domingo, 17 de novembro de 2024

O Cortiço - X: Bertoleza chamava-o aquele domingo

O CORTIÇO


Aluísio Azevedo



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     Bertoleza chamava-o aquele domingo, como todas as manhãs, para ir buscar o peixe, que ela tinha de preparar para os seus fregueses. João Romão, com medo de ser iludido, não confiava nunca aos empregados a menor compra a dinheiro; nesse dia, porém, não se achou com ânimo de deixar a cama e disse à amiga que mandasse o Manuel.
     Seriam quatro da madrugada. Ele conseguiu então passar pelo sono.
     Às seis estava de pé. Defronte, a casa do Miranda resplandecia já. Içaram-se bandeiras nas janelas da frente; mudaram-se as cortinas, armaram-se florões de murta à entrada e recamaram-se de folhas de mangueira o corredor e a calçada. Dona Estela mandou soltar foguetes e queimar bombas ao romper da alvorada. Uma banda de música, em frente à porta do sobrado, tocava desde essa hora. O Barão madrugara com a família; todo de branco, com uma gravata de rendas, brilhantes no peito da camisa, chegava de vez em quando a uma das janelas, ao lado da mulher ou da filha, agradecendo para a rua; e limpava a testa com o lenço; acendia charutos, risonho, feliz, resplandecente.
     João Romão via tudo isto com o coração moído. Certas dúvidas aborrecidas entravam-lhe agora a roer por dentro. Qual seria o melhor e o mais acertado: - ter vivido como ele vivera até ali, curtindo privações, em tamancos e mangas de camisa; ou ter feito como o Miranda, comendo boas coisas e gozando à farta?... Estaria ele, João Romão, habilitado a possuir e desfrutar tratamento igual ao do vizinho?... Dinheiro não lhe faltava para isso... Sim, de acordo! mas teria animo de gastá-lo assim, sem mais nem menos?... sacrificar uma boa porção de contos de réis, tão penosamente acumulados, em troca de uma tetéia para o peito?... Teria animo de dividir o que era seu, tomando esposa, fazendo família; e cercando-se de amigos?... Teria animo de encher de finas iguarias e vinhos preciosos a barriga dos outros, quando até ali fora tão pouco condescendente para com a própria?... E, caso resolvesse mudar de vida radicalmente, unir-se a uma senhora bem-educada e distinta de maneiras, montar um sobrado como o do Miranda e volver-se titular, estaria apto para o fazer?... Poderia dar conta do recado?... Dependeria tudo isso somente da sua vontade?... “Sem nunca ter vestido um paletó, como vestiria uma casaca?... Com aqueles pés, deformados pelo diabo dos tamancos, criados à solta, sem meias, como calçaria sapatos de baile?... E suas mãos, calosas e maltratadas, duras como as de um cavouqueiro, como se ajeitariam com a luva?... E isso ainda não era tudo! O mais difícil seria o que tivesse de dizer aos seus convidados!... Como deveria tratar as damas e cavalheiros, em meio de um grande salão cheio de espelhos e cadeiras douradas?... Como se arranjaria para conversar, sem dizer barbaridades?...”
     E um desgosto negro e profundo assoberbou-lhe o coração, um desejo forte de querer saltar e um medo invencível de cair e quebrar as pernas. Afinal, a dolorosa desconfiança de si mesmo e a terrível convicção da sua impotência para pretender outra coisa que não fosse ajuntar dinheiro, e mais dinheiro, e mais ainda, sem saber para que e com que fim, acabaram azedando-lhe de todo a alma e tingindo de fel a sua ambição e despolindo o seu ouro.
     “Fora uma besta!... pensou de si próprio, amargurado: Uma grande besta!... Pois não! por que em tempo não tratara de habituar-se logo a certo modo de viver, como faziam tantos outros seus patrícios e colegas de profissão?... Por que, como eles, não aprendera a dançar? e não frequentar sociedades carnavalescas? e não fora de vez em quando à Rua do Ouvidor e aos teatros e bailes, e corridas e a passeios?... Por que se não habituara com as roupas finas, e com o calçado justo, e com a bengala, e com o lenço, e com o charuto, e com o chapéu, e com a cerveja, e com tudo que os outros usavam naturalmente, sem precisar de privilégio para isso?... Maldita economia!”

- Teria gasto mais, é verdade!... Não estaria tão bem!... mas, ora adeus! estaria habilitado a fazer do meu dinheiro o que bem quisesse!... Seria um homem civilizado!...
- Você deu hoje para conversar com as almas, seu João?... perguntou-lhe Bertoleza, notando que ele falava sozinho, distraído do serviço.
- Deixe! Não me amole você também. Não estou bom hoje!
- Ó gentes! não falei por mal!... Credo!
- ’Stá bem! Basta!

     E o seu mau humor agravou-se pelo correr do dia. Começou a implicar com tudo. Arranjou logo uma pêga, à entrada da venda, com o fiscal da rua: “Pois ele era lá algum parvo, que tivesse medo de ameaças de multas?... Se o bolas do fiscal esperava comê-lo por uma perna, como costumava fazer com os outros, que experimentasse, para ver só quanto lhe custaria a festa!... E que lhe não rosnasse muito, que ele não gostava de cães à porta!... Era andar!” Pegou-se depois com a Machona, por causa de um gato desta, que, a semana passada, lhe fora ao tabuleiro do peixe frito. Parava defronte das tinas vazias, encolerizado, procurando pretextos para ralhar. Mandava, com um berro, saírem as crianças de seu caminho: “Que praga de piolhos! Arre, demônio! Nunca vira gente tão danada para parir! Pareciam ratas!” Deu um encontrão no velho Libório.

- Sai tu também do caminho, fona de uma figa! Não sei que diabo fica fazendo cá no mundo um caco velho como este, que já não presta pra nada!

     Protestou contra os galos de um alfaiate, que se divertia a fazê-los brigar, no meio de grande roda entusiasmada e barulhenta. Vituperou os italianos, porque estes, na alegre independência do domingo, tinham à porta da casa uma esterqueira de cascas de melancia e laranja, que eles comiam tagarelando, assentados sobre a janela e a calçada.

- Quero isto limpo! bramava furioso. Está pior que um chiqueiro de porcos! Apre! Tomara que a febre amarela os lamba a todos! maldita raça de carcamanos! Hão de trazer-me isto asseado ou vai tudo para o olho da rua! Aqui mando eu!

     Com a pobre velha Marciana, que não tratara de despejar o número 12, conforme a intimação da véspera, a sua fúria tocou ao delírio. A infeliz, desde que Florinda lhe fugira, levava a choramingar e maldizer-se, monologando com persistência maníaca. Não pregou olho durante toda a noite; saíra e entrara na estalagem mais de vinte vezes, irrequieta, ululando, como uma cadela a quem roubaram o cachorrinho.
     Estava apatetada; não respondia às perguntas que lhe dirigiam. João Romão falou-lhe; ela nem sequer se voltou para ouvir. E o vendeiro, cada vez mais excitado, foi buscar dois homens e ordenou que esvaziassem o numero 12.

- Os tarecos fora! e já! Aqui mando eu! Aqui sou eu o monarca!

     E tinha gestos inflexíveis de déspota.
     Principiou o despejo.

- Não! aqui dentro não! Tudo lá fora! na rua! gritou ele, quando os carregadores quiseram depor no pátio os trens de Marciana. Lá fora do portão! Lá fora do portão!

     E a mísera, sem opor uma palavra, assistia ao despejo acocorada na rua, com os joelhos juntos, as mãos cruzadas sobre as canelas, resmungando. Transeuntes paravam a olhá-la. Formava-se já um grupo de curiosos. Mas ninguém entendia o que ela rosnava; era um rabujar confuso, interminável, acompanhado de um único gesto de cabeça, triste e automático. Ali perto, o colchão velho, já roto e destripado, os móveis desconjuntados e sem verniz, as trouxas de molambos úteis, as louças ordinárias e sujas do uso, tinham, tudo amontoado e sem ordem, um ar indecoroso de interior de quarto de dormir, devassado em flagrante intimidade. E veio o homem dos cinco instrumentos, que, aos domingos, aparecia sempre; e fez-se o entra-e-sai dos mercadores; e lavadeiras ganharam a rua em trajos de passeio, e os tabuleiros de roupa engomada, que saíam, cruzaram-se com os sacos de roupa suja, que entravam; e Marciana não se movia do seu lugar, monologando. João Romão percorreu o número 12, escancarando as portas, a dar arres e empurrando para fora, com o pé, algum trapo ou algum frasco vazio que lá ficara abandonado; e a enxotada, indiferente a tudo, continuava a sussurrar funebremente. Já não chorava, mas os olhos tinha-os ainda relentados na sua muda fixidez. Algumas mulheres da estalagem iam ter com ela de vez em quando, agora de novo compungidas, e faziam-lhe oferecimentos; Marciana não respondia. Quiseram obrigá-la a comer; não houve meio. A desgraçada não prestava atenção a coisa alguma, parecia não dar pela presença de ninguém.
     Chamaram-na pelo nome repetidas vezes; ela persistia no seu ininteligível monólogo, sem tirar a vista de um ponto.

- Cruzes! parece que lhe deu alguma!

     A Augusta chegara-se também.

- Teria ensandecido?... perguntou à Rita, que, a seu lado, olhava para a infeliz, com um prato de comida na mão. Coitada!
- Tia Marciana! dizia a mulata. Não fique assim!! Levante-se! Meta os seus trens pra dentro! Vá lá pra casa até encontrar arrumação!...

     Nada! O monólogo continuava.

- Olhe que vai chover! Não tarda a cair água! Já senti dois pingos na cara.

     Qual!
     A Bruxa, a certa distancia, fitava-a com estranheza, igualmente imóvel, como um efeito de sugestão.
     Rita afastou-se, porque acabava de chegar o Firmo, acompanhado pelo Porfiro, trazendo ambos embrulhos para o jantar. O amigo da das Dores também veio. Deram três horas da tarde. A casa do Miranda continuava em festa animada, cada vez mais cheia de visitas; lá dentro a música quase que não tomava fôlego, enfiando quadrilhas e valsas; moças e meninas dançavam na sala da frente, com muito riso; desarrolhavam-se garrafas a todo instante; os criados iam e vinham, de carreira, da sala de jantar à despensa e à cozinha, carregados de copos em salvas; Henrique, suado e vermelho, aparecia de quando em quando à janela, impaciente por não ver Pombinha, que estava esse dia de passeio com a mãe em casa de Léonie.
     João Romão, depois de serrazinar na venda com os caixeiros e com a Bertoleza, tornou ao pátio da estalagem queixando-se de que tudo ali ia muito mal. Censurou os trabalhadores da pedreira, nomeando o próprio Jerônimo, cuja força física aliás o intimidara sempre. “Era um relaxamento aquela porcaria de serviço! Havia três semanas que estava com uma broca à-toa, sem atar, nem desatar; afinal aí chegara o domingo e não se havia ainda lascado fogo! Uma verdadeira calaçaria! O tal seu Jerônimo, dantes tão apurado, era agora o primeiro a dar o mau exemplo! perdia noites no samba! não largava os rastros da Rita Baiana e parecia embeiçado por ela! Não tinha jeito!” Piedade, ouvindo o vendeiro dizer mal do seu homem, saltou em defesa deste com duas pedras na mão, e uma contenda travou-se, assanhando todos os ânimos. Felizmente, a chuva, caindo em cheio, veio dispersar o ajuntamento que se tornava sério. Cada um correu para o seu buraco, num alvoroço exagerado; as crianças despiram-se e vieram cá fora tomar banho debaixo das goteiras, por pagode, gritando, rindo, saltando e atirando-se ao chão, a espernearem; fingindo que nadavam. E lá defronte, no sobrado, ferviam brindes, enquanto a água jorrava copiosamente, alagando o pátio.
     Quando João Romão entrou na venda, recolhendo-se da chuva, um caixeiro entregou-lhe um cartão de Miranda. Era um convite para lá ir à noite tomar uma chávena de chá.
     O vendeiro, a principio, ficou lisonjeado com o obséquio, primeiro desse gênero que em sua vida recebia; mas logo depois voltou-lhe a cólera com mais ímpeto ainda. Aquele convite irritava-o como um ultraje, uma provocação. “Por que o pulha o convidara, devendo saber que ele decerto lá não ia?... Para que, se não para o infrenesiar ainda mais do que já estava?!... Seu Miranda que fosse à tábua com a sua festa e com os seus títulos!”

- Não preciso dele para nada!... exclamou o vendeiro. Não preciso, nem dependo de nenhum safardana! Se gostasse de festas, dava-as eu!

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   Aluísio Azevedo (Aluísio Tancredo Gonçalves de Azevedo), caricaturista, jornalista, romancista e diplomata, nasceu em São Luís, MA, em 14 de abril de 1857, e faleceu em Buenos Aires, Argentina, em 21 de janeiro de 1913.
   Era filho do vice-cônsul português David Gonçalves de Azevedo e de D. Emília Amália Pinto de Magalhães e irmão mais moço do comediógrafo Artur Azevedo. Sua mãe havia casado, aos 17 anos, com um comerciante português. O temperamento brutal do marido determinou o fim do casamento. Emília refugiou-se em casa de amigos, até conhecer o vice-cônsul de Portugal, o jovem viúvo David. Os dois passaram a viver juntos, sem contraírem segundas núpcias, o que à época foi considerado um escândalo na sociedade maranhense.
   Da infância à adolescência, Aluísio estudou em São Luís e trabalhou como caixeiro e guarda-livros. Desde cedo revelou grande interesse pelo desenho e pela pintura, o que certamente o auxiliou na aquisição da técnica que empregará mais tarde ao caracterizar os personagens de seus romances. Em 1876, embarcou para o Rio de Janeiro, onde já se encontrava o irmão mais velho, Artur. Matriculou-se na Imperial Academia de Belas Artes, hoje Escola Nacional de Belas Artes. Para manter-se fazia caricaturas para os jornais da época, como O Fígaro, O Mequetrefe, Zig-Zag e A Semana Ilustrada. A partir desses “bonecos”, que conservava sobre a mesa de trabalho, escrevia cenas de romances.
   A morte do pai, em 1878, obrigou-o a voltar a São Luís, para tomar conta da família. Ali começou a carreira de escritor, com a publicação, em 1879, do romance Uma lágrima de mulher, típico dramalhão romântico. Ajuda a lançar e colabora com o jornal anticlerical O Pensador, que defendia a abolição da escravatura, enquanto os padres mostravam-se contrários a ela. Em 1881, Aluísio lança O mulato, romance que causou escândalo entre a sociedade maranhense pela crua linguagem naturalista e pelo assunto tratado: o preconceito racial. O romance teve grande sucesso, foi bem recebido na Corte como exemplo de Naturalismo, e Aluísio pôde retornar para o Rio de Janeiro, embarcando em 7 de setembro de 1881, decidido a ganhar a vida como escritor.
   Quase todos os jornais da época tinham folhetins, e foi num deles que Aluísio passou a publicar seus romances. A princípio, eram obras menores, escritas apenas para garantir a sua sobrevivência. Depois, surgiu nova preocupação no universo de Aluísio: a observação e análise dos agrupamentos humanos, a degradação das casas de pensão e sua exploração pelo imigrante, principalmente o português. Dessa preocupação resultariam duas de suas melhores obras: Casa de pensão (1884) e O cortiço (1890). De 1882 a 1895 escreveu sem interrupção romances, contos e crônicas, além de peças de teatro em colaboração com Artur de Azevedo e Emílio Rouède.
   Em 1895 ingressou na diplomacia, momento em que praticamente cessa sua atividade literária. O primeiro posto foi em Vigo, na Espanha. Depois serviu no Japão, na Argentina, na Inglaterra e na Itália. Passara a viver em companhia de D. Pastora Luquez, de nacionalidade argentina, junto com os dois filhos, Pastor e Zulema, por ele adotados. Em 1910, foi nomeado cônsul de 1ª. classe, sendo removido para Assunção. Buenos Aires foi seu último posto. Ali faleceu, aos 56 anos. Foi enterrado naquela cidade. Seis anos depois, por uma iniciativa de Coelho Neto, a urna funerária de Aluísio Azevedo chegou a São Luís, onde o escritor foi sepultado.

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