domingo, 25 de novembro de 2012

Sarau da bíblia


Ensaio 18
baitasar

Abriu com lerdice frouxa os olhos, sentia uma carícia misteriosa, diferente talvez, uma meiguice inacessível, o lugar estava às escuras, mas não era o sombrio nanquim do lugar que o incomodava, não escutava os barulhos do dia acordando, não ouvia o rangido das roldanas nos trilhos do trem, a situação produzia um embaraçoso e perturbador incômodo em Sèzar: o gosto da obediência ao mesmo jeito que sempre foi. Caber no lugar, ter alguém que pudesse lhe dizer onde está — O absurdo é inútil...
Queria os desejos da Adelaide voltados para ele, como as flores se abrem, exalando o seu perfume e os seus amores. Tinha algo em carne-viva, além do gosto amargo que lhe subia da garganta e deixava a saliva grossa e grudenta. A língua entorpecida por tanta amargura diminuiu a força e o ímpeto para dizer uma prece, qualquer que fosse, para se salvar, mas não o impediu de dizer amém, Eu sou para minha amada, e os seus desejos voltam-se para mim. Vem minha amada, saiamos para o campo, passemos a noite nos pomares; madrugaremos para ir às vinhas, e ver se a vinha lançou seus rebentos, se as suas flores se abrem, se as romãzeiras estão em flor, ali te darei os meus amores. As mandrágoras exalam o seu perfume; e temos à nossa porta frutos excelentes, novos e velhos, que guardei para ti, minha amada.
Depois fechou o Livro.
Sèzar se apressa, ele sabe que o encantamento irá desinchando com o clareamento da noite — Sempre fico esperando que fiques, não vá embora, e sempre acontece... você se vai. Não será nunca? — está sentado na beirada do abismo, com as costas voltadas à mulher tapada pela névoa do escurecimento, deitada retorcida, enviesada sobre os lençóis brancos, engolida, esparramada, depois encolhida de novo. Volta o olhar, Adelaide sempre o surpreende com seus jeitos de se mostrar, ali, aberta aos seus olhos, perna sobre a outra, encolhidas, um quadril sobre o outro, de lado, os braços estendidos acima da cabeça, de frente, não pode ver seus olhos, mas aquela aquarela o convidava para ficar, sempre mais um pouco, até não partir mais, os pés procuram os chinelos — Meu Deus, como você é linda... e o encantamento acaba quando amanhece. — ela permanece imóvel, respira junto com o pequeno apartamento, mergulhada em memórias, em cheiros da saudade, os olhares mais tristes que já pode ver
—        Sèzar, estou cansada de gente complicada, vai até o banheiro tirar o amargo da boca e volta pra mim, ou sai e não volta mais. — ele caminha no pequeno apartamento até o quarto dos banhos, se vê pela luz do amanhecimento nas frestas, sente como se uma sinfonia lhe tivesse estourando os ouvidos, torturando com sua beleza delirante, as harmonias infinitas decifradas das cifras dos deuses. Adelaide o chama, pede que ele monte como se fosse cavalgar — Quero fazer uma pergunta...
Ele já está sentado, parece pedir um milagre para consertar tudo — Pergunte... — quem sabe uma pergunta para consertar tudo ele precise ouvir
—        Sèzar, eu sou a tua cela? — não sabe o que responder — Ou a tua sela?
—        Que ideia... de onde você tirou isso?
—        Num ônibus... num trem... na puta que o pariu... apenas responde...
O incenso envolve os dois naquela névoa, como um labirinto de recordações.
Saiu da cama procurando por uma saída, não estava no pequeno apartamento, não lembrava onde estava, procurava um rastro, um perfume, um amor deixado para trás. Espremia os olhos, mas a penumbra continuava forçando o clareamento do dia para fora do quarto — Bom dia, meu amigo.
Sèzar para no meio da passagem, seja o que for esse caminho, reconheceu aquela voz, voltou-se, espremendo os olhos, arreganhando os ouvidos, uma pequena sombra embaraçada parecia elevar-se da cama, durante aquele eclipse da memória, fechou os olhos, contou até dez, lentamente, assim ajudava clarear a mente e os olhos, consertou a respiração apressada, abriu os olhos, lá estava o anão, em pé na cama, a árvore nua, sem disfarces. Sentiu um pequeno e desconcertante pavor, não conseguia lembrar qualquer cerimônia que tenha participado para purificar o corpo. Não encontrava nenhuma motivação oculta para acordar nu com aquele anãozinho preto, na mesma cama. Não podia ser apenas coincidência num sonho, talvez Moriá tenha lhe aplicado à teoria da árvore do esquecimento, Será que eu esqueci que sou um macho? Meu Deus, não fica nada bem, isso tudo, eu sou um macho alfa.
Enquanto procurava desesperado despertar a memória, sua carne e seus ossos despertavam do que parecia ter sido uma noite selvagem. Andou até uma janela — Não dá pra abrir, temos abelhas nessa janela, se você abre as abelhas entram. — o aviso do anão o fez recuar, tem alergia à picada de insetos. Não gosta de picadas e isso o tem salvado, por enquanto. Queria encontrar uma árvore, essa tal de baobá, e caminhar no outro sentido, na sua volta, fazer da árvore do esquecimento a árvore da memória.
Tinha medo da pergunta que precisava fazer, ninguém viria salvar ninguém, não sabia, havia dias, nenhuma notícia da Adelaide, a única com chance de ajudar, Por que acordamos na mesma cama, parecia que caminhos misteriosos me levavam exatamente àquilo que eu procurava fugir.
A campainha da porta explodiu seu aviso estridente. Os dois se olharam, mudos e desconfiados, não iriam atender o chamado da campainha. Outro esbarrão do dedo na campainha, outro chamado, e mais outro, e outro — Meu amigo, vá ver o que se passa.
—        Nem pensar!
—        Os meus trajes não são adequados.
—        E os meus são? Nu em pelo. Além disso, é a casa do anão, o dono recebe as visitas, não é o visitante que se faz de dono.
Outro chamado
—        ¿Nadie va a ver quién está tocando el timbre maldito? — era a moça que Sèzar conheceu apenas com uma coisinha. A rapariga que estava sentada na cama, emergiu dos lençóis enrugados — É o que estamos tentando decidir.
A moça levantou da cama, Sèzar reparou que ela estava sem a coisinha que a tapava toda — Onde você vai?
—        Hasta que la puerta. — ela respondeu como se fosse o ato mais natural do mundo ir até a porta da campainha — Assim, nesses trajes... Maiami... — o anão se deu conta do ridículo da advertência, não havia traje algum, a Maiami, fosse quem fosse, estava pelada. Sem pelos é estar pelada... ela estava pelada. Sèzar e o anão estavam nus. É diferente. A Maiami não era preta, nem negra era, o nome era uma camuflagem, tinha a cor vermelha aborígene, cabia em qualquer lugar das Américas, desde que soubesse o seu lugar.
Aquilo tudo, em parte, diminuiu a necessidade de muitas perguntas, Quem é essa moça, não que isso lhe importasse em demasia, mas era o mínimo que lhe ocorria, à medida que algumas memórias da noite se mostravam fantásticas, descontroladas, ardentes e desencontradas.
Outro chamado.
—        ¡Carajo! Estas personas no se dan por vencidos...
O anão fez gesto de silêncio. A Maiami procurou algo entre os panos da cama — ¡Lo encontré! — enfiou as pernas, uma depois da outra, naquela coisinha e subiu até as virilhas — Pronto, agora vá mocinha.
Ordem dada, ordem obedecida. Saiu do quarto. Ouviram o abrir das fechaduras, depois sussurros e a porta se fechando. Os passos da moça se aproximavam — Voy a hacer café... ¿Quién más quiere?
Os dois continuavam parados no quarto, no mesmo lugar, esperando a resposta para tanta impertinência
—        Quem era? — quis saber o anão
—        ¿Usted no se va a usar? — advertiu que os encantamentos dos espíritos de la Montaña se vão com o amanhecido... e o que foi formoso fica sem propósito — ... erguido como una gota, una disminución... — a moça reconhecia que as cores da noite e a penumbra despiam as máscaras usadas como filtros do sol, os brilhos do abajur escondem, o deus Apolo revela. O anão deixou o sorriso escapar-lhe como a fumaça do cigarro se escapa da boca até desaparecer — O que se passou na porta? Quem era?
—        Dos señoras con muchos vestidos, largos y cerrados, sosteniendo una biblia cada uno.
—        Devagar, devagar, a mocinha mistura um pouco de tudo quando fala muito rápido. Então...
—        No se. — quando ela abriu a porta, as duas fizeram o sinal da cruz, uma ofereceu a bíblia à Maiami porque ela precisava rezar muito. E foram embora.
A moça largou o Livro sob a cama e foi para o banho, o café ficava para depois. O anão parecia se divertir com o constrangimento do amigo, já vestido com sua cueca e meias.

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