Ensaio
18
baitasar
Abriu com lerdice frouxa os olhos,
sentia uma carícia misteriosa, diferente talvez, uma meiguice inacessível, o
lugar estava às escuras, mas não era o sombrio nanquim do lugar que o
incomodava, não escutava os barulhos do dia acordando, não ouvia o rangido das
roldanas nos trilhos do trem, a situação produzia um embaraçoso e perturbador
incômodo em Sèzar: o gosto da obediência ao mesmo jeito que sempre foi. Caber no
lugar, ter alguém que pudesse lhe dizer onde está — O absurdo é inútil...
Queria os desejos da Adelaide voltados
para ele, como as flores se abrem, exalando o seu perfume e os seus amores.
Tinha algo em carne-viva, além do gosto amargo que lhe subia da garganta e deixava
a saliva grossa e grudenta. A língua entorpecida por tanta amargura diminuiu a
força e o ímpeto para dizer uma prece, qualquer que fosse, para se salvar, mas
não o impediu de dizer amém, Eu sou para minha amada, e os seus desejos
voltam-se para mim. Vem minha amada, saiamos para o campo, passemos a noite nos
pomares; madrugaremos para ir às vinhas, e ver se a vinha lançou seus rebentos,
se as suas flores se abrem, se as romãzeiras estão em flor, ali te darei os
meus amores. As mandrágoras exalam o seu perfume; e temos à nossa porta frutos
excelentes, novos e velhos, que guardei para ti, minha amada.
Depois fechou o Livro.
Sèzar se apressa, ele sabe que o
encantamento irá desinchando com o clareamento da noite — Sempre fico esperando
que fiques, não vá embora, e sempre acontece... você se vai. Não será nunca? —
está sentado na beirada do abismo, com as costas voltadas à mulher tapada pela
névoa do escurecimento, deitada retorcida, enviesada sobre os lençóis brancos,
engolida, esparramada, depois encolhida de novo. Volta o olhar, Adelaide sempre
o surpreende com seus jeitos de se mostrar, ali, aberta aos seus olhos, perna
sobre a outra, encolhidas, um quadril sobre o outro, de lado, os braços
estendidos acima da cabeça, de frente, não pode ver seus olhos, mas aquela
aquarela o convidava para ficar, sempre mais um pouco, até não partir mais, os
pés procuram os chinelos — Meu Deus, como você é linda... e o encantamento
acaba quando amanhece. — ela permanece imóvel, respira junto com o pequeno
apartamento, mergulhada em memórias, em cheiros da saudade, os olhares mais
tristes que já pode ver
— Sèzar,
estou cansada de gente complicada, vai até o banheiro tirar o amargo da boca e
volta pra mim, ou sai e não volta mais. — ele caminha no pequeno apartamento
até o quarto dos banhos, se vê pela luz do amanhecimento nas frestas, sente
como se uma sinfonia lhe tivesse estourando os ouvidos, torturando com sua
beleza delirante, as harmonias infinitas decifradas das cifras dos deuses.
Adelaide o chama, pede que ele monte como se fosse cavalgar — Quero fazer uma
pergunta...
Ele já está sentado, parece pedir um
milagre para consertar tudo — Pergunte... — quem sabe uma pergunta para
consertar tudo ele precise ouvir
— Sèzar,
eu sou a tua cela? — não sabe o que responder — Ou a tua sela?
— Que
ideia... de onde você tirou isso?
— Num
ônibus... num trem... na puta que o pariu... apenas responde...
O incenso envolve os dois naquela névoa,
como um labirinto de recordações.
Saiu da cama procurando por uma saída,
não estava no pequeno apartamento, não lembrava onde estava, procurava um
rastro, um perfume, um amor deixado para trás. Espremia os olhos, mas a
penumbra continuava forçando o clareamento do dia para fora do quarto — Bom
dia, meu amigo.
Sèzar para no meio da passagem, seja o
que for esse caminho, reconheceu aquela voz, voltou-se, espremendo os olhos,
arreganhando os ouvidos, uma pequena sombra embaraçada parecia elevar-se da
cama, durante aquele eclipse da memória, fechou os olhos, contou até dez,
lentamente, assim ajudava clarear a mente e os olhos, consertou a respiração apressada,
abriu os olhos, lá estava o anão, em pé na cama, a árvore nua, sem disfarces.
Sentiu um pequeno e desconcertante pavor, não conseguia lembrar qualquer
cerimônia que tenha participado para purificar o corpo. Não encontrava nenhuma
motivação oculta para acordar nu com aquele anãozinho preto, na mesma cama. Não
podia ser apenas coincidência num sonho, talvez Moriá tenha lhe aplicado à
teoria da árvore do esquecimento, Será que eu esqueci que sou um macho? Meu
Deus, não fica nada bem, isso tudo, eu sou um macho alfa.
Enquanto procurava desesperado despertar
a memória, sua carne e seus ossos despertavam do que parecia ter sido uma noite
selvagem. Andou até uma janela — Não dá pra abrir, temos abelhas nessa janela,
se você abre as abelhas entram. — o aviso do anão o fez recuar, tem alergia à
picada de insetos. Não gosta de picadas e isso o tem salvado, por enquanto. Queria
encontrar uma árvore, essa tal de baobá, e caminhar no outro sentido, na sua
volta, fazer da árvore do esquecimento a árvore da memória.
Tinha medo da pergunta que precisava
fazer, ninguém viria salvar ninguém, não sabia, havia dias, nenhuma notícia da
Adelaide, a única com chance de ajudar, Por que acordamos na mesma cama,
parecia que caminhos misteriosos me levavam exatamente àquilo que eu procurava
fugir.
A campainha da porta explodiu seu aviso
estridente. Os dois se olharam, mudos e desconfiados, não iriam atender o
chamado da campainha. Outro esbarrão do dedo na campainha, outro chamado, e mais
outro, e outro — Meu amigo, vá ver o que se passa.
— Nem
pensar!
— Os
meus trajes não são adequados.
— E
os meus são? Nu em pelo. Além disso, é a casa do anão, o dono recebe as
visitas, não é o visitante que se faz de dono.
Outro chamado
— ¿Nadie va a ver quién está tocando el timbre maldito? — era a moça que Sèzar conheceu apenas com uma
coisinha. A rapariga que estava sentada na cama, emergiu dos lençóis enrugados
— É o que estamos tentando decidir.
A moça levantou da cama, Sèzar reparou
que ela estava sem a coisinha que a tapava toda — Onde você vai?
— Hasta que la puerta. — ela respondeu
como se fosse o ato mais natural do mundo ir até a porta da campainha — Assim,
nesses trajes... Maiami... — o anão se deu conta do ridículo da advertência,
não havia traje algum, a Maiami, fosse quem fosse, estava pelada. Sem pelos é
estar pelada... ela estava pelada. Sèzar e o anão estavam nus. É diferente. A Maiami
não era preta, nem negra era, o nome era uma camuflagem, tinha a cor vermelha
aborígene, cabia em qualquer lugar das Américas, desde que soubesse o seu
lugar.
Aquilo tudo, em parte, diminuiu a
necessidade de muitas perguntas, Quem é essa moça, não que isso lhe importasse
em demasia, mas era o mínimo que lhe ocorria, à medida que algumas memórias da
noite se mostravam fantásticas, descontroladas, ardentes e desencontradas.
Outro chamado.
— ¡Carajo! Estas personas no se dan por
vencidos...
O anão fez gesto de silêncio. A Maiami
procurou algo entre os panos da cama — ¡Lo
encontré! — enfiou as pernas, uma depois da outra, naquela coisinha e subiu
até as virilhas — Pronto, agora vá mocinha.
Ordem dada, ordem obedecida. Saiu do
quarto. Ouviram o abrir das fechaduras, depois sussurros e a porta se fechando.
Os passos da moça se aproximavam — Voy a
hacer café... ¿Quién más quiere?
Os dois continuavam parados no quarto,
no mesmo lugar, esperando a resposta para tanta impertinência
— Quem
era? — quis saber o anão
— ¿Usted no se va a usar? — advertiu que os encantamentos dos espíritos de la
Montaña se vão com o amanhecido... e
o que foi formoso fica sem propósito — ... erguido
como una gota, una disminución... — a moça reconhecia que as cores da noite
e a penumbra despiam as máscaras usadas como filtros do sol, os brilhos do
abajur escondem, o deus Apolo revela. O anão deixou o sorriso escapar-lhe como
a fumaça do cigarro se escapa da boca até desaparecer — O que se passou na
porta? Quem era?
— Dos señoras con muchos vestidos, largos y
cerrados, sosteniendo una biblia cada uno.
— Devagar,
devagar, a mocinha mistura um pouco de tudo quando fala muito rápido. Então...
— No se. — quando ela abriu a porta, as
duas fizeram o sinal da cruz, uma ofereceu a bíblia à Maiami porque ela precisava
rezar muito. E foram embora.
A moça largou o Livro sob a cama e foi para o
banho, o café ficava para depois. O anão parecia se divertir com o
constrangimento do amigo, já vestido com sua cueca e meias.________________________
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Ensaio 19 - Sarau com café e chocolate
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