O tiempo necessário para os espíritos antigos se aproximarem do calor daquele fogo
O senhor da Montaña
baitasar
O leite era primeiro derramado entre todas as crianças de Piedras Altas, depois era a vez das mujeres amamentadeiras beberem a cal
líquida; em seguida, os velhos recebiam sua parte. Ninguém cogitava replicar
contra a naturalidade da vida. Não possuíamos tesouros em diamantes, pérolas,
vasilhas de ouro, nossa carne era o tesouro cobiçado. Nossos braços e a enxada
eram a mais valia que nos adornava e atava aos milharais. Um exército precisa
tropas de combate e reposição das baixas durante as escaramuças, para prosseguir
marchando marchando marchando. En los nacimientos
soavam tambores e sinos de metal, as mães gritavam suaves como a água, os
guerreiros dos milharais desfilavam com suas plumas e penachos louros,
inclinados levemente pelos vientos da
Montaña
(Que não falte em nossas mãos uma boa enxada!)
Na muerte cessavam tambores, clarins, apenas o som grave e metálico do
sino gritava a dor que chorava e se despedia naquele rio de muertos, húmus para raízes sob a tierra, lama que fedia miséria.
A ordenha das leiteiras era feita duas vezes: a primeira, ao amanhecer; e
a segunda, no entardecer. As vasilhas, na maioria das vezes, repetiam a
quantidade derramada, mas já se percebia que não bastava. O leite estava
escasso para tantas bocas. As duas ordenhas diárias enchiam a bacia leiteira e
não esvaziavam a fome. Era preciso fazer alguma coisa.
A insatisfação da miséria e da penúria crescia, os muertos aumentariam como areia movediça engolindo os pés,
impossível boiar. Afundando en la muerte.
Foi quando o anão sorridente apareceu de repente, emergido das pedras. Saído
de algum brinquedo ou sabugo con que se
entretienen los niños.
Nunca existiu nas Piedras Altas
pessoa mais baixa nem mais alegre. Esquisito. Um sujeito estranho que parecia
crescer descontrolado em algumas partes. Uma das suas aparências era menino, pero un
varón que ha llegado a la edad adulta en la mirada. Os braços longos e
delicados contrastavam com suas pernas curtas e fortes, o estrangeiro era todo
espichado da cabeça até a cintura, mas daí para o chão era abreviado e
possante. Caminhava e as mãos tocavam os pés, como as raízes nos mangues,
presas nas águas que se estendiam sobre o mar. Respirava como um vegetal: pelo
topo e nas raízes que se enfiavam en la tierra.
Parando e conversando com quem quer que fosse, olhava direto nos olhos,
jamais os desviava. Eu imaginava se o pequeno não vivia sentindo dores na nuca.
O pequeno tinha seus pelos espetados por todo o corpo, menos no rosto lisinho que
contrastava con su cabeza llena de cabello. Umas coisas demais,
outras de menos: pernas de menos, braços demais.
Existem pessoas que botamos olhos com os sentidos no nariz ou orelhas,
repetimos que as aparências não enganam, mas os instintos têm buracos secretos
na cabeça. Uma serpente de muitas cabeças
(Esse é boa gente.)
Outros são olhados de longe ou perto e ficamos armados da desconfiança
sem causa, mas está ali, no povoado, nos corações, no aroma, no nariz; papagaio
come milho, periquito leva a fama das catástrofes e esfriamentos, mas são os
dentes afiados que cortam e perturbam os intestinos de la tierra
(Essa não parece boa coisa.)
E temos, também, aqueles que vão se revelando aos pouquinhos, vamos
aprendendo a enxergar nas suas humanidades, virtudes e inconstâncias,
rachaduras que nos obrigam recuar e avançar com as cautelas da convivência. Os
dias e as noites se tornaram muito perigosos e nos ensinam que confiar só
desconfiando, afinal, os rios navegáveis somem dentro de la tierra, comidos pela lama, ocultos da
sede y de las lluvias.
Confesso, naqueles dias de recém-chegado em Piedras Altas, o anão Qualquer, mais se parecia com um tremor de tierra, cheio de rachaduras em suas partes
de piedras y arcilla. Ele veio se juntar as incertezas e medos de um tempo sem
farturas de terras, vacas, leite ou justiça. Chegou à vila en tiempos de gran escasez. Las personas adultas da vila haviam de se acomodar com pouco, mas
as crianças e os velhos – curioso cómo
los ancianos ya tienen la misma protección de los niños, los ancianos no son
adultos, son históricos - precisavam das regalias de comer com suficiência
de alegria. Havia necessidade de tirar leite de la piedra.
E o leite que saciava a sede e alimentava passou a servir apenas de
alimento, a sede se contentava com as águas do córrego. Em Piedras Altas, todos
reclamavam das saudades de um tempo em que tomavam leite por água. Las brujas da primavera brincavam de fazer
desaparecer a água das piedras e o
leite das leiteiras. Tempos de escassez. Las
lluvias diminuíram e viravam um fio
de água escorregando piedras abaixo.
As vaquinhas e o riozinho precisavam de cuidados.
Ninguém percebeu que papá
entristeceu a própria melancolia. A saudade que ia e vinha por sus mujeres estava de regresso, ela lhe tirava o tino das
mãos. Parecia que as mãos do papá não
eram mais suas mãos. Afirmava que fazia tudo do mesmo jeito, mas as vaquinhas
estranhavam os apetites de falta de vontade das suas mãos. Todos emagreciam.
Os vileiros de Piedras Altas estavam desconcertados e repetiam,
longe do papá, A desgraça não anda
sozinha, las manos del viejo racharam
só de tocar nas leiteiras
(Desgraça pouca é bobagem.)
Uma reunião de emergência foi chamada. Estava decidido que papá sofreu algum encantamento de
feitiçaria. O desencanto precisava substituir as leis que apodreciam as mãos de
papá e enfeitiçavam a vila inteira.
Atravancavam sem deixar rastros de pegadas.
Toda aldeia deveria ter su bruja, Piedras Altas precisou
pedir emprestada una bruja para fazer os desencantos. Entrou
em nossa cabaña com passos
arrastados, passou-me sem dizer palavra. Parecia não ter olhos, falava pelo
silêncio e pelo perfume defumado que chegava logo atrás. Olhei seus pés
enfiados em dois chinelos distintos, um preto com borracha, outro cor da tierra em couro, os calcanhares róseos estavam
rachados e descamavam
(Quiero ver a las chicas.)
Aquela voz rouca e grave congelou meus jeitos de ouvir. O anão sugeriu
que as providências seriam mais rápidas se as leiteiras fossem trazidas da
hotelaria
(No, necesito sentir el olor del
mal.)
O Juzé balançou os ombros com indiferença e se foram para o pasto. Quando
chegaram, depois de muito arrastar os pés, as três já estavam reunidas para os
exames de brujería.
A velha se aproximou da orelha esquerda da Plantera e pareceu sussurrar
alguma reza. Depois chegou sua orelha à boca da mimosa. Parecia que as duas
rezavam. Juntou as duas mãos ao peito e as elevou ao céu da Montaña.
Fez o mesmo com as outras leiteiras
(Es la falta de macho.)
Não foi reza, foi conversa de queixume e lamúria. Enfim, o dito estava
dito e não podia ser desdito.
Retornamos à reunião emergencial da cal blanca.
O ajuntamento sobre as magias de encantamento foi em nossa cabaña. Estavam todos por lá, sentados
no chão em esteiras, em pé, encostados nas paredes. A fumaça dos palheiros
deixava a luz menos sóbria, parecia não existir lamparilla com força de clarear através daquela aparência
esfumaçada. Penumbras da lâmpada de querosene. O calor sempre era insuportável.
Papá jogava mais cerração em nossos
olhos fumando seu tabaco no talo de bambu, emprestava ao silêncio sua voz,
quase nada falava.
Aprendi que qualquer amontoamento de miseráveis é difícil, se não há
vontade de ceder ou entender, todos falam sem escutar os silêncios, os olhos,
as mãos, a respiração. O ajuntamento de gente com fome tem ruídos assustados
pelo estômago, o olhar mais vigilante empiora quando o sofrimento da precisão
de comer já chegou aos filhos
(Precisamos de mais leite.)
Parecia que nossas donzelas leiteiras esfriaram a seiva que desembocava
em cada teta. Continuavam despertas sobre la
tierra, mas o rio de húmus parecia
aturdido e não encontrava os caminhos do úbere. As meninas fediam a chifre
queimado.
José e Jaquín inconformados com o descontrole das leiteiras combinaram ir
até o pasto para ordenhar as três desconsoladas, antes de subir à reunião. Não
fizeram alvoroço, preparam as três em silêncio. Patas traseiras amarradas.
Banquinho. Balde. Cusparada nas mãos. Os seios pendurados sob o ventre fediam
sem a fervura da água. Os rapazes apertaram e puxaram uma duas três, até que os
talos deixaram fluir um catarro doce e verde nos baldes.
Não havia o que fazer.
Os dois entraram aturdidos em nossa cabaña,
tinham a cara e as vestes da mudez congelada. Havia necessidade de ar.
Um conluiado sugeriu aumentar o nosso roçado de milho; mais fome, mais
milho
(Nosso?)
Dizem que um dia, tiempos que
se perderam sem memórias, o roçado de milho já foi dos nossos espíritos
ancestrais, mas nos tiempos de hoje,
nada mais era nosso naquela Montaña,
nem mesmo as histórias. Talvez as raízes profundas estivessem presas em sus cuerpos esquartejados, talvez a vida se tivesse
salvado por obra dos intestinos minerais. No fim de tudo, as raízes continuavam
metidas em buracos secretos, respirando dentro
de la tierra.
Nossas vidas não eram nossas, como não são ainda hoje, eram do milho e o
milho já tinha dono, o senhor da Montaña
era o posseiro das nossas vidas.
A reunião prosseguiu e sugestões tolas surgiam, desaparecendo em meio
aquela névoa de fumaça amarelada. Nada parecia empolgar hombres y mujeres. Até que papá se ergueu e ficou em pé, silencioso, ao lado da pequena
fogueira. O talo de bambu em uma das mãos. O olhar parecia cego. Não tinha
pressa nem afobação, ficaria ali esperando el
tiempo conveniente aos demais para
ouvi-lo y el tiempo necessário para os espíritos antigos se aproximarem do calor
daquele fogo. Fez silêncio para ouvir o que tinham a dizer aos seus ouvidos,
esperou pelo silêncio para contar o que tinha guardado a sete chaves. Um a um e
uma foram aquietando seus alaridos, sus
miedos conversando com outros miedos se calaram, iriam escutar o
espremedor das tetas sobre a desordem invisível das leiteiras e o esfriamento
do derramamento do leite.
(As vaquinhas estão brotando leite além da alegria de servir, já estão
sofrendo o que preciso espremer. Os miúdos nascem de vocês e pergunto para que
querem hijos se as vacas só fazem
envelhecer y los niños mueren de hambre.)
Ele fez um silêncio estratégico de efeito, precisava respirar e escutar,
era um hombre desacostumado de falar
tanto. A chuva miúda daquela neblina de fumaça parecia molhar seus cabelos,
deixando-os acinzentados como recordação do ambiente envenenado pela luta de
extermínio
(Precisamos treinar os costumes de outras mãos para espremer as tetas.)
Um murmúrio de surpresa foi ouvido entre as nuvens de fumo espesso. José
e Jaquín se olharam miúdos e desentendidos.
Nova pausa, papá parecia estar
repetindo algo que ouvia e lhe chegava pelos ares da Montaña, uma entidade misteriosa siempre disposta a dar os sinais, fazer os ensinamentos necessários
à vida, intestinos minerais alimentavam raízes profundas e pareciam querer
desfigurar, descriar esse homem que apalpava e espremia tetas. Olhavam uns aos
outros e se perguntavam: quem haveria de assumir este posto de trabajo, e como convencer as leiteiras
que a troca de mãos era necessária, quanto todos haveriam de esperar até que as
tetas obedecessem o novo comando; as perguntas e aquela gente assustada estavam
misturadas na neblina do tabaco.
O anão aproveitou para dar solução ao pensamento inacabado de papá
(Vamos até o coronel e pedimos outra vaca.)
O mundo veio abaixo entre atropelos e o desassossego das vozes
assustadiças, enquanto todos se punham a dizer e contradizer o tal plano de
pedir uma vaca. Por certo, a benfeitoria não seria de graça, foi o consenso
(Estamos prontos para pagar o acordo?)
Papá sentou. Ele parecia mais
conformado com a solidão, menos a vontade com toda aquela agitação. Tive ganas
de arrancar a língua do anão, o baixinho tinha muito a aprender, mais do que
pensava que sabia. De qualquer modo e custo, foi a idéia do miúdo que nos
alentou o espírito.
Havia um plano, dos hombres y dos
mujeres pediriam para conversar com o coronel
(Quem é esse coronel?) (Ninguém sabe.) (Vamos encontrar el hombre.)
Eram jovens que saiam da Montaña
para buscar ajuda e alimentar seus hijos.
Não foram escolhidos, se ofereceram para os diálogos de convencimento do
coronel, queriam falar da fome, do leite, das crianças. O miúdo estava junto,
disse que não iria perder por nada aquele encontro
(Estamos fazendo história.)
Todos se olharam sem entender nada. Afinal, não sabiam que história era
aquela de fazer história, aquele anão falava além da conta de se entender.
Histórias se contam pelo prazer de contar, acalmar los miedos, a necessidade
de inventar vidas resignadas como alguma melodia saborosa.
Foi assim, formada a nossa comissão de negociação. Partiram.
Não chegaram nem mesmo no costado do casario, uma grande corporação de
milho e escravos. Foram recebidos no meio do caminho, na estrada mesmo, por um
homem esquisito, não aparentava com índio, nem negro, nem branco, por isso,
talvez, não lhes conhecessem o nome, mas a alcunha de reputação, La Muerte.
Seus olhos e mãos admiráveis sumiam quando abria até as orelhas sua abissal
boca desdentada. As moscas iam e voltavam da sua bocaça, pousavam e revoavam
sobre sua cabeça grotesca. A voz agourenta e funesta anunciava perigos,
assustava aqueles jovens labradores
de milho
(O coronel não recebe a imbecilidade.)
La Muerte vertia o suor dos poros e a saliva da boca. Urinava em si
mesmo, provocava o medo e a repulsa. Queria fazer morrer qualquer vontade,
esfarelar as ambições até agradecerem por ainda estarem vivos, respirando,
voltando para suas casas, filhos, panelas, hogueras
y fiestas.
Ali, o plano fracassou. Não havia jeito de convencer La Muerte. O anão até que tentou, ele não podia sair sem dizer da
sua coragem
(Senhor, pedimos que diga ao coronel que essa vaquinha vai aumentar o
leite que já nos falta.) (Talvez... se alguns partissem da vila.) (Quem?) (Los viejos y los enfermos.) (Por que?)
(Aqueles que ficam terão mais para si.) (Não queremos sair.) (Talvez... não
dependa de vontade alguma.) (Gostamos dos nossos velhos e doentes.) (Es una pena.)
Aquela conversa começou a ter um sentido de ameaças e promessas
estranhas.
A aleivosia escorria do desdentado e se espalhava junto com as moscas
grudentas. Agradeceram por nada e saíram.
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