sábado, 22 de junho de 2013

Neinho, fazê o desamô é uma escolha... odiá é um gosto

Ensaio 7B

baitasar

Desgraça pouca é bobagem, basta uma bem pequena para arrancar o bem-estar do seu conforto, e fazer o sonho virar pesadelo, o povo emborcar na esquina como uma turba de linchamento, tão viva como a morte carregando flores, as mãos perfumadas com o sangue dos gritos, o castelo das cartas ruindo com o hálito do assopro, a hesitação convertendo as certezas, assim, quando a palavra some entre os grunhidos, furiosos e tempestuosos, a vida que se agitou com ruído desinquieto ganha a força da correnteza estúpida. Parece que é anônima, finge que revela, jura que faz denúncias, mas odeia as vidas que não são vidas, vidas escorrendo seu sem destino do ralo até o esgoto, não são pouca bobagem, são o adubo que floresce em lindas flores, em outros jardins com vida colorida que parece vida. Vidas desiguais da vida foram desistidas de compartilhar pão e amor, desde a meninice. Até que descubro que a não vida não tem o rosto que é o seu, tem o rosto que é o meu, Neinho, ocê ta com medo do quê, Medo dos gritos, avó, Bobagem, o silêncio não qué dizê qui tudo ta bão, pode querê dizê qui tudo ta morto, Quando isso termina, Ninguém sabe, neinho, nem os espírito tão sossegado, Depois das eleições, Nem depois, se ganhá quem tem qui ganhá.

Nestas duas semanas da reserva, João Torto do 69 e eu, recém-vindo ao conjunto homem-máquina, fizemos todas as rotas da Anônima. Ônibus velhos quebram fácil, pelo menos, mais vezes retornam das oficinas, não cumprem seus horários. Nossa missão: recolher os passageiros, finalizar o percurso e, se necessário, fazer as viagens de ida e volta do conjunto avariado. Os titulares da reserva. Os estágios da desconfiança e insatisfação com a Anônima aumentando a cada avaria.

O 69 era o décimo segundo jogador.

Um emprego sem maiores dificuldades, pelo menos, até essa viagem: cobrador. Sentado. Contando. Olhando. Conversando. Sem arrependimentos. O banco do 69 foi feito para mim. Faltava alguma coisa, um pequeno detalhe: sair da reserva. João Torto do 69 e eu com uma rota fixa. Um casamento. Filhos. Mulheres. Homens.

O João Torto já teve percurso de motorista titular, o nome cravado no quadro do horário. O desvio dele foi causo parecido com o tiuzin Jorge. Jogatina. Pediu emprestado, não pagou. Foi quando o largador passou o seu caso para o setor da disciplina na Anônima. Os enfreadores se reuniram com o João na sala fechada da correição. Não se sabe com certeza, o que aconteceu lá dentro, o João nunca quis falar, mas parece que levou uns tapas na cara. O sovaco da ditadura com suas práticas amenas. Faroeste. Os índios selvagens em extinção. O patrão manda além do emprego. Saiu dali, para a reserva indígena, longe dos brancos e do banco de horários. Nem a reserva dos índios. Foi enfiado na empresa de mineração do patrão. Anônima.

Mas como o João Torto tem protetor forte, o largador, para quem o Torto devia da jogatina, morreu de atropelo — Meu fioneto, sempre se tem o que recorrê. — é isso avó, o sujeito trancando o caminho dos outros precisa ter reforço de força forte para enfrentar o vigor do exército contrário. O largador antigo não teve ajuda atlética, se perdeu da vida.

O novo largador começou trazendo o João Torto, aos poucos, sentava no banco dos reservas, vez que outra, saia fazendo socorro. Foi quando entrei como cobrador das passagens do 69. Logo, passamos ao número um da reserva, o primeiro time a ser chamado, o mais valente, o mais forte, o mais rápido, a esmola do patrão para os outros.

Eu já me sentia quase titular. O João torto amansava minha euforia

—        Calma, moleque. A mão que dá é a mesma que tira.

Retruquei que só tinha preocupação com o cacete carregado deitado, dormindo embaixo do banco do João, aquilo mais se parecia com alguma marreta

—        Não é nada, Batatinha, apenas uma cautela de resguardo, uma maneira de conquistar corações e mentes.

—        Já usou?

—        Nunca foi preciso desembalar do pacote.

—        Assim... fique.

—        Amém.

O humor do João Torto estava de volta, era o comentário na garagem.

Queria que a vocação da tia Vanda de achar graça em tudo tivesse um jeito qualquer de voltar, na feição que parece havia voltado no Torto. Aquele jeitão sisudo não lhe pertencia. Até o tiuzin Manoel, que muito pouco vinha no casarão, tinha feito anotação do novo feitio da irmã

—        O qui se dá com a Vanda?

—        Desembestou-se... — tão de pronto respondi mais depressa arrependi

—        Bobagem da nêga, qué se colocá no lugá da mãe. A força não é boa conselheira, o tempo ensina melhó.

O tiuzin Manoel parecia engasgado com alguma coisa que pressentia de dizer, mas não se decidia, estava impertinente de não parar em nenhum lugar. Fazia vistoria na senzala, lugar dos meus festejos com a geografia, voltava na cozinha. Não falava do seu gosto. Sair por aí, dizendo aos outros, o que é bom e o que não é bom, é melhor, é mais fácil, o mais difícil é praticar a prática do que se diz. Ler os livros, escrever os livros, não é uma loteria, não é premio, é escolha. Saber ler não é uma escolha, pode ser um gosto, nem é suficiente, o bom humano enche a boca até se mostrar como pensa, nos livros, na vida, nas escolhas, não é uma loteria. Tinha vez que ouvia a avó, ela entrava sussurrando, vinha como um assopro, o hálito dos espíritos é lé com cré se você não sabe escutar os assopros da continuação da vida, Neinho, fazê o desamô é uma escolha... odiá é um gosto.

Rezava pra não parar de escutar os espíritos e a avó, Não pula nesse caminho da ofensa, o ódio afunda tudo e ocê junto, tem o gosto amargo da correnteza da morte

—        O moleque já recebeu o primeiro pagamento?

—        O tiuzin Manoel quer saber o quê?

O tiuzin respirou fundo, arreganhou os dentes e esfregou as mãos, deu uma olhadinha para trás, pareceu escutar algum chamamento, ou assopro do vento, fechou os olhos e, com um pequeno estremecimento, como um arrepio de medo, tentou espantar alguma assombração de aviso, depois da formalidade, seguiu em frente com as perguntas

—        Isso: se o moleque já provô do gosto do metal... já sabe o tamanho do numerário?

Tanto volteio com muitas idas e vindas, me preparei para o pedido de algum favor, ajutório de emergência

—        Não, ainda não provei do gosto, parece que amanhã...

—        E a folga?

—        Domingo.

Bateu as mãos com satisfação e girou o corpo sobre os calcanhares

—        Perfeito!

Não entendia da perfeição de receber o pagamento no sábado e folgar no domingo, nem quis perder meu tempo de dormir com aquela conversa, sem pé nem cabeça, Meu fioneto, tem qui tê cuidado com as conversa fácil, as palavra esconde a vontade escondida, o Capitão só foi achá o valô da nêga Laetitia quando já tava nas corrente levado pra longe

—        Boa noite, tiuzin.

—        Até amanhã, moleque...

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