segunda-feira, 7 de outubro de 2024

Marcel Proust - O Tempo Recuperado (Bloch nos deixou)

em busca do tempo perdido

volume VII
O Tempo Recuperado


continuando...

     Bloch nos deixou diante da porta de sua casa, transbordante de azedume contra Saint-Loup, dizendo-lhe que os outros, "belos rapazes" agora pavoneando-se nos Estados Maiores, não arriscavam coisa alguma, ao que ele, simples soldado de 21ª classe, não desejava ser "crivado de balas" por causa de Guilherme.

- Parece que o imperador Guilherme está gravemente enfermo - respondeu Saint Loup.  

     Bloch que, como todas as pessoas que lidam com a Bolsa, com extrema facilidade as notícias sensacionalistas, acrescentou:

- Dizem até que ele está morto. - Na Bolsa, todo soberano doente, fosse Eduardo VII ou Guilherme II, está morto, toda cidade a ponto de ser assediada, já sofreu captura. - Só dão o fato - continuou Bloch - para não abater o moral dos boches. Mas, morreu na noite de ontem. Meu pai o soube por uma fonte altamente fidedigna. As fontes altamente fidedignas eram as únicas que o Sr. Bloch pai levava em consideração porque, devido às "altas relações", tinha a sorte de estar em comunicação das quais recebia a notícia, ainda secreta, de que as ações da Extérieure iam subir, que as de Beers cairiam. Aliás, se naquele preciso momento houvesse uma alta ações da Beers, ou "ofertas" pelas da Extérieure, se o mercado da primeiramente revelasse "firme" e "ativo", e o da segunda "hesitante", "fraco", e as pessoas se prevenissem", nem por isso a fonte fidedigna deixava de sê-lo. Assim, Bloch nos anunciou a morte do Kaiser com ar misterioso e importante, mas também irritado. Especialmente exasperava-o ouvir Robert dizer: "o imperador Guilherme". Creio que, sob o cutelo da guilhotina, Saint-Loup e o Sr. de Guermantes não diriam coisa diversa. Dois homens da sociedade, últimos sobreviventes numa ilha deserta, onde não precisariam dar provas de boas maneiras a ninguém, se reconheceriam graças a esses traços de polidez, da mesma forma que dois latinistas citariam corretamente Virgílio.

     Mesmo torturado pelos alemães, Saint-Loup jamais deixaria de dizer outra coisa que não "o imperador Guilherme". E este savoir-vivre é, apesar de tudo, o grande sinal de entraves para o espírito. Aquele que não sabe rejeitá-los, permanece um mundano. Essa elegante mediocridade, aliás, é deliciosa - sobretudo pelo que deixa entrever de generosidade escondida e de heroísmo não expresso - ao lado da vulgaridade de Bloch, a um tempo covarde e fanfarrão, que gritava para Saint-Loup: 

- Não poderias dizer "Guilherme", simplesmente? É isto, és um poltrão, e já te pões de quatro diante dele! Ah, teremos bravos soldados na fronteira, vão lamber as botas dos boches. Vocês usam galões e sabem se exibir num picadeiro. Mais nada. 

- Este pobre Bloch quer absolutamente que eu não faça outra coisa além de exibir me - comentou Saint-Loup sorrindo, depois de nos separarmos do nosso companheiro. 

     E senti perfeitamente que exibir-se não era de forma alguma o que Robert desejava, embora na ocasião não lhe percebesse tão bem as intenções, como mais tarde, quando, permanecendo inativa a cavalaria, ele conseguiu servir primeiro como oficial de infantaria, depois como oficial dos atiradores, e, por fim, quando aconteceu o que se lerá mais adiante. Porém Bloch não percebia do patriotismo de Saint-Loup, simplesmente porque Robert não o manifestava de forma alguma. Se Bloch nos fizera profissões de fé maldosamente anti militaristas ao ser considerado apto, antes, quando se julgara dispensado por miopia, este dera declarações extremamente nacionalistas. Mas tais declarações, Saint-Loup teria sido incapaz de fazê-las; primeiro, por uma espécie de delicadeza moral que impede a expressão de sentimentos muito profundos e que se consideram naturais. Minha mãe, outrora, não só não teria vacilado um segundo em morrer por minha avó, como sofreria horrivelmente se a tivessem impedido de fazê-lo. Não obstante, é-me impossível imaginar, retrospectivamente, em sua boca uma frase do tipo:

"Darei a vida por minha mãe." 

     Tão tácito era Robert em seu amor pela França, que, nesse momento, eu o considerava, muito mais Saint-Loup (na medida em que podia me figurar seu pai) do que Guermantes. Teria também sido preservado de expressar tais sentimentos pela qualidade de certa forma moral de sua inteligência. Há entre os trabalhadores intelectuais e verdadeiramente sérios uma certa aversão por aqueles que transpõem para a literatura, valorizando-o, tudo o que eles fazem. Não tínhamos estado juntos nem no liceu nem na Sorbonne, mas, separadamente. E havíamos seguido certos cursos dos mesmos professores (e recordo o Saint-Loup) que, dando aulas notáveis, como alguns outros, querem fazer-se passar por homens de gênio, dando um nome ambicioso às suas teorias. Uma alusão a isso e Robert ria gostosamente. Naturalmente, não privilegiávamos o instinto dos Cottard ou dos Brichot; mas enfim, mostrávamos uma certa consideração pelas pessoas que conhecem a fundo o grego ou a medicina e nem por isso se julgavam autorizadas a assumir ares de charlatães. Dizia eu que se todas as vezes em que mamãe outrora assentava na ideia de que ela teria dado a vida por mim; o fato é que ela jamais formulara tal sentimento para si própria e que, teria achado não apenas inútil e ridículo, mas também chocante e vergonhoso expressá-lo aos outros; da mesma forma, é-me impossível imaginar, Saint-Loup (ao me falar do seu equipamento, das marchas que tinha de de nossas chances de vitória, o pouco valor do exército russo, daquilo que seria a Inglaterra), é-me impossível imaginar em sua boca a frase, ainda a mais proferida por um ministro, mesmo o mais simpático, aos deputados que o aplaudem de pé, entusiasmados. Todavia, não posso garantir que não houvesse, lado negativo que o impedia de expressar os mais belos sentimentos, um "espírito dos Guermantes", de que já vimos tantos exemplos no caso de Saint-Loup. Pois, se o achava sobretudo um Saint-Loup, ele continuava sendo também Guermantes, e assim, dentre os muitos motivos que excitavam a sua conversa havia aqueles diversos dos de seus amigos de Doncieres, os rapazes apaixonados pela carreira militar com quem eu jantara todos os dias, e dos quais tantos me falaram na batalha do Marne ou alhures, junto com seus homens.
     Os jovens socialistas que poderia haver em Doncieres, quando ali estivera, que não chegara a conhecer porque não frequentavam o meio de Saint-Loup, ter verificado que os oficiais desse meio não eram de modo algum aristocratas - acepção altivamente orgulhosa e grosseiramente gozadora que o "populacho', oficiais tarimbeiros e os maçons atribuíam a esse termo. E aliás, paralelamente aos oficiais nobres encontraram esse mesmo patriotismo pleno entre os socialistas em quem eu os ouvira acusar, enquanto estava em Doncieres, de serem uns “sem pátria". O patriotismo dos militares, igualmente sincero e profundo, assumira forma definida que eles julgavam intangível, e sobre a qual indignavam-se lançando o opróbrio, enquanto os patriotas por assim dizer inconscientes, independentes, sem religião patriótica definida, como eram os radicais socialistas, conseguiram compreender a realidade profunda daquilo que consideravam vãs e odiosas.
     Como eles, Saint-Loup sem dúvida se habituara a desenvolver dentro de si, como a parte mais genuína do seu eu, a pesquisa e a concepção das melhores manobras, tendo em vista os maiores êxitos estratégicos e táticos, de modo que para ele, como para os demais, a vida do corpo era algo relativamente sem importância, que podia facilmente ser sacrificada a essa parte interior, verdadeiro núcleo vital a cuja volta a existência pessoal não tinha valor senão como uma epiderme protetora. Na coragem de Saint-Loup havia elementos mais característicos, entre os quais se reconheceria facilmente a generosidade que, logo no começo, fora o encanto da nossa amizade, e, também, o vício hereditário que mais tarde despertara nele, e que, aliado a um certo nível intelectual que ele não cultivara, fazia-o não somente admirar a coragem, mas levar o horror ao afeminamento a uma certa embriaguez no contato com a virilidade. Vivendo ao relento com senegaleses, que a todo momento faziam o sacrifício de suas vidas, ele sentia, castamente é claro, uma volúpia cerebral em que entrava muito de desprezo pelos "homenzinhos efeminados", e que, por mais oposta que lhe parecesse, não era muito diversa da que lhe conferia a cocaína da qual havia abusado em Tansonville, e cujo heroísmo - como um remédio que substitui outro -o curava. Em sua coragem havia, principalmente, aquele duplo hábito de polidez que, por um lado o fazia elogiar os outros, mas, para si próprio, contentar-se em fazer bem as coisas sem dizer nada a respeito (ao contrário de um Bloch, que lhe dissera em nosso reencontro: "Naturalmente, você não arriscaria nada", e que não fazia coisa alguma); e, por outro lado, levava-o a não dar valor ao que era seu, a fortuna, o nível social, sua própria vida, coisas que lhes cedia. Numa palavra, a verdadeira nobreza de sua formação. Porém tantas origens se confundem no heroísmo quanto esse gosto novo que se revelara nele, e também a mediocridade intelectual que não soubera vencer, tinham sua parte nisso. Assumindo os hábitos do Sr. de Charlus, Robert se achou a assumir, igualmente, embora sob forma bem diversa, o seu ideal de virilidade.

- A guerra vai durar muito tempo? - indaguei a Saint-Loup.

- Não, acredito numa guerra bastante curta - respondeu-me. Mas neste ponto, como sempre, seus argumentos eram livrescos. - Levando em consideração as profecias de Moltke, relê - disse ele, como se eu já tivesse lido - o decreto de 28 de outubro de 1913, a respeito da conduta das grandes unidades; verás que a substituição das reservas em tempo de paz não está organizada, nem sequer prevista, o que não teriam deixado de fazer se a guerra devesse ser longa.- 

     Parecia-me ser possível interpretar o decreto em questão, não como prova de que a guerra seria curta, mas como imprevisão de que ela o seria, e do que ela haveria de ser, daqueles que a tinham redigido, e que não suspeitavam nem do que seria, numa guerra estabilizada, o espantoso consumo de material de todo tipo, nem a solidariedade dos diversos teatros de operação.
     Fora a homossexualidade, nas pessoas naturalmente mais infensas ao homossexualismo, existe um certo ideal convencional de virilidade que, caso o homossexual não seja um indivíduo superior, encontra-se à disposição dele para ser corrompido alhures. Esse ideal de certos militares, de certos diplomatas - é particularmente exasperador. Sob seu aspecto mais vil, é simplesmente a dureza do coração de ouro que não quer parecer comovido e que, no momento em que um amigo que talvez venha a ser morto, tem no fundo uma vontade de chorar que ninguém duvida, porque ele a esconde sob uma cólera crescente que talvez por explodir no instante em que se deixam: "Vamos, com os diabos!, seu idiota; abrace-me, e pegue logo essa bolsa que me incomoda, seu imbecil!" O diplomático oficial, o homem que sente que apenas uma grande obra nacional é o que precisa, mas que, ainda assim, nutriu afeição pelo "pequeno" que estava na legação, no batalhão, e que morreu de febres ou de um tiro, apresenta o mesmo gosto de virilidade sob um aspecto mais hábil, mais sábio, mas, no fundo, igualmente odioso. Não deseja prantear o "pequeno", sabe que em breve não se pensará neste como o cirurgião bondoso que, todavia, na noite da morte de uma doente que tinha moléstia contagiosa, sente um desgosto que não manifesta. Por menos diplomata seja escritor e narre essa morte, não dirá que sentiu desgosto; primeiro, por "pudor viril", depois, pela habilidade artística, que faz nascer a dissimulando-a. Um de seus colegas e ele velarão o agonizante. Em nenhum momento dirão que sentiram mágoa. Falarão dos casos da legação, ou do batalhão até com maiores detalhes que de costume: 

''- B*** me diz: "Não se esqueçam que amanhã teremos revista do general, cuidem para que seus homens se apresentem asseados." 

     Ele, de hábito tão doce, falava em tom mais seco que de costume. Percebi que evitava encarar-me. Eu mesmo também estava nervoso. E o leitor compreende que esse tom seco é a mágoa nas pessoas que desejam parecer magoadas, o que seria simplesmente ridículo, mas que é realmente horrendo e desesperador, pois é o modo de sentir desgosto entre as criaturas que julgam que o desgosto já não conta, que a vida é mais séria que as separações etc., de maneira que, nas mortes, dão essa ideia de mentira, de vazio, que no dia de Ano-Novo, dá o senhor que, nos trazendo marrons-glacés, diz: "Desejo lhe que tenha um Ano Feliz", em tom de troça, mas mesmo assim o diz. Para terminar com o relato do oficial ou do diplomata em vigília ao agonizante de cabeça coberta porque o ferido foi transportado ao ar livre, num certo momento tudo se acabou:  

- Eu pensava: é preciso voltar a preparar as coisas para dar polimento, não sei bem por quê, no momento em que o médico largou o pulso, B*** e eu sem nenhuma combinação, talvez porque tivéssemos calor, pois o sol caía; empinamos conosco de pé diante do leito e tiramos o quepe.

     E o leitor percebe muito bem que não foi devido ao calor do sol, mas emoção diante da majestade da morte, que os dois homens viris, que nunca pronunciaram as palavras "ternura" e "mágoa", se descobriram.
     O ideal de virilidade dos homossexuais do tipo Saint-Loup não é igualmente o mesmo, porém tão convencional e mentiroso quanto o outro. A mentira para eles, reside no fato de não quererem se dar conta de que o desejo físico está na base dos sentimentos aos quais atribuem outra origem. O Sr. de Charlus detestava o afeminamento; Saint-Loup admira a coragem dos rapazes, a ebriedade das cargas de cavalaria, a nobreza intelectual e moral das amizades entre homens, inteiramente puras, onde um sacrifica sua vida pela do outro. A guerra que faz, nas capitais em que só restam mulheres, o desespero dos homossexuais, será pelo contrário o romance apaixonado dos homossexuais, se estes forem suficientemente inteligentes para imaginarem quimeras, não o bastante para saberem desvendá-las, reconhecer sua origem, e se julgarem. De modo que, quando certos rapazes se engajaram simplesmente por espírito de imitação esportiva (como num determinado ano todos jogam diabolô), para Saint-Loup a guerra foi sobretudo o próprio ideal que ele pensava perseguir em seus desejos muito mais concretos, porém eivados de ideologia, ideal servido em comum com as criaturas que ele preferia, numa ordem de cavalaria puramente masculina, longe das mulheres, onde poderia expor a vida para salvar seu ordenança e morrer inspirando um amor fanático aos seus homens. E assim, conquanto sua coragem abrigasse muitas outras coisas mais, o fato de que ele era um fidalgo nela se achava; e nela se achava, igualmente, sob uma forma irreconhecível e idealizada, a ideia do Sr. de Charlus, que era a de que a essência de um homem não tem nada de afeminado. Aliás, da mesma maneira que, na filosofia e na arte, ideias análogas só valem pelo modo como são desenvolvidas, podendo diferir grandemente caso sejam expostas por Platão ou Xenofonte, assim também, mesmo reconhecendo o quanto ambos se realizam fazendo isso, admiro Saint-Loup, solicitando partir para o ponto mais perigoso de combate, infinitamente mais que o Sr. de Charlus, evitando usar gravatas claras.
     Falei a Saint-Loup do meu amigo, o gerente do Grande Hotel de Balbec, que, ao que parece, anunciara terem ocorrido em certos regimentos franceses, no começo da guerra, algumas defecções que ele denominava "defeituosidades", acusando-as de terem sido causadas pelo que chamava de "militarista prussiano". Em dado momento, chegara mesmo a acreditar num desembarque simultâneo de japoneses, alemães e cossacos em Rivebelle, ameaçando Balbec, e dissera que nada mais tinha a fazer senão "raspar-se".
     Achava um tanto precipitada a partida dos poderes públicos para Bordéus, declarando que eles tinham feito mal em "raspar-se" tão depressa. Este germanófobo afirmava, rindo, a propósito do irmão:

- Está nas trincheiras, a vinte e cinco metros dos boches! - até que, verificando-se que ele próprio o era, internaram-no num campo de concentração. - A propósito de Balbec, lembras-te do antigo ascensorista do hotel? - indagou Saint-Loup ao despedir-se, no tom de alguém que não estivesse sabendo de quem se tratava, e que contasse comigo para esclarecê-lo. - Alistou-se e me escreveu, pedindo que o fizesse entrar para a aviação. É claro que o ascensorista estava farto de subir na gaiola cativa do elevador, e as alturas da escadaria do Grande Hotel já não lhe bastavam. Ia obter galões diferentes dos de porteirgy: nosso destino nem sempre é o que havíamos suposto. Certamente, vou a seu pedido disse-me Saint-Loup. - Dizia-o ainda esta manhã a Gilberte: teremos aviões em número suficiente. Somente com eles veremos o que está fazendo o adversário. Assim é que anularemos a sua vantagem de ataque, assim, o melhor exército será talvez aquele que tiver melhores olhos. 
 
O Tempo Recuperado (Bloch nos deixou)

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