sábado, 10 de novembro de 2012

Sarau do anão


Ensaio 15
baitasar

Livros são negócios que precisam vender, assim como a informação do jornal precisa alienar, se não tem vendição, por si só, o comerciante aplica um empurrão, que pode ser pequeno ou grande, o tamanho do empurrão vai depender da indecência e cara de pau do dono da banca — Esse seu livro, moço, nem com empurrão dos grandes!
—        Por quê?
—        Ninguém conhece o moço. A importância do moço é a mesma... vivo ou morto.
—        Mas é um romance histórico, é sobre o medo, a violência, o negro... a liberdade, a ditadu...
—        Espera, moço.
—        Qual a parte que o senhor não entendeu?
—        O moço é que não entendeu... não interessa o livro, ninguém conhece o moço. — àquela altura do monólogo percebeu que os dois estavam contracenando, mas o teatro estava vazio, as portas estavam fechadas, saiu até lá fora para ver o movimento das pessoas chegando, não havia pessoas chegando, a porta se fechou. Ele estava fora. Sèzar bateu uma, duas, três vezes, ou mais, não lembra, até que um porteiro abriu uma pequenina fresta e perguntou a senha. Ele não conhecia a senha
—        Deixe-me ver se entendi: um sujeito conhecido na locomotiva escreve bobagens, com jeito de sério, intelectual descolado, com os brilhos da submissão, fácil de entender, não se arrisca, vira sucesso de vendas, leitura obrigatória...
—        É isso, o livro precisa ser alienado, não pode virar estoque para as traças, são apenas negócios.
—        E essa gente toda com vontade, escrevendo como se fossem locomotivas descarriladas...
—        Os gênios vêm mesmo, cedo ou tarde saem das nuvens para chover. O problema são os medíocres desconhecidos...
—        E os editores medíocres?
Sèzar pegou seu manuscrito, aquele que o levaria a lista dos mais vendidos, o calhamaço estava no mesmo lugar, não foi mexido. Julgado pelas aparências da sua desimportância — Se o moço anda nu na rua, vira celebridade e tem seus quinze minutos de sucesso, mas escrever um livro... — um silêncio constrangedor entre o que podia, mas não queria, e o autor da peça literária — ... se o moço me permite um conselho... — claro, que ele permite, sim. Um pequeno sinal, qualquer coisa que lhe deixe ir em frente, uma possibilidade, uma esperança. Ganhar de volta a confiança para conseguir o que deseja. As pessoas precisam de ordens ligadas aos seus interesses, tendências, que os sábios as façam ver melhor os caminhos — ... moço, arrume um bom emprego, se case, tenha filhos, plante árvores...
—        Obrigado... seu filho-da-puta!
Saiu para a rua. Sentiu-se seguro enfiado na multidão, caminhando de um lugar nenhum para outro algum. Perdido. Desperdiçado. Esbanjado. Desconhecido. Parou por parar, numa esquina qualquer, ele mesmo era qualquer um, as pessoas não desviavam, levou trombadas, empurrões, não pareciam surpresas com mais um maluco parado, em pé, atrapalhando o seu ir e vir de cardume. Não era mais que outro idiota perturbado. Olhou para o seu manuscrito uma última vez, lançou tudo para o alto e saiu caminhando por dentro daquela enxurrada sem rosto, sem paladar, sem amorosidade, sem rabo. Não olhou para trás, o murmúrio da imaginação era melhor — O voo do romance que mudaria o mundo, que jamais seria lido. — lembrou o bilhete da Adelaide: “... voltar a tricotar”.
—        Dane-se o mundo da humanidade, não se importam com o ferro em brasa, com a carne viva marcada, tinham dono! — ele também teria um dono. Sentia falta da sanidade de estar com Adelaide, uma possibilidade de ser importante para alguém, um só alguém que fosse. Queria exercitar o seu egoísmo. Existem pessoas que transformam as roupas que usam em obras de arte, misturam simplicidade com brilho, são roupas inesquecíveis. Outras não precisam das roupas, elas são a própria arte, a perturbação da imaginação, o imagismo da estética, é quando os olhos ficam sem as palavras. Adelaide transforma penumbra em luz, preguiça em gozo, longe em perto.
Sèzar continua seguindo a turba: caminham, caminha, a mesma estrada. Ouve um ruído de freios, o cheiro da borracha arrastada pelo asfalto, tentando se agarrar, fazendo parar. Depois vieram as ameaças, os palavrões, olha para os lados, intui que é com ele. Não bastava se ignorado, agora a caravana queria a desforra. Está parado sozinho, em meio ao tráfego da outra caçada: os carros.
Parte do corpo da multidão se partiu, uma foi em frente e continua com seus passos apressados à frente, a outra parte, está parada, esperando o aviso para prosseguir. Se ele quer andar na multidão precisa reagir como mais um naquela enxurrada de corpos — Senhor Sèzar, temos interesse em publicar seu romance.
—        Verdade?
—        Gostamos do seu jeito de escrever. — o maluco do Sèzar não queria entrar em polêmicas desnecessárias, um jeito de escrever com lápis, mas sem borrachas — Ah... que bom... — gato escaldado não se atira em qualquer bacia com água
—        Quanto o senhor estaria disposto a investir?
—        Não entendi...
—        Tudo tem um custo. — o Sèzar paga. O editor edita e fica com o dinheiro. Entrega os livros para o Sèzar, ele sai pelo mundo vendendo, por isso, é bom ter amigos
—        Não tenho dinheiro, nem amigos.
—        Que pena... tenho certeza que seria um sucesso. — essa não foi a primeira nem a última porta que se fechou porque ele não tem amigos — Moço! — uma voz se repetia chamando o tal moço, era com ele, o moço era ele: Sèzar!
Na calçada, onde todos esperavam, um gigante gritava pelo tal de moço, que era ele — Cuidado, moço! — o gigante desceu da segurança daquele pedaço de chão, correu pelo asfalto até segurar na mão do Sèzar, um colosso de mão que o levou em segurança para o território da aglomeração. Vaias e aplausos eram ouvidos. Ele tivera seus quinze minutos de fama — Não sei o que me aconteceu...
—        Sonhando acordado, moço.
—        Sèzar... meu nome é Sèzar, e, na verdade, é um pesadelo, não é um sonho.
—        Esses atropelos nos acontecem, vez que outra.
—        Obrigado, senhor...
—        Davi.
—        Obrigado, senhor Davi. — o sinal para os pedestres libera a manada em segurança. Sèzar está indeciso, agora que tem os olhos abertos não sabe para onde ir — Davi, apenas Davi, um jornalista desempregado. — ele olha novamente para o salvador da mão gigante que se decompõem: um anão. O homem é um anão. Um homem anão negro. Estende a sua mão gigante que aperta a pequenina mão do anão

—        Sèzar, um escritor sem livro. — é bem isso, escritor sem livro publicado é o mesmo que estar desempregado, com as mesmas chances de um gigante ser um anão, um jornalista negro publicado, um escritor empregado, ali está os dois, a ficção que se muda com a realidade
—        Vamos até minha casa tomar umas cervejas.
—        Isso... uma cerveja, estou precisando de uma cerveja. — assim, já aproveita a casa do anão para passar à noite. Que vergonha! O anão fala sozinho durante o andamento. Ele vai pensando que a diamba já está se perdendo. Quando chegam e o anão o convida para entrar... a diamba já se perdeu. Sèzar não pode evitar um encrespo de remorso — Que bobagem eu fui fazer...

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Leia também:
Ensaio 14 - Sarau: ele são muitos, eles é um só 
Ensaio 16 - Sarau da diamba

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