quarta-feira, 3 de agosto de 2011

II (1ª) - No se puede hacer la revolucion sin las mujeres


Arretamentos de espremer e derramar
Montaña y Piedras Altas

baitasar



Conheci montanhas que chupam cadáveres, desmancham suas carnes e se mostram como são, qualquer coisa que apodrece e fede, deixando de ser alguma coisa com vida, qualquer coisa sem vida, qualquer coisa que acabou para olhos, e ouvidos, e nariz, e boca, e ternura. Encontrei homens e mulheres ingênuos enfrentando inimigos brutais e infames, como mariposas e abelhas voando, bebendo as lágrimas doces no arroio manso dos olhos da aldeia. Quis contar essas histórias, antes que morresse junto com meus segredos. Escolhi testemunhar os enredos das tramas sobre a Montaña del maíz, os punhais enfiados em homens sinceros, as sublimes dores de mulheres graciosas vivendo entre escombros. Gente que morreu escrava do senhorio antes mesmo de nascer, ramadas silvestres de destruição. Borboletas arrancadas de suas asas, rastejando na penumbra, entre lagartixas e folhas, soluços sem respiração.
O sinal sisudo do sino de metal despertava do seu sono: papá erguia as pestanas para saudar o ataúde fúnebre adormecido que avançava passo a passo rumo às sombras torcidas das estampas verdes e topetes de ouro, tinha o seu olhar saído dos pés. O silêncio se quebrava pelo choro da mulher inconsolável que ameaçava desabar a cada passo. O sopro que chegava daquelas estampas verdes parecia repetir melancolicamente vozes de despedidas
(Lá, serás bem-vindo: tu e os pecados!)
E quando escurecia as sombras desapareciam, o milho germinava perfeito, robusto: atado aos pés dos cadáveres.
A agricultura é sagrada para esses homens e mulheres, mesmo depois que seus cadáveres se desmancham em raízes e milho. Os seus ritos são sempre consagrados aos deuses da Montaña: espíritos que já partiram. Os campesinos pedem permissão para semear e escavar, falam com os ventos e os chamam para a cerimônia, não perdem nenhuma oportunidade para tirar a tampa das suas mentes e observarem as coisas maravilhosas dos labirintos do milho. Velhos e moços, sempre que sentam à volta da fogueira, convidam os espíritos antigos, rezam para aliviar as dificuldades, cantam para festejar a vida, conversam, entendem seus sinais e humores, mas não decifram os cheiros da ganância escondida no falatório de homens e mulheres que mentem do mesmo jeito que não se vê o sol à noite: é a sua natureza. Percebem o viento em seus pés, mas não sabem desviar das botinas que esfarelam suas gargantas y esfrían sus carnes.
Dizer das vidas que vi é o meu jeito de conversar com as memórias daqueles que nunca existiram. Suas vidas e vozes soam como breves sussurros. Espirros do acaso. Jamais tiveram uma trégua da humanidade e da solidariedade, apenas sacrifícios. Odeio palavras soltas, sem destino, preciso da atenção profunda e cega das cavernas dos espíritos amorosos. Sorrisos de anjos com desassombro e a agitação dessa velha.
Antes de iniciar a contação destas histórias perdidas, memórias sem voz, precisamos do consentimento dos antigos espíritos. Depois de queimar esse incenso e implorar que os espíritos nos prestem zelo, faço o pedido: convoco a concordância dos antepassados para contar o que vi das memórias da Montaña. Basta oferecer cuidado.
Desde que cheguei nesta terra de sol e praias, nunca fiz outra coisa que pensar em meus queridos e minhas queridas. As raízes ficaram por lá, espalhadas pelo chão, como as travessuras de papá com suas mulheres, a voz doce de Blanca, as mãos do Juanito em minha boca, a doce Plantera. Nada volta de verdade, mas nada se deslembra de verdade. As memórias nos empurram pelo caminho enquanto vamos puxando o caminho das memórias. Precisamos seguir inventando lembranças, assim a vida vai se acolchoando à frente, curiosa, gulosa por nossas carnes, geniosa e alucinada pelo tempo que a consome. Ela exige como obrigação a nossa reinvenção a cada passo dado, nenhum igual ao outro, el tiempo não se repete, não se torna a fazer do mesmo jeito. Somos o passado de nós mesmos a cada instante. No agora, já não somos mais os mesmos, mas outros que restaram de nós mesmos. Uma terrível construção que devora anjos e sonhos, o tempo se torna um demônio cansado, mal-humorado.
Enfio as mãos em um pequeno saco de linho branco e retiro alguns tocos e raízes. Trouxe essa planta com a recomendação de um dia abrir esta cerimônia, purificando meu corpo e minha memória, para alcançar a visão das coisas e das pessoas, como foram antes, e tudo corra bem. A fumaça perfumada se eleva e parece convidar muitos mais para a cerimônia. O passado bate à porta, a Montaña, o amarelo dos milhos, o sol, os alaridos, os velhos desdentados, os pátios, os sinos de metal, as vozes, os cuscos
 (Espíritos me permitam lembrar.)
Enquanto o incenso queima e o rastro do perfume envolve os espíritos antigos, nuvens brancas de mistérios dançam a nossa volta, passando com suavidade por carnes e ossos. Reencontro-me, abro os olhos e a mente para o meu passado, um labirinto de recuerdos dulces, suaves e infames. A união do céu com a terra através de alianzas, traiciones, impaciencias y pecados. Espíritos que não nasceram.
Desde sempre, vivemos na Montaña: campesinos milho, gente planta, conveniências de um colonizador assassino e misterioso. Todo chacinador é invisível, não pode e não quer ser visto. É um espírito que anda sobre todos os outros. Um fantasma cego. Uma caveira com sorriso triste. Uma caverna com águas escuras que entram furtivamente por frestas sem fundo. Vive há anos, nunca morre, nunca nasce. Mais forte a cada dia. Um fantasma infame que chegou empobrecido e tomou tierra, riquezas, hombres y mujeres, que não podia ter de onde veio. Depois do primeiro, foram muitos, cada um mais selvagem que o outro na dominação. Dizimaram impondo su cultura, religión e idioma.
Somos milhares de espigas de milho subindo a Montaña por um lado e descendo do mesmo modo, pelas suas costas até o litoral. Lá embaixo, na parte baixa alisada, fica o povoado da Areia, com suas construções organizadas na volta da plaza e de Deus, o sino de metal do campanário anuncia as boas novas e chora as sombras inconsoláveis. O encantamento brota com os rumores das águas descidas no córrego das piedras, que atravessa la plaza com seus bancos de troncos largados em pé ou caídos. Um mundo desconfortável e manco. É fácil reconhecer aquela pobreza, mesmo quando não se sai para olhar e cheirar outros mundos. Gente simples e espontânea brotada do chão que pisam, sem complicações levianas, prontas para lutarem guiadas pela voz da tierra arreganhada, que usa suas entranhas para fazer nascer o alimento. Conversamos com o milho, ele recomenda: morrer é uma fatalidade, mas não há necessidade da fome existir em tanta tierra fecunda, produtiva de tantos hijos fuertes y hermosas hijas, evoluídos pela própria humanidade de sofrimentos. Vivem das suas pequeñas roças e das trocas com Piedras Altas. Meu povoado de recordações.
Outra aldeia, outros campesinos, mesma fome pendurada na Montaña, agarrada em sua carne-viva, um entalhe da casca esgravatada pelas enxadas, vive de semear e colher milho. É uma pena que não poderei levá-la até a vila das Piedras Altas. Meu tempo e saúde por certo não me permitem mais regalias, mas gostaria de mostrar mi choza, por certo, haverá de estar por lá. Uma cabaña sem elegância, nem estilo da cidade, misturada com outras daquele sítio. Há muita beleza por lá, e a Montaña mesmo desfigurada consentia em nos receber. A gente se acomodava do jeito que dava, mas para a humanidade que acumula coisas e ignorância somos deformados: a justeza das cidades não cabe dentro das Piedras Altas.
Éramos três naquela cabana de barro e palha, muito simples. Eu, papá e Blanca, minha irmã adorada, a lua que iluminava minhas noites de escuridão e espanto medroso. Sempre tive problemas com os espíritos que me rondavam, cercavam meu pequeno corpo procurando um abraço de reconciliação com a vida. Blanca afastava-os para os milharais com suas cantorias. Não fazia ameaças, nem gritarias de miedo. Convencia-os pelo encantamento daquelas melodias que os lugares que procuravam não estavam ali, en mi pequeño cuerpo. Não recordo suas canciones, mas não esqueço a paz que sentia em seu colo, nunca, em tiempo algum, voltei a sentir mãos tão amorosas e dedos mais delicados, acariciando meus cabelos. Acalmando minha alma amedrontada, com saudade de mi madre. Os cheiros de Blanca e mi madre se confundiam até que se tornaram um só caminho de beijos e suspiros, sonho e realidade.
Cresci em Piedras Altas, até meus dez ou doze anos. Por isso, mis pequeños recuerdos venham misturados com otros tiempos, otros lugares. Nem tudo que vou dizer são memórias daquela niña que fui, outras coisas vieram depois, pessoas foram se misturando e fazendo essa vieja como sou hoje, falo do meu passado com muita saudade e agradecida com a tu voluntad de escutar-me. Estou terminando a vida com a lembrança em meus olhos. Cenas perturbadas por cruzes e espadas.
Quando não penso nas pessoas, mi primero recuerdo é a água. Aquele sítio siempre contou com uma fonte permanente de água, nenhum desenho, nenhum projeto, nenhum conhecimento de engenharia, nem ornamentações ou decorações maravilhosas para fazer uso da água nas necessidades de cada vivienda. A benção dos deuses com a água. mesmo quando a água da chuva se tornava um recurso escasso. O arroio nunca deixou de escorrer entre as piedras, na forma de un pequeño hilo. Era o fio da vida oferecida, buscando la armonía del lugar, tatuado nas piedras, fugia no chão, pelo ar, jamais fechava os olhos.
Lembro do teto colocado rebaixado na entrada da nossa cabaña, para que o visitante, um passo antes de entrar, se inclinasse com reverência e respeito. Mesmo o anão, antes de entrar em nossa vivienda, pelo seu tamanho pequeño não era obrigado a se dobrar, mas nunca deixou de fazer a ternura da reverência. Tamanho não é o documento, antes merecer e não ter, que ter e não merecer.
Quando sentávamos à mesa, feita com madeira rústica, acobertada por uma toalha de plástico vermelho e pequenos pontos brancos, pamonha y tortillas esperando que nossa fome as devorassem, não podia impedir a curiosidade de ver se os pés do anão iam até o chão. Inclinava minha cabeça abaixo da toalha e lá estavam eles, voando como dois passarinhos assanhados com a liberdade. Erguia-me à mesa e lá estava papá com um altar repleto de santos por detrás de sua cabeça, acima de todos, pairando al aire, belíssima e piedosa, a Virgem do Rosário. Papá não me falava, mas a cor do seu olhar deixava o recado, estavam zangados e acinzentados, envoltos na fumaça do seu tabaco fumado em um talo de bambu.
Tenho outras lembranças, um pouco raladas pelo tiempo e a distância, além dos espíritos que me abraçavam querendo reconciliação com suas histórias, cantando suas cantorias. Adorava o leite recém derramado da vaca Plantera. Gostava de passar a mão em seu pelo macio, enquanto papá a sugava com suas mãos. Espiava o seu leite dourado espumando dentro da bacia leiteira e sussurrava entre seus olhos, a testa de uma encostada na outra, que ela era bela como as espigas de milho. Ainda hoje, acredito que meus carinhos e aquele leite eram um mesmo jeito de gostar da vida.
Piedras Altas tinha três vacas, se tivesse família importante por lá, seria a nossa, em razão das mãos de papá: espremedoras das leiteiras. Todos cuidavam das fêmeas do boi, mas não havia nenhum boi. Apenas papá podia chupar com suas mãos a leitaria das três, Plantera, Pastora e Tormenta. As suposições para esse privilégio ficaram perdidas em algum canto da vila e nas fantasias das personas, um homem com tantas tetas para espremer. Algumas línguas mais afiadas apostavam em uma regulagem da vida, em razão das perdições com as suas mulheres amadas, outros linguajares juravam que era possível fazer da loucura outro jeito de mundo.
Papá parecia caminhar em um vale verde com suas mulheres amadas quando colocava suas mãos a produzir leite. Não falava, mas os olhos saiam da escuridão e mudavam sua cor, ficavam violetados. A linha dos lábios caída, arredondava em sorriso. Os passos arrastados se tornavam saltitantes. Eram instantes máximos de alegria, jatos brancos e efêmeros de regozijo. As mãos de papá lembravam outro tiempo, outras vidas, outros jeitos, o pensamento tatuado por sus mujeres.
El ritual de la lechería con mi padre fue siempre el mismo: derramava o café do bule na sua latinha, tomava em dois goles e saia para o cercado. A calça dentro das botas de borracha - as botas foram presente do anão - a camisa de mangas cumpridas, abotoadas do colarinho aos punhos, solta por fora da calça marrom, desgastada pelo roçar do tiempo, um velho sombrero na cabeça. A barba por fazer, mas as unhas siempre recortadas rentes na carne dos dedos. Roídas pelas serras dos dentes, lixadas na tierra de cultivo
(Não quero debulhar as leiteiras.)
Ele chegava ao cercado antes dos serviços de cantoria dos galos. Muitos diziam que era papá que acordava os galos, eles esperavam o velho passar para lançarem seus gritos matinais. Roucos afinados de desafios à madrugada. Os galos de Piedras Altas eram colibris para papá. Verdade ou não, depois do desaparecimento do papá, os machões de espora perderam o costume da hora, cada um passou a fazer sua cantoria quando lhe apetecia. Tinham embananado o costume do sol e os sinais da natureza, o natural era o papá caminhando para o cercado. Estavam doentes, descuidaram das suas obrigações e deveres, sem mal abrir os olhos soltavam pequenos gritos entediados. Não lembravam nem de longe as cantorias alegres e atrevidas anunciadas aos quatro vientos. Sofriam a melancolia das coisas perdidas, ganharam vozes de caixeiro viajante sem jamais viajar. Acreditaram que eram colibris.
Quando papá chegava ao cercado da vacaria a madrugada ainda estava derramada sobre a Montaña, Plantera e as suas duas camaradas continuavam recolhidas em um galpão. Cada uma no seu quarto, com palhas pelo chão de terra e forragem num cocho, uma espécie de vasilha feita com um tronco de madeira escavada, em outro cocho, a água. Quando ele chegava, já não estavam mais deitadas. Papá entrava em cada um dos aposentos, escovava e alisava as três, uma a uma, sem pressa. Catava carrapatos, ferimentos, sinais de descuido. Dava atenção para que estivessem bem alimentadas, dispostas para os arretamentos de espremer e derramar.
Depois de prender na cerca o laço enfiado no pescoço da Tormenta, atava as pernas traseiras da bichana junto com o rabo. Puxava o banco adaptado ao seu tamanho, siempre do mesmo lado da Tormenta, já sentado, lavava e secava o úbere, com água morna e um pano limpo. Largava a bacia leiteira aos seus pés, cuspia nas mãos, esfregava uma na outra em aquecimento e iniciava o serviço da ordenha enquanto puxava assunto de conversa com a Tormenta. Parecia saber que com uma boa conversa era mais fácil espremer o leite daquela geniosa.
Seguia a sua rotina de ordenha à mesma hora, todas as manhãs e todas as tardes. Descansava a cabeça no flanco da leiteira e segurava a primeira teta com a mão direita. Estimulava o úbere e as tetas segurando-as com as mãos, massageando toda a sua extensão, uma a uma, concentrando-se na porção final. Depois apertava a parte superior da teta entre o polegar e indicador. Segurava firme com os dois dedos, descendo até o final da teta. O leite saia em jatos para dentro da bacia leiteira. Soltava e voltava a apertar a parte superior da teta, repetia repetia repetia, até esvaziar o úbere da vaca Tormenta. Vez que outra, molhava os dedos no leite da bacia leiteira e retornava a espremer. Esvaziada a Tormenta, desamarrava o laço das pernas, levava a leiteira para o campo de pasto e a deixava libertada.
Derramava o leite da bacia no balde com tampa.
Era a vez da vaca Pastora.
Quando chegava a vez da Plantera eu já estava por lá, conversando e acarinhando a minha amiga
(Niña de los ojos de su madre, esa sí que es buena.)
Eram as únicas palavras que ouvia do papá, antes do sol subir a pino. Não havia tambores, nem flautas, nem flores, apenas a vontade das leiteiras e do papá todas as manhãs, um dia depois do outro.
Gostava da Plantera porque fazia meu papá falar aquela frase decorada. Jamais perdi a tiração de leite da minha mimosa. Era a única que papá não atava. No começo foram dois ou três litros, por dia, depois passou para quatro cinco seis, e chegaram aos nove litros por dia. Ninguém em Piedras Altas sabia explicar, mas se não fosse a mão do papá espremendo as vacas escondiam o leite.
Namorava o cheirinho da Plantera; as outras não me pareciam cheirar bem, Blanca retrucava que eu tinha birra com as duas, Tormenta e Pastora. Ninguém explica o que faz a gente gostar de uma quando deveria pretender afeição às três. Papá parecia gostar das vaquinhas, mas não creio que ele queria se explicar, talvez, se ele descobrisse que gostava mais das tetas de uma do que das outras, mudasse o jeito de agradar com as três. Assim, suas mãos não acariciavam mais uma do que as outras, ele preferia não saber. Nunca esconderam o leite de papá, mas a abundância diminuía.
Vez que outra, aparecia uma mãe com uma latinha pedindo seu reparte do filho, reclamando da criança acordada com fome. Eu alcançava a latinha
(Papá, por favor, enche a latinha.)
Ele a pegava em uma das mãos e com a outra espremia uma teta. Os jatos iam e viam até acolchoar a latinha. O cálice abarrotado de leite espumante voltava para a mãe aflita.
Retornava a rotina de espremer com as duas mãos. Quando o úbere da Plantera esvaziava, ela também era levada para o campo de pasto. Enquanto as três pastavam, papá mudava a palha dos estábulos, renovava a água e a ração do milho.
Eu corria para brincar com os meninos.

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