volume VI
A Fugitiva
Capítulo I
Mágoa e Esquecimento
continuando...
Mas todos esses detalhes, não era justamente isso o que eu procurara obter de cada pessoa a respeito de Albertine? Não fora eu quem, mesmo sem conhecê-los mais precisamente, pedira a Saint-Loup, chamando-o de volta pelo seu coronel, que passasse de qualquer jeito em minha casa? Então não fora o que desejara, eu, ou melhor, a minha dor ansiosa, ávida por aumentar e alimentar deles? Por fim Saint-Loup me dissera ter tido a boa surpresa de encontrar perto dali, uma única pessoa conhecida e que lhe recordara o passado, uma amiga de Rachel, uma bela atriz que passava as férias nas redondezas. E dessa atriz bastou para que eu dissesse para mim mesmo: "Talvez seja como se aquilo bastava para que eu visse, nos próprios braços de uma mulher a que conhecia, Albertine risonha e rubra de prazer. E, no fundo, por que não assim? Teria eu deixado de pensar em mulheres desde que conhecia Albertine. Na noite em que estivera pela primeira vez na casa da princesa de Guermantes antes de regressar, não pensava eu muito menos nesta última que na moça de quem Saint-Loup gostava e que frequentava os bordéis, e na camareira da Sra. Putbus? Por causa desta última é que eu tinha voltado à Balbec? Mais recentemente, tive vontade de ir à Veneza; por que não poderia Albertine ter vontade de ir à Touraine. Apenas, no fundo - percebia agora-, eu não a teria deixado, não iria à Veneza. No fundo de mim mesmo, dizendo sempre: "Em breve a deixarei", sabia que; a deixaria mais, tão bem quanto sabia que não principiaria mais a trabalhar viver uma vida higiênica, enfim, tudo aquilo que diariamente me prometia para o dia seguinte. Apenas, no fundo, fosse o que fosse aquilo em que eu acreditava, julgado mais hábil deixá-la viver sob a ameaça de uma perpétua separação.
E dúvida, graças à minha detestável habilidade, eu a convencera demais. Em todo caso,
aquilo agora não podia continuar desse jeito, eu não podia deixá-la na Touraine, com essas
moças, com semelhante atriz; não podia suportar a ideia de que a vida me fugia. Esperaria a sua
resposta à minha carta; se ela praticava o mal, de mim, um dia a mais ou a menos não fazia
diferença (e talvez eu me dissesse porque, não mais tendo o hábito de tomar conta de cada um
de seus minutos; quais um só que ela tivesse passado em liberdade me transtornava, meu ciúme
não tinha a mesma divisão do tempo). Mas, logo que chegasse a sua resposta se ela não voltasse
eu iria buscá-la; por bem ou por mal, iria arrancá-la de suas amigas. Além disso, não era preferível
que eu mesmo fosse, agora que havia descoberto a maldade de Saint-Loup, até então
insuspeitada de mim? Quem sabe se ele havia organizado todo um complô para me separar de
Albertine? Seria porque tinha mudado, seria porque não pudera supor então que causas naturais
me ligaram um dia a esta situação excepcional; mas como teria mentido agora se escrevesse,
como lhe dizia em Paris que não desejava lhe acontecesse algum acidente! Ah, se acontecesse
algum, minha vida, em vez de ser envenenada para sempre por este ciúme incessante, teria logo
recuperado, se não a felicidade, menos a calma, pela supressão do sofrimento. A supressão do
sofrimento? Não pude jamais acreditar nisso, acreditar que a morte não faz mais que riscar o que
existe e deixar o resto intacto, que ela arrebata a dor ao coração daquele para quem a existência
do outro não é mais que fonte de mágoas; que ela arrebata a dor e não põe nada em seu lugar? A
supressão da dor! Percorrendo o noticiário dos jornais, eu lamentava não ter a coragem de
enunciar o mesmo desejo de Swann. Se Albertine pudesse ser vítima de um acidente; viva, eu
teria tido um pretexto para correr junto à ela; morta, teria recuperado, como dizia Swann, a
liberdade de viver. Acreditava eu nisso? Ele o acreditara, aquele homem tão fino e que julgava
conhecer-se bem. Como sabemos pouco do que nos vai pelo coração! Como, um pouco mais
tarde, se ele ainda fosse vivo, eu teria podido lhe dizer que seu desejo, além de criminoso, era
absurdo, que a morte daquela a quem amava não o teria livrado de coisa alguma!
Deixei de lado todo o orgulho diante de Albertine, e mandei-lhe um telegrama
desesperado, pedindo-lhe que voltasse sob quaisquer condições, que ela faria tudo o que
quisesse; pedia-lhe somente que me deixasse beijá-la por um minuto, três vezes por semana,
antes que se deitasse. E, mesmo que ela dissesse: "Uma vez apenas", eu teria aceitado. Ela não
voltou nunca mais. Meu telegrama acabava de ser expedido quando recebi outro. Era da Sra.
Bontemps. O mundo não é criado de uma vez por todas para cada um de nós. Ele vai se
acrescentando, no decurso da vida, de coisas de que nem suspeitávamos. Ah! Não foi a
supressão do sofrimento o que produziram em mim as duas primeiras linhas do telegrama:
MEU POBRE AMIGO, NOSSA PEQUENA ALBERTINE JÁ NÃO EXISTE, PERDOE-ME
POR DIZER ESTA COISA HORRÍVEL AO SENHOR QUE A AMAVA TANTO. ELA FOI LANÇADA
PELO SEU CAVALO CONTRA UMA ÁRVORE DURANTE UM PASSEIO. TODOS OS NOSSOS
ESFORÇOS NÃO PUDERAM REANIMÁ-LA. ANTES TIVESSE EU MORRIDO EM SEU LUGAR!
Não, não a supressão do sofrimento, mas um sofrimento desconhecido, o de saber que ela não voltaria mais. Mas não me dissera eu diversas vezes que ela talvez não voltasse mais? Dissera-o de fato a mim mesmo, mas agora percebia que não o acreditara por um instante sequer. Visto necessitar de sua presença, de seus beijos, para suportar o mal que me causavam as minhas suspeitas, adquirira, desde Balbec, o hábito de estar sempre com ela. Mesmo quando ela havia saído, quando me encontrava sozinho, eu ainda a beijava. E continuara assim desde que ela fora para a Touraine. Precisava menos da sua fidelidade que do seu regresso. E, se a minha razão podia impunemente duvidar disso, a imaginação não cessava por um instante de figurá-lo. Instintivamente, passei a mão pelo pescoço e pelos lábios, que se sentiam beijados por ela desde que partira, e que nunca mais o seriam; passei a mão por eles, como mamãe me havia acariciado quando da morte de minha avó dizendo-me:
Não, não a supressão do sofrimento, mas um sofrimento desconhecido, o de saber que ela não voltaria mais. Mas não me dissera eu diversas vezes que ela talvez não voltasse mais? Dissera-o de fato a mim mesmo, mas agora percebia que não o acreditara por um instante sequer. Visto necessitar de sua presença, de seus beijos, para suportar o mal que me causavam as minhas suspeitas, adquirira, desde Balbec, o hábito de estar sempre com ela. Mesmo quando ela havia saído, quando me encontrava sozinho, eu ainda a beijava. E continuara assim desde que ela fora para a Touraine. Precisava menos da sua fidelidade que do seu regresso. E, se a minha razão podia impunemente duvidar disso, a imaginação não cessava por um instante de figurá-lo. Instintivamente, passei a mão pelo pescoço e pelos lábios, que se sentiam beijados por ela desde que partira, e que nunca mais o seriam; passei a mão por eles, como mamãe me havia acariciado quando da morte de minha avó dizendo-me:
- Meu pobre pequeno, tua avó que te amava tanto não vai te beijar mais. - a esperança na
vida vindoura se acabava, arrancada de meu coração. Minha vida vindoura? Então não pensara
eu por vezes em acabar sem viver com Albertine? Não! Desde muito tempo então eu não lhe
havia dedicado todos os minutos de minha vida até a morte? Mas é claro! Esse futuro inseparável
dela, eu não soubera percebê-lo, mas agora que acabava de descerrar-se, bem sentia que ele
ocupava em meu coração aberto. Françoise, que ainda não sabia entrou em meu quarto;
furiosamente, gritei-lhe:
- O que é que há? -
Então às vezes palavras que põem uma realidade diferente no mesmo lugar da qual junto
a nós, e nos aturdem tanto quanto uma vertigem; ela me disse:
- O não precisa ficar zangado. Pelo contrário, vai ficar bem contente. São duas amigas da
senhorita Albertine. -
Percebi depois que deveria ter o olhar de alguém cujo ser perde o equilíbrio. Não fiquei
feliz nem incrédulo. Sentia-me como alguém que enxerga o mesmo lugar de seu quarto ocupado
por um canapé. Nada mais lhe parecendo real, ele cai por terra. As duas cartas de Albertine
teriam sido escritas pouco tempo antes do passeio em que ela morrera. A primeira:
Meu amigo, agradeço-lhe a prova de confiança que me dá ao me dizer sua intenção de
trazer Andrée para sua casa. Estou certa de que ela aceita com alegria e creio que isto será muito
feliz para ela. Bem dotada como é, saberá aproveitar a companhia de um homem como você e a
admirável influência que você exercer sobre uma pessoa. Acho que teve uma ideia da qual pode
nascer benefício tanto para você como para ela. Assim, se ela opuser alguma dificuldade (o que
não creio), passe-me um telegrama que me encarregarei de convencê-la.
A segunda estava datada de um dia depois. Na verdade, Albertine as havia escrito com
poucos instantes de intervalo, talvez ao mesmo tempo, e depois pré-datado a primeira. Pois o
tempo todo eu imaginara absurdamente as intenções, que só consistiam em voltar para junto de
mim e que alguém desavisado no assunto, um homem sem imaginação; o negociador de um
tratado; de um comerciante que examina uma transação, teria julgado melhor do que eu. Havia
apenas estas palavras:
Será tarde demais para que eu volte para sua casa? Se ainda não escolheu à Andrée,
consentiria em me aceitar de volta? Eu me inclinarei diante de sua decisão; peço-lhe que não
tarde a me comunicá-la; imagina com que impaciência espero. Se for para que eu volte, tomarei o
trem imediatamente. De todo o coração sua Albertine.
Para que a morte de Albertine pudesse suprimir meus sofrimentos, era necessário que o
choque a tivesse matado não apenas na Touraine mas dentro de mim. Ela nunca aí estivera mais
viva. Para entrar em nós, uma criatura foi obrigada a assumir a forma, a submeter-se ao quadro
do tempo; só nos aparecendo minutos sucessivos, ela nunca pôde nos entregar, de sua pessoa,
senão um aspecto de cada vez, fornecer de si mesma apenas uma única fotografia. Grande
fraqueza, sem dúvida, para uma criatura, o consistir numa simples coleção de momentos; grande
força também; depende da memória, e a memória de um momento não é informada acerca de
tudo o que se passou desde então. Esse momento que ela registrou dura ainda, vive ainda, e com
ele a criatura que aí se perfilava. E, além disso, esse esmigalhamento não faz apenas viver a
pessoa morta, multiplica a dor. Para me consolar, não era uma, eram inumeráveis Albertines que
eu deveria esquecer. Quando chegasse a suportar o desgosto de ter perdido esta, era o caso de
ter de recomeçar com uma outra, com cem outras.
Então a minha vida mudou completamente. Aquilo que, e não por causa de Albertine, mas
paralelamente a ela, quando eu estava sozinho, formara-lhe a doçura, era justamente, ao apelo
de momentos idênticos, o perpétuo renascer de momentos antigos. Pelo ruído da chuva era-me
restituído o cheiro dos lilases de Combray; pela passagem do sol sobre o balcão, os pombos dos
Champs-Élysées; pelo amortecimento dos ruídos no calor da manhã, a frescura das cerejas; o
desejo da Bretanha ou de Veneza pelo rumor do vento e pela volta da Páscoa. Aproximava-se o
verão, os dias se encompridavam, fazia calor. Era o tempo em que, de manhã bem cedo, alunos e
professores vão para os jardins públicos preparar os últimos concursos debaixo das árvores, a fim
de recolher a única gota de frescura deixada cair por um céu menos flamejante que no ardor do
dia, porém já também puramente estéril. Do meu quarto ensombrado, com um poder de evocação
igual ao de outrora, mas que só me dava sofrimento, eu sentia que lá fora, na lentidão do ar, o sol
poente punha na verticalidade das casas e das igrejas um fulvo tom de ocre. E se Françoise, ao
voltar, desarrumava sem querer as pregas das grandes cortinas, eu sufocava um grito diante do
rasgão que acabava de fazer dentro de mim esse raio de sol antigo que me fizera parecer bela a
fachada nova de Bricqueville I'Orgueilleuse, quando Albertine me dissera:
- Ela está restaurada. -
Não sabendo como explicar o meu suspiro a Françoise, dizia-lhe:
-Ah, tenho sede. -
Ela saía, voltava, mas eu me desviava com violência, sob o influxo doloroso de uma das
mil recordações invisíveis que a todo instante estalavam a meu redor na sombra: acabava de ver
que ela trouxera a cidra e as cerejas, as mesmas que um empregado da granja nos levara ao
carro, em Balbec, espécies sob as quais eu mais perfeitamente teria comungado, outrora, com o
arco-íris das salas de jantar escuras, nos dias escaldantes. Então pensei pela primeira vez na
granja dos Ecorres, e disse comigo que, em certos dias, quando Albertine me dizia, em Balbec,
não estar livre, ser obrigada a sair com a tia, talvez estivesse na companhia de uma de suas
amigas numa granja aonde ela sabia que eu não costumava ir e, enquanto eu casualmente me
demorava em Marie Antoinette, onde me haviam dito:
- Não a vimos hoje -, ela empregava com a amiga as mesmas palavras que usava para
comigo quando saíamos juntos:
- Ele não terá ideia de nos procurar aqui e assim não seremos incomodadas.
Eu dizia a Françoise que cerrasse as cortinas para não ver mais aquele raio de sol. Mas
ele continuava a filtrar-se igualmente corrosivo, na minha memória.
- Não gosto, foi restaurada, amanhã iremos a Saint-Martin-le-Vêtu, depois de amanhã a...
Amanhã, depois de amanhã, era um futuro de vida em comum, talvez para sempre, pedia
que meu coração se arremessava para ele, mas ele já não estava ali, Albertine havia morrido.
Perguntei as horas a Françoise: seis horas. Enfim, graças a Deus: parecer aquele calor
pesado de que antes eu me queixava à Albertine e que apreciávamos. O dia chegava ao fim. Mas
o que ganhava eu com isso? Era o frescor da noite, era o pôr-do-sol; em minha memória, ao fim
de uma caminhada tomávamos juntos para regressar, o trem; eu percebia, mais além da última
aldeia uma espécie de estação distante, inacessível àquela noite em que nos deteria em Balbec,
sempre juntos. Juntos então, era preciso agora parar de repetir desse mesmo abismo, ela havia
morrido.
Volume 6
continua na página 31...
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Leia também:
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Volume 2
Volume 3
Volume 4
Volume 5
A Prisioneira (Prefácio)Volume 6
A Fugitiva (Mágoa e Esquecimento - k)
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