Ensaio 5B
baitasar
O
tiuzin João saiu da intimidade do casarão. Desapareceu. Nenhuma palavra. Não
deixou nenhum aclaramento. Ficou a falta da explicação para o sumiço. Sobraram
suspeitas e suposições. No meu jeito preocupado de ver, o tiuzin não ficou
conformado com o dinheiro cravado nas pedras do casarão, tinha e não tinha um
dinheiro que não lhe existia. Não podia vender o casarão no contrário da
vontade dos manos. Ele não existia, tinha e não tinha um nome, ninguém lhe via
ou sabia. Nunca quis o Canela Preta, preferia as ruas.
Fui
o último que viu o tiuzin naquele final de tarde, a última vez vestido de
cavalo. Embaixo do céu vermelho ele foi atingido pelo fogo, arrancou o casco da
tartaruga, largou a carroça e os arreios jogados no chão, saltou a cerca do
curral, parecia uma lebre. Agora, ele era uma lebre. Continuou caminhando, não
parou mais. O andarilho. Entre as paredes do casarão surgiu o primeiro
comentário conhecido sobre aquela demência, Se é pra sê desse jeito
destrambelhado qui fosse bem longe.
Maltrapilho,
sujo, mijando e caminhando, não comendo e caminhando, não dormindo e
caminhando, desprezado. Um errante com andadura de marcha. Anônimo, abandonado
da sua ambição de homem, mais um, entre tantos outros. Sentia pena de mim
mesmo, sentia raiva do tiuzin: um homem daquele tamanho se desperdiçando
— O senhor quis vender a memória da nossa
gente... da família...
— Bosta de lembrança qui não tem
serventia. — também fui o último que ouviu a voz do tiuzin João endereçada na
família, a suposição mais aceita para o mutismo do tiuzin com os parente: voto
de mudez até o casarão ser vendido, Depois de vendê... depois de vendê...
O
tiuzin não tem uma organização convencional, não sabe onde caminha, é como
enxerga o mundo: uma estrada, uma rua, um beco sem saída. O caminho não está
por dentro do tiuzin
— Moleque, deus não existe, e se acaso
existi, ele não tem cuidado de cuidá dos preto, ele tem o padre pra cuidá pra ele...
e padre não é a mesma coisa.
— Deus não precisa de cuidado, Ele cuida
da vida de todo mundo.
— De um qui outro... até pode sê.
Fiz
o sinal da cruz e resmunguei, pedi aos espíritos dos mais velhos intercedência
pelo tiuzin, Neinho, deixa o João, ele ta sincero no desejo de andá sem
preocupação de religião. Não ta com interesse em ninguém, não tem plano de
ajudá nem atrapalhá
— Ele perdeu a esperança, avó?
— Ta sem um lugá de chegada. Não vê
futuro. Escolheu vivê separado do seu prestígio de cavalgadura. Não qué esse
caminho de bicho.
Entendi
a avó: a mãe entende o filho que o mundo não aprende. O tiuzin não quer mais se
ajustar aos arreios da carroça que recolhe garrafa vazia, ferro velho, junta
osso e vidro quebrado, Ele não é bicho, neinho, é meu fio
— Mas ele quer vender o casarão...
— E daí?
— A avó viveu no casarão, aqui tem as
histórias dos preto...
— Bobagem, moleque, os preto tem qui
encontrá jeito de vivê melhó, se os branco qué pagá pelo casarão, e as memória
qui tem dentro, vai tê qui trazê muito dinheiro. Si fô muito dinheiro, ocês
leva as lembrança pra outro lugá.
— A avó acha que é preciso vender? — antes
da resposta, o palheiro com o fumo de corda é puxado num suspiro firme até que
a brasa voltava com jeito de acendida, depois ficava entretida, saboreando o
próprio entupimento daquela fumação. A avó é tão esperta para alcançar o
conhecimento da nação dos preto, e tão ignorante com outras coisas
— Se fô preciso... pode vendê.
— Mas avó e todas as histórias que tão
aqui?
— Não vejo mistério nem segredo, é só o
compradô aceitá os dois preço.
— Os dois preços? Quê dois preços é esse?
O
fumo da corda queima mais um pouco. Olho a avó, quero vê se ela brinca com essa
ideia fixa do tiuzin João, mas não ta com jeito de brincadeira, não ta com
jeito de tristeza, a avó sabe o tamanho do valor dele
— São duas casas, essa qui ocê vê com as
vista da cara, a outra, ocê só vê se fechá as vista e enchê o coração com as
história do espírito dos mais velho. As história dos mais velho continua aqui.
O compradô precisa pagá pelo serviço de discontá essas história, esvaziá o
casarão, fecha o poço da nêga Laetitia.
— Não tem comprador pra comprar o que não
vê.
— Neinho, não é dinheiro o problema do
compradô, é as história qui ele conhece de ouvi falá, aqui e ali, não credita,
mas não descredita. Não qué perdê dinheiro de pagá pra abri as corrente. Pagô
pra apertá as corrente nas canela preta, mais não qué pagá pra soltá o Canela
Preta das corrente. Se querê muito o casarão, vai tê qui indenizá as tortura e
pagá pra abri as corrente dos mais velho qui continua agarrada nos mais novo.
A
conversa resmungada com a avó nunca me deixa perder a confiança nas palavras.
Tinha certeza que era preciso resistir a tentação de vender, mas era o caso de
esperar a avó aclarar as ideias, depois voltava no assunto. O que se vende fica
na mercê da vontade do comprador, se ele põe tudo abaixo, o casarão acaba,
nunca mais existe. Isso não tinha que acontecer.
Essa
vontade do tiuzin vender tem sua razão porque ele perdeu a confiança nele
mesmo. Ficou doente de vagabundear pelo mundo, sem paradeiro, abandonou o
casarão por qualquer lugar, e nada aprendia. Tinha vez que se postava na
encruzilhada por onde passavam os que iam ou vinham. Pedia os ebós para Oxalá.
Se algum passante perguntava sobre o seu trabalho, respondia, To sempre no
posto guardando a casa de Oxalá. Carregava um ogó, Pra que serve esse porrete,
perguntavam os que passavam na encruzilhada
— É pra afastá gente ruim qui tentá enganá
a vigilância.
Fez
da encruzilhada a sua casa, agora tinha a fama e o seu lugar, sua casa
— Acho qui agora fico rico, ninguém passa
na encruzilhada sem pagá alguma coisa.
Mas
o tiuzin não tirou de si a desesperante ansiedade pelo andar. Nesse tempo da
sua andadura sem parar ou vigilância na encruzilhada, eu terminei meus estudos
do segundo grau e escapei do quartel. A tia Vanda achava que precisava festejar
as duas coisas, o diploma do colégio e o corte na vida de milico, Não quero
sabê dessa conversa de arma e bala, nada é tão ruim qui não tenha jeito de
melhoria.
O
casarão não foi vendido, não tinha comprador para as duas casas. Foi o tempo das
coisas irem se acomodando enquanto as águas voltavam para dentro das margens do
casarão Canela Preta.
O
que parecia sem jeito de melhorar era o tiuzin, já tinha dormido no zadrez. A
fama dele ia de mau para pior. Diziam dele: é um tranca ruas. As tias não
pareciam encontrar preparado de socorro para o tiuzinho andarilho, um jeito, um
remédio, uma palavra, uma opinião, uma surra que pudesse tirar o mais velho
acampado no corpo e no pensamento do tiuzin, Moleque, irremediável só a
morte... há de tê um jeito.
Às
vezes, não tem uma reabilitação. Um desastre. O primeiro amor, meu primeiro
desconforto. A professora da geografia quis mudar o meu tamanho quando eu disse
da vontade do meu coração, os atrevimentos das minhas mãos, depois que ela
falou, Você precisa crescer, achei que poderia ter ficado calada, Você precisa
crescer, ocê precisa crescê, Quem carecia de crescê era ela, fioneto.
Não
conheço nenhum caso do anão que cresceu mais que um anão. Não tem remédio, não.
Foi o jeito de me dizer, Moleque, vê se enxerga o teu lugar de ficar. Foi
quando desisti da geografia, descobri que existem pessoas que não conseguem
viver sem torturar as outras pessoas. O meu tamanho não precisa ter solução, já
está resolvido, Avó, sou do jeito que eu quero, Esse é meu fioneto.
Nada
é tão ruim que não tenha jeito de melhoria, o tiuzin Batata, depois que se
firmou no cargo de motorista da Viação Anônima, chegou espalhando alegria
— Consegui emprego de cobradô das
passagens pro moleque, ele já tem a idade e o conhecimento pra trabalhá.
— Não sei não, Batata. A mãezinha qué vê o
moleque com diploma de doutô.
— Trabalhá não faz estorvá, o qui pode
impedí a conclusão do diploma é a falta do dinheiro. — o tiuzin tava na sua
razão
— Eu consigo, tia Vanda. Faço os dois:
estudar e trabalhar.
— Eu sei qui ocê consegue, mais a vontade
da mãezinha não é essa...
O
tiuzin Batata levantou em silêncio, a cara era de poucos amigos, caminhou pela
cozinha, dava voltas — O moleque precisa de sabê trabalhá... já tem idade de
homem.
— Mais não tem o tamanho.
Olhei
espantado, A tia, também?
O
amor de muito cuidado pode provocar alergia, arrancar as medidas da confiança,
tornar hábito o medo, transformar em tragédias as regras simples, um caldeirão
fervente de coisa ruim
— Eu vou trabalhar com o tiuzin! — a
opinião geral era que eu estava condenado a não chegar ao tamanho de um homem.
Um personagem esquisito, desusado, ocultado de maneira modesta até morrer. Sem
reabilitação. Um desastre preto. Anão não cresce, é o amálgama das preces que
não deram certo com os crioulos
— Mais meu fio sobrinho...
— Tia, já tenho decisão tomada. Assino
contrato de temporário; se der no jeito, fico no carro do tiuzin, se não der no
jeito, tudo bem. Começo já, onde for mandado.
— E os estudo? Ocê carece de escutá a
avó... — tinha desconfiança que a escola não foi feita para mim ou não
estava pronta para os netos da avó — Mais ocê, meu sobrinho, daqui de fora, não
vai fazê mudá... daqui de fora, ocê só vai fazê é olhá.
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