, O que tem o muro, pergunta sussurrando o cuidador de mentiras desatento, Vão continuar querendo derrubar o muro em nome do futuro, pergunto, mais silêncio, tenho medo desse silêncio complacente e arrogante ou ignorante, mas prefiro enfrentá-lo a ficar de joelhos, Um vexame... você não acha, insisto, Que vexame, pergunta murmurando, Pense, respondo

vou para um lugar estratégico, despercebido dos olhares, mas em prontidão permanente, todos aqui somos vítimas, não podemos ir embora e esquecer, estamos desenganados, condenados a carregar por muito tempo o medo das águas cobrindo nossas vidas

recebemos as boas-vindas, conversamos sobre esse retorno, as muitas coisas que nos aconteceram, um lugar que perdemos para as águas embarradas, encharcando até o topo com o aroma fedorento dos escombros, hesitamos, incertos no futuro, muitos não retornaram, outros não retornarão

E quando as águas voltarem... estaremos preparados, é a pergunta que todos se fazem

sinto meus olhos vermelhos, lagrimando, gostamos desta escola acolhedora, destes lugares em que crescemos, muitos nasceram nestas casas desmanteladas, o tempo das parteiras

estamos nos derramando sem enganação, precisamos da escola em pé, não é um faz-de-conta, olho para os lados, ninguém desatento ou hostil, gostamos destas paredes e das vidas acolhedoras, os abraços, os jogos, as brincadeiras, a cantoria da gincana, a festa junina, o dia das mães, o dia dos pais, a festa de natal, a páscoa, aprender e ensinar, educar nos educando, deve ser por isso que retornamos

construí relações amigáveis com alunos e alunas, colegas, funcionários e funcionárias, gosto de estar aqui, não tenho problemas com a garotada, e os que surgem não me assustam, pelo contrário, me fazem repensar meus caminhos

tiro o boné, coço a cabeça, olhos à volta novamente, sem dúvida não estamos alegres, estamos diferentes

Estamos de volta!, anuncia a diretora

gritos e assobios ensurdecem no ginásio, também dou minha contribuição, lanço o boné para o alto junto com todos os outros

corro e pulo, junto o boné caído no chão

sim, vamos conseguir ficar alegres, logo ali, mais na frente, e quem sabe, esses dias intermináveis não venham se repetir, o futuro dirá, por enquanto seguimos desconfiados, aquela incessante dança das águas derramadas sobre nós escreveu uma nova história nas páginas e nas vidas da cidade

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Ensaio - precisamos recomeçar: 06

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