Ensaio 14
baitasar
Sèzar não está longe de alcançar o
desequilíbrio entre os seus pensamentos e as emoções do corpo. Ainda não chegou
lá, o lugar dos arrependimentos, a estação das reclamações, a obstinação pelo
conflito, entre o que sente e o que não quer, o martírio, entre saber o que
quer e não querer saber, o mau gosto dos tolos: viver a própria vida como se
fosse a vida dos outros. Mas logo chega o limbo purgatório, um lugar onde se
fica congelado, esperando derreter, um picolé amargo, e os tolos vão descobrir
que só vai restar o palito de pau, o sabichão olha, examina, lambe, mais uma
vez, até que o jogam no lixo. Tudo vai para o lixo. Mas, enfim, ele são muitos,
eles é um só
— Adelaide,
queria que fosse mais fácil, como acertar a concordância entre o verbo e o
sujeito, mas, para mim, é pior que acertar a posição da vírgula na frase, fica
sem sentido ou a parte fica separada de tudo, ou, sei lá, é como se esse tudo
se permitisse descontinuar da jangada de pedra. A jangada firme e ancorada e o
continente à deriva... — o amor se revira na cama, aprofundada num sonho que
não sabe explicar, que só sabe sonhar. A luz tênue do abajur – parece óbvio que
a luz do abajur seja tênue, afinal, essa é o seu papel, trazer dos mistérios da
escuridão as quase sombras daqueles corpos, mas às vezes o óbvio precisa aparecer descrito – ele sentado na cama, os lençóis
enrugados, aquela cor de azul, escuro e forte, que os abraça, com a mesma
intensidade que acolhe a via láctea. Adelaide deitada de costas, nua, como
sempre estão naquele pequeno apartamento, uma das pernas estendida sobre a
cama, a outra dobrada, parecendo de propósito, para impedir a aparição folgada
dos pelos, uma das mãos timidamente sobre um dos seios, os mamilos apontados para
o alto, o rosto sereno, a respiração serena, olha as curvas dos quadris, a
maciez da pele. Ela se revira, aprofundada num sonho que ele não sabe explicar,
parece sorrir, só sabe sonhar, encosta a testa na perna do Sézar, murmura seus
sonhos, mexe os lábios para que os encantamentos que carrega possam ter as asas
de voar, um pequeno fluido lhe escapa da boca carnuda, vermelha — Meu amor,
você precisa voltar a tricotar... — ele não lhe presta atenção aos murmúrios,
sempre enfiado no redemoinho dos próprios olhos, sem pedir socorro, afundado no
silêncio, até que o sono o vence na ilusão, e dorme dentro do sonho, sempre
perdeu.
Acorda com o gemido dos trilhos,
Adelaide já lhe escapou dos braços, da cama, da kitnet, deixando o seu perfume
de mulher, fecha os olhos e a vê caminhando leve, na ponta dos pés, rasgando o
nanquim triste, assombreado, nua, os cabelos em desordem, a boca carnuda
sorrindo, as mãos juntando as roupas da fuga. Combinaram que chegam e saem com
o mesmo fardamento. Os serviços e enfeites são providenciados nas casas de
verdade. Aqui, vivem o imaginismo do útero protegido, a fantástica casa do sexo.
A indelicadeza da perfeição é Adelaide nua, na porta, murmurando, não consegue
ver mais que aquela quase sombra mexendo os lábios, escapando, esfrega os
olhos, não entende o que não vê, não pensa o que viu, nem consegue se mexer,
está amarrado, arrancaram sua garganta, por isso não tem voz, não fala do seu
amor, não confessa — Quero uma vida de verdade! — a moça é agarrada pela mão do
gigante que arrancou sua garganta e puxada para fora. Sèzar não grita, continua
amarrado sobre a cama, um dos seus quatro braços aperta a garganta arrancada,
embrulhada, até que o sono vence o mau sonho, e dorme dentro do pesadelo, nunca
venceu.
Acorda com o amanhecimento que furam as
frestas da janela e marcam o minúsculo apartamento com as cores do dia. O galo
continua seus gemidos sobre os trilhos. Sèzar precisa ser rápido, está
atrasado. Adelaide dorme, está deitada de bruços, o rosto parece que lhe sorri,
aprende que ela não se mostra apenas com os olhos, os lábios, ela sorri com os
pés, as mãos — Eu te amo... — escreve um bilhete que deixa sobre a mesa. Sai suavemente,
sem gritos, sem gestos. Na garagem, a moto espera enquanto junta os cabelos
como se fosse um rabo, coloca o capacete, um pequeno papel dobrado cai da
viseira: “Bom dia! Meu amor, a tardinha vou estar no círculo do livro, vai até
lá... você precisa voltar ao seu tricô... bjs, te amo!”
Dá partida na moto. Ajeita o capacete,
as luvas, fecha a jaqueta de couro, regula os joelhos, aperta com vigor a
embreagem, a ponta da bota de couro pressiona delicadamente o pedal das
marchas. E, ao mesmo tempo, acelera com a mão direita, solta suavemente o
manete da embreagem com a mão esquerda. Homem e máquina em movimento, um só
cérebro, um só coração acelerando, uma vontade: sentir a liberdade da
velocidade.
Um, dois, talvez três dias se passaram —
Terminei! — não foi um grito, nem um aviso, um pontiagudo orgasmo, talvez, um
descarrego daquela aflição de viver a vida que não é sua, mas sua criatura — Adelaide,
terminei! — foi assim que ele entrou no pequeno apartamento vazio de qualquer
cheiro. Ela não estava, mas não demora. Joga aquele ajuntamento de folhas
manuscritas à lápis, no chão. Só têm a cama — Só temos a cama, Sèzar...
— E
não chega?
— Não!
— foi a primeira vez que Adelaide saiu e o deixou na cama, desconfortável,
humilhado, sua nudez inútil, ridícula, mole. O instinto, naquela penumbra
solitária, o fez usar a mão como um tapa sexo — Sèzar, você está mofando. —
saiu sem bater a porta, ele ficou como um quase homem. Os homens que são quase
homens entendem um pouquinho de tudo, outro pouquinho de nada. Olham uma vagina
e acham que já viram quase todas, entram em uma vagina com a cerimônia da
rainha da Inglaterra, esperando o toque das trombetas e os agradecimentos, estão
quase sempre com medo das vaias e das comparações. Outro tabu dos quase homens
é o tamanho, Sèzar não gosta muito do assunto — Tamanho não é documento... — os
quase homens não gostam de ser confundidos com algum viado, pior se for
confundido com uma bichinha. Outro dia a Júlia, namorada da Moriá, comentou que
conheceu o Sèzar no círculo do livro — Moriá, acho que ele é gay. — a namorada
comentou com a Adelaide que comentou com o próprio — Vou mostrar quem é gay...
— já estava pronto, a arma na mão para provar que era homem.
Seu orgulho de quase homem não lhe
deixava acreditar que Adelaide não iria voltar — Ela vai voltar. — decidiu que
ficaria esperando. Até que o dia, já cansado, se deixou tomar pela noite — Ela
não vem mais, hoje... — alinhou os cabelos num rabo e amarrou tudo num rabicó
de pano, olhou para a penumbra vasculhando na memória o que havia deixado para
trás.
Voltou para sua casa de verdade:
geladeira, mesas e cadeiras, fogão, televisão, roupas, cheiro de comida, frutas,
cerveja, vizinhos — O que ela quer, meu Deus? — ajeitou a poltrona, os papéis,
o lápis, foi até a geladeira e voltou com uma cerveja. Sentou na poltrona, olho
para os papéis — Nem um capítulo... acabou. — conseguiu acabar o seu primeiro
romance, a sua primeira obra-prima. Ele sabia, tinha certeza, aquela era sua obra
capital. Nunca conseguiria escrever melhor, não tinha como se melhorar, seria
um escritor de um único livro, definitivo, pelo menos, pra ele — Vou mostrar
pra aquela sapatona quem é gay...
— Terminei!
— entrou pelo pequeno kitnet, Adelaide não estava, não importa, iria esperar.
Tirou os sapatos, as meias, abriu a calça e deixou cair, só então, tirou a
camisa, depois o relógio, os óculos. Ficaria esperando como foi combinado: na
penumbra, a nudez, em silêncio. Dormiu e acordou, dormiu e acordou, até que se
convenceu — Hoje, não vem mais. — colocou o manuscrito embaixo do braço,
precisava tratar da própria vida. Saiu sem olhar para trás.
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