sábado, 8 de junho de 2013

Ele não é bicho, neinho, é meu fio

Ensaio 5B
baitasar
O tiuzin João saiu da intimidade do casarão. Desapareceu. Nenhuma palavra. Não deixou nenhum aclaramento. Ficou a falta da explicação para o sumiço. Sobraram suspeitas e suposições. No meu jeito preocupado de ver, o tiuzin não ficou conformado com o dinheiro cravado nas pedras do casarão, tinha e não tinha um dinheiro que não lhe existia. Não podia vender o casarão no contrário da vontade dos manos. Ele não existia, tinha e não tinha um nome, ninguém lhe via ou sabia. Nunca quis o Canela Preta, preferia as ruas.
Fui o último que viu o tiuzin naquele final de tarde, a última vez vestido de cavalo. Embaixo do céu vermelho ele foi atingido pelo fogo, arrancou o casco da tartaruga, largou a carroça e os arreios jogados no chão, saltou a cerca do curral, parecia uma lebre. Agora, ele era uma lebre. Continuou caminhando, não parou mais. O andarilho. Entre as paredes do casarão surgiu o primeiro comentário conhecido sobre aquela demência, Se é pra sê desse jeito destrambelhado qui fosse bem longe.
Maltrapilho, sujo, mijando e caminhando, não comendo e caminhando, não dormindo e caminhando, desprezado. Um errante com andadura de marcha. Anônimo, abandonado da sua ambição de homem, mais um, entre tantos outros. Sentia pena de mim mesmo, sentia raiva do tiuzin: um homem daquele tamanho se desperdiçando
—        O senhor quis vender a memória da nossa gente... da família...
—        Bosta de lembrança qui não tem serventia. — também fui o último que ouviu a voz do tiuzin João endereçada na família, a suposição mais aceita para o mutismo do tiuzin com os parente: voto de mudez até o casarão ser vendido, Depois de vendê... depois de vendê...
O tiuzin não tem uma organização convencional, não sabe onde caminha, é como enxerga o mundo: uma estrada, uma rua, um beco sem saída. O caminho não está por dentro do tiuzin
—        Moleque, deus não existe, e se acaso existi, ele não tem cuidado de cuidá dos preto, ele tem o padre pra cuidá pra ele... e padre não é a mesma coisa.
—        Deus não precisa de cuidado, Ele cuida da vida de todo mundo.
—        De um qui outro... até pode sê.
Fiz o sinal da cruz e resmunguei, pedi aos espíritos dos mais velhos intercedência pelo tiuzin, Neinho, deixa o João, ele ta sincero no desejo de andá sem preocupação de religião. Não ta com interesse em ninguém, não tem plano de ajudá nem atrapalhá
—        Ele perdeu a esperança, avó?
—        Ta sem um lugá de chegada. Não vê futuro. Escolheu vivê separado do seu prestígio de cavalgadura. Não qué esse caminho de bicho.
Entendi a avó: a mãe entende o filho que o mundo não aprende. O tiuzin não quer mais se ajustar aos arreios da carroça que recolhe garrafa vazia, ferro velho, junta osso e vidro quebrado, Ele não é bicho, neinho, é meu fio
—        Mas ele quer vender o casarão...
—        E daí?
—        A avó viveu no casarão, aqui tem as histórias dos preto...
—        Bobagem, moleque, os preto tem qui encontrá jeito de vivê melhó, se os branco qué pagá pelo casarão, e as memória qui tem dentro, vai tê qui trazê muito dinheiro. Si fô muito dinheiro, ocês leva as lembrança pra outro lugá.
—        A avó acha que é preciso vender? — antes da resposta, o palheiro com o fumo de corda é puxado num suspiro firme até que a brasa voltava com jeito de acendida, depois ficava entretida, saboreando o próprio entupimento daquela fumação. A avó é tão esperta para alcançar o conhecimento da nação dos preto, e tão ignorante com outras coisas
—        Se fô preciso... pode vendê.
—        Mas avó e todas as histórias que tão aqui?
—        Não vejo mistério nem segredo, é só o compradô aceitá os dois preço.
—        Os dois preços? Quê dois preços é esse?
O fumo da corda queima mais um pouco. Olho a avó, quero vê se ela brinca com essa ideia fixa do tiuzin João, mas não ta com jeito de brincadeira, não ta com jeito de tristeza, a avó sabe o tamanho do valor dele
—        São duas casas, essa qui ocê vê com as vista da cara, a outra, ocê só vê se fechá as vista e enchê o coração com as história do espírito dos mais velho. As história dos mais velho continua aqui. O compradô precisa pagá pelo serviço de discontá essas história, esvaziá o casarão, fecha o poço da nêga Laetitia.
—        Não tem comprador pra comprar o que não vê.
—        Neinho, não é dinheiro o problema do compradô, é as história qui ele conhece de ouvi falá, aqui e ali, não credita, mas não descredita. Não qué perdê dinheiro de pagá pra abri as corrente. Pagô pra apertá as corrente nas canela preta, mais não qué pagá pra soltá o Canela Preta das corrente. Se querê muito o casarão, vai tê qui indenizá as tortura e pagá pra abri as corrente dos mais velho qui continua agarrada nos mais novo.
A conversa resmungada com a avó nunca me deixa perder a confiança nas palavras. Tinha certeza que era preciso resistir a tentação de vender, mas era o caso de esperar a avó aclarar as ideias, depois voltava no assunto. O que se vende fica na mercê da vontade do comprador, se ele põe tudo abaixo, o casarão acaba, nunca mais existe. Isso não tinha que acontecer.
Essa vontade do tiuzin vender tem sua razão porque ele perdeu a confiança nele mesmo. Ficou doente de vagabundear pelo mundo, sem paradeiro, abandonou o casarão por qualquer lugar, e nada aprendia. Tinha vez que se postava na encruzilhada por onde passavam os que iam ou vinham. Pedia os ebós para Oxalá. Se algum passante perguntava sobre o seu trabalho, respondia, To sempre no posto guardando a casa de Oxalá. Carregava um ogó, Pra que serve esse porrete, perguntavam os que passavam na encruzilhada
—        É pra afastá gente ruim qui tentá enganá a vigilância.
Fez da encruzilhada a sua casa, agora tinha a fama e o seu lugar, sua casa
—        Acho qui agora fico rico, ninguém passa na encruzilhada sem pagá alguma coisa.
Mas o tiuzin não tirou de si a desesperante ansiedade pelo andar. Nesse tempo da sua andadura sem parar ou vigilância na encruzilhada, eu terminei meus estudos do segundo grau e escapei do quartel. A tia Vanda achava que precisava festejar as duas coisas, o diploma do colégio e o corte na vida de milico, Não quero sabê dessa conversa de arma e bala, nada é tão ruim qui não tenha jeito de melhoria.
O casarão não foi vendido, não tinha comprador para as duas casas. Foi o tempo das coisas irem se acomodando enquanto as águas voltavam para dentro das margens do casarão Canela Preta.
O que parecia sem jeito de melhorar era o tiuzin, já tinha dormido no zadrez. A fama dele ia de mau para pior. Diziam dele: é um tranca ruas. As tias não pareciam encontrar preparado de socorro para o tiuzinho andarilho, um jeito, um remédio, uma palavra, uma opinião, uma surra que pudesse tirar o mais velho acampado no corpo e no pensamento do tiuzin, Moleque, irremediável só a morte... há de tê um jeito.
Às vezes, não tem uma reabilitação. Um desastre. O primeiro amor, meu primeiro desconforto. A professora da geografia quis mudar o meu tamanho quando eu disse da vontade do meu coração, os atrevimentos das minhas mãos, depois que ela falou, Você precisa crescer, achei que poderia ter ficado calada, Você precisa crescer, ocê precisa crescê, Quem carecia de crescê era ela, fioneto.
Não conheço nenhum caso do anão que cresceu mais que um anão. Não tem remédio, não. Foi o jeito de me dizer, Moleque, vê se enxerga o teu lugar de ficar. Foi quando desisti da geografia, descobri que existem pessoas que não conseguem viver sem torturar as outras pessoas. O meu tamanho não precisa ter solução, já está resolvido, Avó, sou do jeito que eu quero, Esse é meu fioneto.
Nada é tão ruim que não tenha jeito de melhoria, o tiuzin Batata, depois que se firmou no cargo de motorista da Viação Anônima, chegou espalhando alegria
—        Consegui emprego de cobradô das passagens pro moleque, ele já tem a idade e o conhecimento pra trabalhá.
—        Não sei não, Batata. A mãezinha qué vê o moleque com diploma de doutô.
—        Trabalhá não faz estorvá, o qui pode impedí a conclusão do diploma é a falta do dinheiro. — o tiuzin tava na sua razão
—        Eu consigo, tia Vanda. Faço os dois: estudar e trabalhar.
—        Eu sei qui ocê consegue, mais a vontade da mãezinha não é essa...
O tiuzin Batata levantou em silêncio, a cara era de poucos amigos, caminhou pela cozinha, dava voltas — O moleque precisa de sabê trabalhá... já tem idade de homem.
—        Mais não tem o tamanho.
Olhei espantado, A tia, também?
O amor de muito cuidado pode provocar alergia, arrancar as medidas da confiança, tornar hábito o medo, transformar em tragédias as regras simples, um caldeirão fervente de coisa ruim
—        Eu vou trabalhar com o tiuzin! — a opinião geral era que eu estava condenado a não chegar ao tamanho de um homem. Um personagem esquisito, desusado, ocultado de maneira modesta até morrer. Sem reabilitação. Um desastre preto. Anão não cresce, é o amálgama das preces que não deram certo com os crioulos
—        Mais meu fio sobrinho...
—        Tia, já tenho decisão tomada. Assino contrato de temporário; se der no jeito, fico no carro do tiuzin, se não der no jeito, tudo bem. Começo já, onde for mandado.
—        E os estudo? Ocê carece de escutá a avó... — tinha desconfiança que a escola não foi feita para mim ou não estava pronta para os netos da avó —  Mais ocê, meu sobrinho, daqui de fora, não vai fazê mudá... daqui de fora, ocê só vai fazê é olhá.

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