quinta-feira, 1 de novembro de 2012

Sarau da alma do corpo... e delírios


Ensaio 13

baitasar


Não havia sopro algum para tocar seu rosto de pedra, acariciar como uma mão feminina seus cabelos, nenhuma sentinela do inferno, nenhum anjo do céu, apenas a solidão do seu próprio silêncio. Aquilo nada tinha a ver com palavras que feriam os próprios amigos, não conseguiam enxergar claramente, não tinham consciência de si mesmas. Era medo. Ele fugiu. Correu para sua casa de verdade, para os seus papéis escritos, livres de perguntas, realidades imaginadas por ele, histórias de verdade da imaginação. Ali, ele puxa os cordões e tudo mexe ou para às suas ordens escritas com o lápis no papel.
Pensava como as mulheres o levam do céu ao inferno — Por que vocês sempre precisam das respostas, eu não tenho as respostas... eu não sei... eu não sei! — deixou Adelaide para trás, lá naquele pequeno refúgio, sozinha, sem nenhuma resposta, mas a pergunta continua por lá, esperando — Sèzar... quer casar comigo?
Agora, está em seu lugar, entre seus papéis e lápis, anotações confusas, espelhos, halteres, teclado. Foi um dia intenso de academia, jornal, mesa de trabalho com cadeira que gira e corre sobre quatro rodinhas, e os papéis. Inventando, reinventando. Pessoas com corpos esculpidos no limite do bom senso. Ele em silêncio, os olhos dançando de um para o outro, espelhos, o suor, puxando e largando os ferros, roldanas, halteres, alongamentos.
Ou um dia inteiro na redação daquele jornal, imaginando as notícias como elas quase são de verdade, computadores e telefones, reuniões e pautas, e o tempo que nunca dá uma segunda chance — Acabou! Fechamos a edição! — suspiros de alívio, rugas de tensão, taquicardia, tudo transformado em um pequeno gole da pura cachaça.
Procurava clarear algum sentido, mesmo que sentido algum houvesse desde o início. Sentou na penumbra daquele silêncio invadido apenas pelo ir e vir no metrô, sempre lotado. Estendeu a perna sobre os trilhos, cruzou a outra por cima, os latidos das roldanas nos trilhos chegavam e partiam. Quando se afastavam pareciam gemidos de corpos que se arrastavam contrariados, para lá e depois para cá. Dentro dos vagões o mesmo roteiro, as mesmas paradas, a mesma velocidade, o mesmo cheiro de lavanda, os fones de ouvido, o jornal, o livro, os óculos escuros, o sono, os velhos em pé, as grávidas nascendo seus filhos, as batinas, os coturnos, a rotina suburbana construindo a amorosidade.
Levantou e foi até a biblioteca, voltou com um contador de unhas nas mãos. Cantarolava bem baixinho uma canção de ninar, que ele não sabe, mas foi a canção que sua mãe cantarolava com ele nos braços. O cortador saia de uma das mãos à outra, ia e vinha, jogado de um lado para outro.
Sentou em sua poltrona de trabalho, naquela meia-luz da noite incompleta. Os gemidos dos trilhos continuavam marchando em frente, voltando. Relinchando. Aparar as unhas dos pés era uma ordem que não se recusava obedecer, mesmo alguns anos depois da morte do Vô Mitô — Homem não se deita com as unhas compridas, é outro jeito de descaso com a mulherada. — perguntou o que seria esse descaso, e o avô lhe respondeu com as suas reticências — Pense nisto, quando achar a resposta já vai pronto.
—        Já vou pronto...
—        O guri vai saber.
Sèzar não usou muito do seu tempo para pensar sobre o tamanho das unhas do pé, mas na dúvida, não deixa que cresçam.
Tem exato um dia que não vê Adelaide. Ela não liga, ele não liga. Pega o telefone... escolhe o número... desiste, coloca de volta no bolso da calça — Por que ela não liga? — junta algumas folhas rabiscadas, depois de ler acrescenta mais rabiscos, rápidos, nervosos, desnecessários. Num empurrão turbulento, contra aquela insatisfação que não o deixa e apaga sua vontade, levanta. Junta os cabelos num rabo, pega o capacete e sai. O ronco da moto, o vento gelado, o asfalto liso, a velocidade nas ruas, nada o anima.
Estaciona na garagem vazia, sobe as escadas até o pequeno apartamento. Entra. A penumbra o protege dos olhos do motoqueiro. Marrom como se a claridade fosse um estouro de luzes. As pupilas dos olhos se fecham, não deixam entrar luz, age como um felino na escuridão. Cheira o ar e o perfume da mulher ainda se espalha por tudo. Procura o interruptor de luz — Não liga... deixa assim... — queria iluminar toda aquela mulher que o obrigava a se descobrir: não bastava aparar as unhas. Obedeceu. Lentamente a mão se soltou da parede. Não interrompe aquela quase sombra. Sèzar ferve, está repleto do desejo, à medida que fica à vontade, sente o próprio murmúrio. Aos poucos, tudo parece envolvendo-o num manto de calor e frio, fogo e água. Ele próprio apenas um vulto invisível.
Encontra Adelaide, nua, sentada no chão, as pernas dobradas, as coxas apoiando suavemente os seios, feito cuias morenas. Os cabelos soltos sobre os ombros desciam às suas costas. O rosto levemente inclinado, os braços apoiados firmemente nas mãos, e as mãos, no assoalho. A luz bucólica chegava pelas frestas da janela e a envolvia em uma quase sombra — Como pude?
—        Você é um tolo...
—        O que posso consertar?
—        Isso importa? — levanta e caminha entre a luz e os olhos de Sèzar, deita de costas na cama, deixa uma das mãos sobre os seios, a outra se apoia na testa e acaricia os cabelos. Os olhos fechados, em silêncio.
Sèzar parado, em pé, no meio daquele imenso apartamento.
Adelaide rola sobre os lençóis, uma quase sombra que fica deitada de bruços, apoiada nos cotovelos, ergue o queixo — Quando vocês irão crescer? — ele se ajoelha e tenta abrir os lábios, talvez, pedir outra desculpa outro perdão, ela leva os dedos à sua boca e lhe convoca o silêncio — Apenas, escuta... ouves a Neruda
Déjame sueltas las manos
y el corazón, déjame libre!
Deja que mis dedos corran
por los caminos de tu cuerpo.
La pasión – sangre, fuego, besos –
me incendia a llamaradas trémulas.
Ay, tú no sabes lo que es esto!
—        Sei que dizer isso pode me tornar vulnerável, mas os carinhos do teu corpo me arrasam mais que...
—        Psiu, homem-poesia... - ou será homem-estúpido? - escuta minha voz decifrando os sons de algum amor que já existiu desse jeito: sangue, fogo e beijos... — ela senta e leva as duas mãos aos ouvidos, por cima dos cabelos soltos, desalinhados, descendo dos ombros e ficando ali, recostados como vagabundos escorados sobre seus seios, escondendo seus bicos, babando, cobiçando carinhos, os lábios retornam a sua leitura úmida da memória
Es la tempestad de mis sentidos
doblegando la selva sensible de mis nervios.
Es la carne que grita con sus ardientes lenguas!
Es el incendio!
Y estás aquí, mujer, como un madero intacto
ahora que vuela toda mi vida hecha cenizas
hacia tu cuerpo lleno, como la noche, de astros!
O que pode saber esse homem da autoestima do amor... ela não vai rindo por dentro. Está exausta de esperar para arrancar as roupas, enrolada em seus braços. Esperar cansa muito mais que chegar a algum lugar — Não sei como consertar a minha vontade de casar contigo... sempre fico esperando que tenhas algo para me dizer, vais embora e nada acontece. Não será nunca? Nada é pior do que não dizer nada. — continua o silêncio do homem que não consegue – ou não quer – ir além daquele quarto, prefere o silêncio, ela continua
Déjame libre las manos
y el corazón, déjame libre!
Yo sólo te deseo, yo sólo te deseo!
No es amor, es deseo que se agosta y se extingue,
es precipitación de furias,
acercamiento de lo imposible,
pero estás tú,
estás para dármelo todo,
y a darme lo que tienes a la tierra viniste –
como yo para contenerte,
y desearte,
y desearte!

São quase duas sombras, ela deita de lado, ele não vê os seus olhos, mas sabe que não devem estar perdidos — O meu amor se extingue... — sua respiração é lenta, quase silenciosa, espera que um milagre aconteça neste pequeno apartamento, ele arranca as roupas se enrolando em seus braços, encontra com a alma do corpo da mulher, os delírios... — Eu quero ficar do tamanho da paz.

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