Ensaio 16
baitasar
Enquanto o anão de nome Davi procurava
as chaves da casa, entre resmungos e ofensas, pra si mesmo, Sèzar, que já se
esvaziava dos efeitos devastadores da diamba, lançou um olhar curioso
desconfiado à fachada descascada, a casa do seu novo amigo anão. Era possível
perceber que os donos ou inquilinos da casa, com o passar dos anos e usos que fizeram
dela, se preocuparam com a aparência cansada e o desbotamento das paredes, mas
a cada nova pintura, o pintor, fosse quem fosse, não se dava o trabalho de
retirar a tintura antiga, passava tinta nova por cima da velha, e as camadas
descascadas ficavam como anotações do tempo, o velho e o novo que sempre vem, o
mesmo jeito diferente, a casca dura como os anéis de crescimento das árvores.
Hoje, suas cascas de embelezamento estão
descascadas, acabam por exumar o passado, revelando o véu das tintas que
escondia o passado de muitas cores, até a medula dos alicerces. Vida
extraordinária dessa casa que aloja vidas — Achei!
Por cima da túnica de tintas, uma cobertura
azul, por certo, a última tentativa de reencontrar o vigor do passado, sem
muita convicção, os tempos são outros, não são tempos de aspiração sutil dos
domínios profundos dos espíritos, são tempos que exigem a confiança absurda e
cega na devoção à fé — As chaves...
Logo abaixo da epiderme azulada
descolorida e desbotada, se pode distinguir o amarelo. A cor amarela,
possivelmente, se associa há um período de resplendor da casa, brilho,
jovialidade, a alegria da sabedoria, através da razão e da lógica — ...
encontrei as minhas chaves...
A camada seguinte, logo abaixo da
amarela, é vermelha.
O vermelho pode indicar que os moradores estivessem procurando vida
nova, sinalizando reinícios inéditos. Sèzar diminuiu a liberdade dos
pensamentos ao perceber uma pequena mancha de tinta verde, O verde também faz
parte da história destas paredes, pensou, enquanto imaginava as pessoas
procurando a sua segurança e proteção: a liberdade, uma casa com harmonia e
equilíbrio no mato, Mas não começou assim, está desconfiado que lhe falta a
instalação, o tempo da fundação, pega o seu canivete - presente da Adelaide – e
raspa aquela pequena amostra de tinta verde, não estava errado, viu surgir a
cor laranja, que, por certo, deu bênçãos à vida, confiança e coragem, em tempos
autoritários, esmagadores, desumanos — Vamos entrar... encontrou alguma coisa?
— Apenas
imaginando o passado das coisas. — aquelas paredes descascadas foram fundantes
da tintometria, ciência inventada
pelos resquícios da diamba no Sèzar, estimava a vida e a morte, a compra e a
venda daquelas paredes, como as impressões digitais das suas cascas, vestígios
das vidas sumidas, descascadas até o osso.
O anão enfiou a primeira chave na
fechadura que fica na altura dos joelhos, depois ergueu-se na ponta dos pés e
destravou a do meio — Pronto, meu amigo, aqui não tenho jardins, nem recuos, o
amigo está entrando na casa erguida desde a escravidão dos pretos – era como
ele imaginava pela quantidade de pele descascada
— O
primeiro morador foi um capitão-do-mato, Nêgo Bagão, um preto liberto que vivia
de caçar os pretos que sonhavam com a liberdade, era emprego do gosto dos brancos
que tinham comprado os braços e as pernas dos pretos desembarcados, mas não
conseguiam esfolar as assombrações das saudades, os pretos escravizados não
deixavam das vidas de antes das correntes: os brancos tinham medo do incêndio
que o preto fujão podia acender.
— O
preto caçando o preto desertor.
— Ele
sabia da sua importância de serventia para os brancos, nem tinha ilusão de boa
vizinhança com os escravizados. Foi o começo do trágico serviço de pulícia que
fez o preto emprisionar o preto, o disparo de estreia de pulícia na escravidão,
que não teve mais fim.
Desde que o dinheiro foi inventado,
investimento feito não pode virar prejuízo — Esse capitão-do-mato... como é
mesmo o nome...
— Nêgo
Bagão.
— Isso...
esse Nêgo Bagão deve ter se tornado figura das mais importantes: cuidar das
seguranças dos brancos no trato com os fujões.
— Fazia
juízo do fato e o decidido tava decidido. Foi um jeito de sobreviver com algum lucro.
— E
o prejuízo?
— O
jeito era entregar à desgraça alguns pretos e não perder os dedos. Afinal, para
comprar mais anéis, bastava a chibata no lombo dos pretos.
— Então,
foi sujeito de fama.
— A
reputação pública de caçador do Nêgo Bagão vinha do serviço bem executado, conhecia
como poucos a cabeça do fujão, desvendava os atalhos do mato.
— Quantas
histórias aqui dentro...
— E
lá fora... meu amigo, a notoriedade do Nêgo Bagão durou até a consciência negra
enfrentar o patrão.
O visitador branco fez uma última
olhação, antes de entrar nas suas entranhas históricas, ficou com a impressão
desconfiada, um sexto sentido feminino, sensibilidade, resquícios da diamba, ou
mania de procurar ver o que não aparece porque desapareceu, que a rua se juntou
ao calçamento da calçada, quando a casa tinha a cor vermelha, depois, a calçada
se grudou na casa, acabando com os recuos de jardins, no tempo da casa amarela.
A rua e a calçada se alargavam sem muitas perguntas, comeram o jardim de mato,
encostaram na única porta e janela de vista com a frente — É uma porta?
— O
quê?
— Ali,
ao lado, enterrada até a metade...
— A
entrada da senzala pra preto fujão que ficava cadeiado no porão, até acalmar.
Tá sem uso faz um bom tempo... o portão do inferno. Mas, meu amigo, vamos
entrar.
O bem-estar invisível da diamba,
sensação alucinógena da iluminação, havia sumido, Sèzar voltava ao mundo comum
da vida e da morte, e, por um breve instante, soube que estava entrando numa
armadilha — Preta! Chegamos, vista alguma coisinha!
Com cada um é um jeito diferente, o
Sèzar, quando evapora toda a diamba, acredita que está sendo perseguido. Fica
nervoso, desconfiado, Merda, deve ser algum código: chegou mais um otário; saia
de um pensamento para outro de um jeito letárgico, Estou encarcerado!
Um cabeludo desgovernado, um cometa em
rota de colisão, perdido dos beijos e mãos da sua Adelaide – engraçada e triste
essa mania das pessoas ficarem donas umas das outras - enrolado na fumaça da
diamba. Sentou no chão e chorou, Eu paro, meu amor, a diamba não me domina,
apenas pra relaxar... pra escrever.
O anão fechou a porta, uma penumbra
cinzenta se enrolou nos pés do Sèzar. Um túnel. Apertou os olhos com força,
baixou a cortina dos olhos se espremendo, assim acha que enxerga com mais
clareza no escuro — Levante-se, meu amigo.
O anão tinha a voz de um anjo, mas não
podia ser um anjo, nunca havia imaginado um anjo anão, nunca haviam imaginado um
anjo preto. Nas aulas do catequizador, tempo anterior da primeira comunhão -
estudo dos pré-requisitos da comunhão, abandonou os estudos assim que recebeu o
boletim de aprovação: a hóstia, mas não pode deixar de visitas periódicas em
casamentos, falecimentos, batizados... momentos de reunião familiar – jamais foi
cogitado pelo catequista que anões e pretos fizessem parte do mundo angelical
— Preta!
Venha cá, dê um jeito de cumprimentar o meu amigo...
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Leia também:
Ensaio 15 - Sarau do anão
Ensaio 17 - Sarau na névoa sinuosa
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