quarta-feira, 9 de outubro de 2024

Massa e Poder - A Massa (Massas de Proibição)

Elias Canetti


MASSAS DE PROIBIÇÃO


     Um tipo especial de massa forma-se graças a uma proibição: um grupo de muitos não quer mais fazer o que até então faziam como indivíduos. A proibição é repentina; eles a impõem a si próprios. Pode ser que se trate de uma velha proibição, caída no esquecimento; ou de uma proibição que, de tempos em tempos, é novamente resgatada. Mas pode tratar-se também de uma proibição inteiramente nova. De todo modo, ela golpeia com força máxima. É incondicional feito uma ordem, mas o decisivo nela é seu caráter negativo. Ainda que venha a parecer o contrário, ela jamais provém realmente de fora. Origina-se sempre de uma necessidade daquele mesmo a quem atinge. Tão logo decretada a proibição, a massa começa a formar-se. Todos se negam a fazer o que deles espera um mundo exterior. Tudo o que até então faziam sem grande alarde, qual lhes fosse coisa natural e simples, passam de súbito a não fazê-lo de forma alguma. Pode-se conhecer-lhes a coesão a partir da determinação de sua negativa. O caráter negativo da proibição comunica-se a essa massa desde o momento de seu nascimento, e, enquanto ela durar, permanecerá sendo sua característica mais essencial. Poder-se-ia, pois, falar aqui também em uma massa negativa. A resistência a compõe: a proibição é uma fronteira e um dique — nada é capaz de transpor a primeira; nada logra transbordar o segundo. Um vigia o outro, a fim de verificar se ele permanece sendo parte do dique. Aquele que cede, transgredindo a proibição, é repudiado pelos demais.
     Em nossa época, o melhor exemplo de massa negativa ou de proibição é a greve. Os trabalhadores estão acostumados a executar regularmente o seu trabalho em determinadas horas. Trata-se de tarefas da mais variada espécie: uns fazem uma coisa, outros fazem algo inteiramente diferente. Mas apresentam-se à mesma hora para trabalhar, e à mesma hora deixam o local de trabalho. São iguais entre si no que respeita a esse momento conjunto do início e do término da jornada. A maioria executa seu trabalho com as mãos. Ainda um outro aspecto os aproxima: a questão da remuneração de seu trabalho. No entanto, seus salários variam de acordo com a tarefa que desempenham. Como se vê, sua igualdade não vai muito longe. Sozinha, ela não basta para conduzir à formação de uma massa. Quando, porém, ocorre uma greve, os trabalhadores igualam-se de uma forma mais unificadora: igualam-se em sua negativa a seguir trabalhando. Tal negativa abrange o homem por inteiro. A proibição do trabalho gera uma postura aguda e resistente.
      O momento da paralisação é um grande momento, glorificado nas canções dos trabalhadores. Muitos fatores colaboram para o sentimento de alívio que marca o início da greve para os trabalhadores. Sua igualdade fictícia — a igualdade de que lhes falam, mas que, na verdade, não vai além do fato de todos trabalharem com as mãos — faz-se subitamente real. Enquanto trabalhavam, tinham de fazer as coisas mais diversas, e tudo lhes era prescrito. Quando paralisam o trabalho, passam todos a fazer o mesmo. É como se, num mesmo momento, todos deixassem cair as mãos e tivessem, então, de empregar toda a sua força para não tornar a levantá-las, não importa quão faminta esteja a sua gente. A suspensão do trabalho torna os trabalhadores iguais. Comparada ao efeito produzido por esse momento, sua reivindicação concreta é de pouca importância. A meta da greve pode ser um aumento de salário — e, decerto, os trabalhadores sentem-se unidos também em torno dessa meta. Sozinha, porém, ela não bastaria para transformá-los em massa.
     As mãos que abaixam exercem um efeito contagioso sobre outras mãos. O que elas não fazem comunica-se a toda a sociedade. A greve, que se propaga por “simpatia”, impede a outros, que de início não pensavam em uma paralisação, de se dedicarem a sua ocupação habitual. O sentido da greve é que ninguém deve fazer coisa alguma, enquanto os trabalhadores nada fizerem; e quanto mais bem-sucedidos forem nesse seu propósito, tanto maior será sua perspectiva de vitória.
      No interior da greve propriamente dita, é importante que cada um se atenha à proibição. De dentro da própria massa, forma-se espontaneamente uma organização. Sua função é a de um Estado que nasce com plena consciência de sua vida curta e no qual vigem apenas umas poucas leis; estas, porém, são cumpridas com o máximo rigor. Sentinelas vigiam os acessos ao local onde a ação teve seu início: o próprio local de trabalho é terreno proibido. A interdição que sobre ele pesa o isenta de seu caráter cotidiano, emprestando-lhe uma dignidade muito especial. A responsabilidade por ele torna-o propriedade comum. Enquanto tal, ele é protegido e impregnado de um significado mais elevado. Em seu vazio e em seu silêncio, o local de trabalho possui algo de sagrado. Quem quer que dele se aproxime é examinado quanto a seu posicionamento. Aquele que o faz com intenções profanas, aquele que quer trabalhar, é tido por inimigo ou traidor.
     A organização cuida da distribuição de gêneros alimentícios ou dinheiro. O que já se tem deve durar por um tempo o mais longo possível. É importante que todos recebam pouco. Não ocorrerá ao mais forte que ele deva ter mais; mesmo o ambicioso resignar-se-á de bom grado. Como o que se tem é habitualmente muito pouco para todos, e a repartição se faz com honestidade — isto é, publicamente —, esse tipo de distribuição contribui para o orgulho da massa por sua igualdade. Há algo de extraordinariamente sério e respeitável numa tal organização. Quando se fala na selvageria e na ânsia de destruição da massa, não se pode deixar de pensar no sentimento de responsabilidade e na dignidade de uma tal formação, nascida espontaneamente de seu próprio seio. Já pelo fato de ela exibir características totalmente distintas, e mesmo opostas, o exame da massa de proibição é imprescindível. Enquanto permanecer fiel a sua essência, ela será contrária a toda e qualquer destruição.
     É verdade, no entanto, que não é fácil mantê-la nesse estado. Quando as coisas vão mal e a carência alcança proporções insuportáveis — e, particularmente, quando ela se sente atacada ou sitiada —, a massa negativa tende a transformar-se em positiva e ativa. Aos grevistas que se abstiveram tão subitamente da atividade habitual de suas mãos poderá custar grande esforço, passado algum tempo, mantê-las inativas. Tão logo sintam que a unidade de sua resistência encontra-se ameaçada, tenderão eles à destruição, e, aliás, sobretudo na esfera de sua própria e costumeira atividade. É aí que começa a principal tarefa da organização: ela tem de manter puro o caráter da massa de proibição e impedir qualquer ação isolada efetiva. Tem, ainda, de reconhecer quando é chegado o momento de suspender a proibição à qual a massa deve sua existência. Se sua percepção corresponde ao sentimento da massa, terá ela própria de, retirando a proibição, determinar sua dissolução.

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Leia também:

Massa e Poder - A Massa (Massa Aberta e Massa Fechada)
Massa e Poder - A Massa (Massas de Proibição)
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ELIAS CANETTI nasceu em 1905 em Ruschuk, na Bulgária, filho de judeus sefardins. Sua família estabeleceu-se na Inglaterra em 1911 e em Viena em 1913. Aí ele obteve, em 1929, um doutorado em química. Em 1938, fugindo do nazismo, trocou Viena por Londres e Zurique. Recebeu em 1972 o prêmio Büchner, em 1975 o prêmio Nelly-Sachs, em 1977 o prêmio Gottfried-Keller e, em 1981, o prêmio Nobel de literatura. Morreu em Zurique, em 1994. 
Além da trilogia autobiográfica composta por A língua absolvida (em A língua absolvida Elias Canetti, Prêmio Nobel de Literatura de 1981, narra sua infância e adolescência na Bulgária, seu país de origem, e em outros países da Europa para onde foi obrigado a se deslocar, seja por razões familiares, seja pelas vicissitudes da Primeira Guerra Mundial. No entanto, mais do que um simples livro de memórias, A língua absolvida é a descrição do descobrimento do mundo, através da linguagem e da literatura, por um dos maiores escritores contemporâneos), Uma luz em meu ouvido (mas talvez seja na autobiografia que seu gênio se evidencie com maior clareza. Com este segundo volume, Uma luz em meu ouvido, Canetti nos oferece um retrato espantosamente rico de Viena e Berlim nos anos 20, do qual fazem parte não só familiares do escritor, como sua mãe ou sua primeira mulher, Veza, mas também personagens famosos como Karl Kraus, Bertolt Brecht, Geoge Grosz e Isaak Babel, além da multidão de desconhecidos que povoam toda metrópole) O jogo dos olhos (em O jogo dos olhos, Elias Canetti aborda o período de sua vida em que assistiu à ascensão de Hitler e à Guerra Civil espanhola, à fama literária de Musil e Joyce e à gestação de suas próprias obras-primas, Auto de fé e Massa e poder. Terceiro volume de uma autobiografia escrita com vigor literário e rigor intelectual, O jogo dos olhos é também o jogo das vaidades literárias exposto com impiedade, o jogo das descobertas intelectuais narrado com paixão e o confronto decisivo entre mãe e filho traçado com amargo distanciamento), já foram publicados no Brasil, entre outros, seu romance Auto de fé e os relatos As vozes de MarrakechFesta sob as bombas e Sobre a morte.
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Copyright @ 1960 by Claassen Verlag GmbH, Hamburg
Copyright @ 1992 by Claassen Verlag GmbH, Hildescheim
Título original Masse und Macht

"Não há nada que o homem mais tema do que o contato com o desconhecido."

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