sábado, 13 de agosto de 2011

V (1ª) - No se puede hacer la revolucion sin las mujeres

Ela fora ateada no fogo do anão
Hijos-de-puta!

baitasar


Eu e minha irmã somos filhas do mesmo pai y dos mujeres ya muertas, seguiram a sina da mestiçagem, adubam as terras de plantar milho. Minha querida, sem chiliques de dó e piedade, não sou novelista de faniquitos, essa tristeza nada mais é do que siempre aconteceu e continua acontecendo, índios e cholos são escravizados por uns poucos pela ganância maior que a barriga. A mãe de Blanca, dizia papá, antes de emudecer por tristeza, foi uma índia voluntariosa, cheia de apetites, espumas e águas de flores. Durante o dia, com as tranças escondidas, cantarolava para Blanca com sua voz de carícias enquanto apertava o milho até estilhaçar o farelo amarelento.
Ficava sentada em seu banco de pedra apoiado no chão de terra, tinha siempre os pés descalços e refrescava as mãos em uma vasilha de água, antes de mergulhar uma delas no jarro com a massa do milho. Amassava e achatava nas mãos aquele punhado, com pequenas batidinhas para afinar mais e mais. O fogo acesso no centro de tudo esquentava a chapa, cozinhando a massa sem encantamentos até surgirem as tortillas, primeiro um lado depois o outro, virava de novo e revirava. Assava aos poucos um pouquinho de cada lado. Quase tudo pronto, restava enrolar a carne de vaca picada em pequenos cubos, a cebola fresca, a salsa picante y los pimientos morrones. Eu adorava quando Blanca se punha a fazer tortillas como su madre. Em casa quase nunca enrolamos carne de vaca, essa iguaria só nas fiestas, quando os índios e cholos apareciam na praça com batatas, milho, carnes, couve... Muitos chapéus de índios e cabeças sem chapéu.
A voz de Blanca pertencia ao seu nariz, ainda que ela saísse em parte pela boca. Quando ela sussurrava alguma confidência ficava claro que o mandante era o nariz, me atinei com isso agora, después de passados tantos outros tempos que ficaram sem memórias. Lembrei da minha irmã invencionando histórias, para me fazer acostumar com aqueles espíritos, ali na penumbra dos tocos de vela. As suas historietas e cantorias sempre tinham su madre viva, caminhando por nossa cabana, abraçando e cantando para as duas hijas del papá, cheia de ternura ingênua, maternal, pronta para pôr um fim às desordens andando à solta por nossa cabaña, alerta para espantar as zombarias das assombrações.
Certa vez, Blanca baixou tanto a voz que parecia saída de las ventanas, ela dizia que à noite aparecia dos olhos de su madre pelo brilho branco da lua, feixes de raios que envolviam o papai até o seu gozo de homem. Foi num desses encantamentos que su madre arredondou de nuevo a barriga. As noites passaram a ser iluminadas por uma Lua cheia, redonda y brillante, que viajaba en el “cielo de la boca” de papá.
Até que quadrilheiros ascenderam a Montaña com seus fuzis automáticos, espadas e cães adestrados na caça de índios madraças. Homens truculentos dispostos a matar, torturar e trucidar a mestiçagem revoltada. Minha amiga, era tudo mentira, não havia índios revoltosos, em desordem ou fazendo revoluções. E jamais encontraram os quadrilheiros. Até que mataram a mãe da Blanca, uma segunda vez, quando espalharam que o ocorrido brutal fora resultado de um amante raivoso.
Procurei recortes de jornais da época. Quase nada. Somos invisíveis. Apenas, La Prensa Mestiza, um periódico que acabou por falta de leitores e insuficiência de disposição das bancas de jornal para vender o recorrente mestiço. Nos jornais um silêncio combinado sobre a desgraça
(Essa mestiçagem não sabe ler e não tem la plata.)
O periódico saia publicado nas vilas, uma vez a cada semana, esparramado nos botecos, barbearias, farmácias, na porta da igreja e na roça.
Naquela semana, La Prensa Mestiza saiu duas vezes, na primeira, informou seus leitores do crime bárbaro acontecido. A tiragem foi esgotada em questão de horas. Na segunda edição, uma publicação extra, trazia um depoimento do padre dominicano Antonio. Muitos já ergueram sua voz, nestes mais de quinhentos anos de mortes, como forma de extermínio da nossa civilização, contra as atrocidades e brutalidades, mas escute as palavras do padre, tanto servem para cinquenta anos atrás, como para os dias de agora. Esse homem honrou seu ofício.
Um sermão jornalístico e histórico do padre dominicano, “Com que direito haveis desencadeado uma guerra atroz contra essas gentes que viviam pacificamente em sua Montaña? Por que os deixais em semelhante estado de extenuação? Os matais ao exigir que vos tragam diariamente seu suor e sangue misturados com la madre tierra de todos. Acaso não são eles homens? Acaso não possuem razão, e alma? Não é vossa obrigação amá-los como a vós próprios? Podeis estar certos que, nessas condições, não tereis maiores possibilidades de salvação do que el más vil asesino...” No finalzinho escorregou nessa história de comparar com hereges e ateus a salvação, mas enfim, vale a intenção, apesar do sentido restrito de salvação possível para um cristão. Na prática, pouco ou nada adiantou para os índios o sermonário de quinhentos ou de cinquenta anos, os quadrilheiros foram até a Montaña para assustar e mostrar que a força e a morte estavam do lado do coronel, contra índios e cholos. As denúncias do padre dominicano não foram de serventia para punir os assassinos.
Os saqueadores subiram à noite, montados em veados sem chifres, pareciam da altura dos tetos, assim, não viam exatamente a quem e como sua pólvora, espadas e cães abriam ao meio.
Papá e os homens da vila, com suas mãos endurecidas pelo trabalho e ingenuidade de quinhentos anos de escravidão, ficaram acampados no milharal, avisados da chegada dos soldados quadrilheiros com a missão de prender os suspeitos de revolta. Não havia rebelião, nunca houve revolução na Montaña, sempre existiu resignação. A conversão em cristãos lhes prometia o que ninguém mais lhes podia oferecer, bastava acreditar. E estavam esperando. A servidão natural.
Os quadrilheiros não eram novatos, nem chegavam assustados pelo medo da noite, carregavam a certeza da impunidade quando entraram na vila. O comandante com sua capa preta misturava suas ordens higiênicas aos gritos de pavor
(Los cholos son feos! Não bastam estar convertidos.) (É isso chefe, essa mistura é doença do demônio!)
Os bandidos eram mestiços, mas não se viam mestiços. Feriam todos que se moviam menos aos ratos, as baratas e as galinhas. Defuntos ficavam jogados pelo chão, carcaças manchadas de terra e sangue, corpos decapitados, não importava se eram mulheres, velhos ou crianças. As moscas voavam e sobrevoavam a vila. O banquete animal da ignorância. O inimigo foi brutal, mas não queimou uma palha das nossas cabanas de barro. Ordens são ordens, apenas assombrar. O problema é o descontrole quando se descontrola. Os efeitos da barbárie deixam poucos intactos
(¡No escapa nadie!)
A mãe de Blanca escondeu a menina e saiu à praça, ela procurava papá. Encontrou ou foi encontrada por um velho cruento, cegado pela crueldade, e tão rápido quanto foi ensinado a matar ele subiu e desceu sua espada enferrujada, abriu a barriga da Lua e a fez em pedaços minguantes. Súbito, daquele golpe de toureiro, um menino espirrou ao chão, foi pisoteado pelos cascos e ferraduras, até que todos se foram
(Hijos-de-puta!)
Até hoje, não encontraram qualquer pista sobre os quadrilheiros assassinos. Não procuraram de verdade, nunca tiveram nenhuma vontade. Os infames foram escolhidos e escondidos. Dizem que o tal avelhantado cruento foi justiçado por Deus e perdeu uma das mãos. Não se teve como saber. Isso ficou entre os dois. Dizem que um raio estalou em seu cavalo como um chicote, o animal empinou assustado e derrubou o cavaleiro. Na queda o velho cruento teve a mão assassina arrancada pela fúria divina do cavalo, que pisoteou a mão até separá-la do braço. Um raio em noite estrelada parece vingança.
Quando os homens da vila foram avisados del masacre desceram atirando-se do acampamento secreto, andavam por sobre as flores del maíz, não tocam o chão cruento e avermelhado, cavalgam pájaros negros, cuervos carnívoros, gritavam das gargantas desesperadas daqueles pájaros de plumaje negra
(¿Por qué?) (¿Por qué?)
O tempo ajudou com as cicatrizes, mas não apagou essa mancha vermelha da história branca, narrada por brancos e escrita por brancos, para ser lidas por brancos, varrida para baixo das consciências carnívoras, a garantia com coibição violenta e premeditada da dominação dos hombres y mujeres del maíz pelo Coronel e sua gente de louça, urinol de louça. O confronto entre quem comanda, os que têm, e quem obedece, os que não têm nada, destrói os fracos
(¡No escapa nadie!)
As tropas de segunda linha do exército do Coronel, dono da Montaña, do milho e das vidas em todos os dias das nossas vidas, subiam até a vila, vez que outra, para acalmar os mestiços exaltados, inconformados com a paciência do seu destino de adubo.
Nunca vi necessidade, mas eles, vez ou outra, apareciam e usavam da persuasão que lhes ocorria ser necessária. À servidão natural restava esperar a vinda do salvador ou esperar passar a cólera da vontade particular e caprichosa do Coronel.
Outras vezes, el cura de almas decifrava as vontades do Senhor, avisava aos índios e a mestiçagem: só lhes cabia subir a Montaña para cuidar do milho e descer para fazer filhos. Cholos pequeños, braços para renovar a lida daquela terra. Um negócio inesgotável e barato. Fazer filhos passou a ser uma boa coisa, aumentavam os corações para o ofício do sacerdócio e os braços para as lidas da Montaña. Entonces el poder de los cielos y de la tierra renueve la carne y el espíritu: o carbono e o enxofre da sua matéria-prima.
En ese tiempo de hemorragias y cicatrices papá conoció mamá, em uma das suas raras idas ao litoral. Gente diferente essa da beira-mar, menos dispostos para as lidas do trabalho árduo. De qualquer maneira, ele precisava de mulher para acalmar suas carnes e uma mãe para Blanca. No meio desta reunião de vontades e necessidades, eu nasci.
Não lembro da mamãe, como Blanca falava da sua mãe, mas me vagueiam pelas lembranças canções que acredito ouvir da sua voz. Mamãe morreu no parto de um menino que não chegou a nascer. Sina do papá em não ter filho homem, apenas mulher. Foi mais uma mancha vermelha, nesta história de brancos, médicos brancos e sanatórios para brancos. Mamãe morreu sozinha, nenhuma ajuda para ela e seu filho. Mais adubo. Nada se perde na Montaña. Não quis o destino que papá experimentasse o nascimento de um filho.
Destino cruel desses mestiços seduzidos pela Montaña. Destino de servidão. Destino de injustiças. Resignação
(¿Hasta cuándo, señor?)
Então, o corpo de papá cedeu e desistiu, não tinha forças para lutar contra a sina. A boca emudeceu aberta, decidiu que a ferida ficaria para sempre um interstício, paralisada, enfeitiçando a Montaña. Por aqueles dias, sabia que o mesmo destino me aguardava, não havia o que fazer. Primeiro a Blanca, depois a menininha das pernas fininhas e cabelos negros encompridados até a cintura, ficariam arredondas na cintura, as tetas inchadas, esperando a sua hora, o marido subindo e descendo a Montaña de milho e o sortilégio do sexo.
Minha irmã Blanca se tornou minha mãe. Adorava me aninhar aos seus conchegos, como você em meu colo, sua danadinha, e ouvir as histórias da Lua na Montaña. Ela até tentou encontrar e se oferecer para outro destino. O destino de puta. O problema era a fenda. O sinal de aviso que ela foi escolhida. Os índios con miedo dos espíritos e os cholos desconfiados daquela ave flagelada não ousavam desviar a sua sexualidade de mulher do seu destino enfeitiçado. Foi quando apareceu na vila o anão, perdido dos seus homens do circo.
Quando o anão foi descoberto, a Montaña toda imaginou que o homem pelo meio fosse uma espécie de malsim. Apenas Blanca acreditou que o anão tinha intenção verdadeira de ficar escondido, pelos dias que fosse possível. Desertor temporário do seu povo de trapezistas e palhaços. Levou o desconhecido para nossa cabana de palha e barro.
Papai era apenas um espírito andante. Eu, um risco e fedor, o esqueleto magricela que não se ouvia para opiniões de importância. Ninguém se atreveu a desmandar sua decisão, Blanca tomava as ordens de fazer e desfazer, por si mesma.
Não havia democracia na Montaña. Não houve conversação de ajuste de contas com o anão para que sumisse, voltasse para sua gente que vivia sob a lona dos ciganos.
Não demorou nem uma noite para o anão se meter nos panos de dormir da Blanca. Minha irmã tinha um encantamento que a deixava encantada, vulnerável, pronta para ser colhida. Uma mulher graciosa de pura beleza germinada na Montaña, suspiravam as ervas e as flores do campo.
Eu nada entendia dos acontecimentos de encantamento, mas reconhecia o sorriso em seus olhos. Ela fora ateada no fogo do anão.
Minha querida, preciso parar essa narração e tomar água. Não, não se mexa daqui, já volto. Estou agradecida, preciso desta conversa longa para libertar meus segredos. Uma conversação estirada para destristecer o coração daquela menina e aliviar esta velha.
Eu estou com você, vou buscar alguma coisa para nós. Já volto.
Pronto, não demorei. Esse é meu, isso é para você.

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