sábado, 29 de junho de 2013

Rezá é bão, neinho, dá conforto, esperança

Ensaio 8B
baitasar
Larguei os pensamentos do tiuzin Manoel longe dos preparativos de dormir. Tomei o banho que faz o descarrego do dia e enfiei o sono embaixo das cobertas, Neinho, ocê sabe qual o costume qui os preto e os branco, os pobre e os rico, tem igualzinho, Não sei, avó, Qué sabê, Por que a avó pergunta, se a avó vai dizer de um jeito ou de outro, Ocê, então, presta atenção no jeito de escutá, To escutando, A estupidez, Será, Isso é coisa qui só os home tem, bicho não tem.

Fechei os olhos, queria ser recebido com sossego pelo adormecimento, mas a voz da avó chegava de longe até mais perto, o bafo do desassossego entrava como sussurro de cantoria abafada, No começo a estupidez chega com modo, depois, ocê queira ou não queira, ela fica forte e durativa, até que o estúpido começa perdê domínio sobre a quantidade da tontice qui engoliu e fica desorientado, o coração si perde da cabeça qui si perde do corpo, Eu rezo para não perder o mando do meu pensamento, Rezá é bão, neinho, dá conforto, esperança, mais é preciso praticá o entendimento contra burrice, transformá o cavalgadura em sabedô, como um pai-velho qui conhece o amô de vivê.

Rezei pra avó se aquietar, mas ela foi mais um tempinho conversando. Fiquei com sono rápido. Disse boa noite, revirei na cama. Dormi. Sonhava que deitava no colo da avó, ela enfiava os dedos no meu cabelo até me adormecer. Rezava e cantava. Logo, chegou a hora marcada pra levantar, uma pequena dormida entre empurrar e tirar o sono das cobertas quentinhas. Na hora do toque de levantar, não conseguia abrir os olhos para os assuntos do tiuzin Batata. As vistas estavam grudadas

—        Acorda, moleque... tem que desaninhá!

Os olhos dormentes, parados, inchados, com vontade de não abrir, o apetite da soneira não tava saciado, na verdade, eu tava esfomeado de sono

—        Fumaça!

—        O que foi, tia? — a tia não tinha o costume de deixar os seus assuntos de interesse sem resposta, nem tinha motivo de alegria com a minha desobediência de dar mais importância e atenção pra Viação Anônima, não deixava passar dia ou noite sem comentar que a escola da universidade estava esperando pelo negrinho

—        Os dente... não esquece a escovação... precisa fazê brilhá! — resmunguei qualquer coisa e revirei para o outro lado, todo retorcido

—        Fumaça! — o chamado do tiuzin parecia toque de corneteiro no quartel, convocação de ascensão. Não tinha jeito de não escutar. O susto levantou primeiro, depois o fantasminha do corpo, o último que se desfiou das cobertas foi o hálito dos espíritos. Todos no tempo de reunião no quarto higiênico. Um anão sonâmbulo. Um espírito fantasminha. Água fria. Café preto, forte e amargo. O gorro. Calça de brim. Botina militar, presente do tiuzin Manoel. Casaco de lona, por cima de tudo: da camisa azul, dos ombros, do café, dos milicos

—        Estou pronto, tiuzin. — levava a guia da roleta Anônima num dos bolsos, a outra, no pescoço.

A madrugada amanhecia desembestada. Eu galopava ao lado do tiuzin, dois passos meus e um dele. Até que reduziu a fome e o feitio de comer o caminho das ruas, cada caminhada se parecia com a mordida no pão, o destino de chegada já ia na boca, traçado um passo antes, então, quando acabou de manducar com a sola da botina o chão da estrada, encostamos na garagem da Anônima. Antes, de cada um ir para o seu canto, o tiuzin cochichou sobre os seus planos

—        Fumaça, vô puxá o corujão...

—        Por que, tiuzin? — ele virou o nariz de batata e me ficou de frente, vi que o tiuzin tinha experimentado o gosto do dinheiro e não tinha intenção nenhuma de queimar aquela esperança de ganhar uma lasquinha do mais

—        Mais hora, mais dinheiro...

O dinheiro come tudo, tem mais fome que a vida descontrolada, come a vida, lambe os dedos e bate os beiços até que a doença vira morte, É bem assim, fioneto, ocê nunca tem o dinheiro, ele é qui tem ocê e ninguém gosta de sabê qui a vida é ilusória, então esconde a vida no dinheiro, Avó, agora não é hora de assombração aparecer, Bobagem, si ocê esperá pela hora certa, nunca faz nada, ta sempre esperando a hora certa, ocê sabe quem é qui acerta a hora certa do zanzo da vida, sabia que ocê não sabe, E a avó sabe, O neinho diz qui não é hora de assombração aparecê... essa conversa continua numa hora mais certa

—        ... e o pedido do largado novo, uma mão ajuda a outra, hoje é ele qui precisa, amanhã, pode sê eu. — o tiuzin se parou sério, depois fez o anúncio — O Manoel se ofereceu pra buscá ocê, neinho.

—        O tiuzin Manoel não obrigação nem a necessidade.

O tiuzin Batata ergueu a mão aberta e balançou na frente do rosto, sacudiu a cabeça de lado para o outro — É decisão decidida, ainda mais, si ocê não tem lembrança, hoje é dia do pagamento.

Se é assim que tinha que ser, assim é que seria, meu primeiro dia do pagamento.

Descobri que no dia do pagamento os carros reservas não se mexiam. Ninguém faltava, não tinha carro quebrado. O movimento na garagem era quase nenhum. Não havia nem um entra e sai.

Aproveitei para dormir até o intervalo do tiuzin. Depois que encostou o 22 na garagem, saímos para o almoço. A comida do nosso gosto: arroz, feijão, aipim, carne assada, tomate e cebola no vinagre e batata assada, só na pensão da tia Amora, ali, na volta da garagem, qualidade e quantidade.

Aí, veio o alívio da fome e a vontade do um cochilo passageiro. Uma pequena siesta. Sentei na sala de espera dos reservistas. Olhava às paredes, palavras cruzadas, o caso dos dez negrinhos. O João torto dormia o sono que facilitava a soltura do hálito dos espíritos. Roncava a solto. O quartel calmo.

Lá, pelo meio da tarde, o tiuzin saiu do esconderijo e voltou para sua rota. Era só esperar o dia se acabando. A noitecendo a malha das camas. Mais cruzadas, negrinhos nas paredes, os dez casos e a corneta, o final da tarde com o céu avermelhado e o corneteiro corno

—        João Torto do 69!

—        Sim, senhor... — o largador se aproximou com a sua planilha, deu a ordem de cumprimento imediato

—        O 69 vai puxá a rota da boa Esperança, o 171 do Chico da baiana quebrou. Vão lá, recolham os passageiros e terminem a viagem.

—        É pra já! Batatinha!

—        To aqui... — sempre confiei nas conversas que se tem só de olhar as aparências das pessoas, basta colocar os sentidos do olho na correnteza da atenção, e pronto, a história já foi quase toda contada

—        Ah, soldado no quartel...

—        Soldado do exército para os outros.

—        Que seja! Vamos!

Subimos no 69.

O João Torto deixava o caminhão estacionado encarando o portão, tudo provocação do quebrante.
A cavalaria pronta, o motor roncando

—        Pronto, guri?

—        Pronto! — saímos no socorro, dois cavaleiros sem exércitos, desenferrujando as marchas, os freios, acelerador. Um cavalo de ferro-velho, ferraduras pneumáticas, nenhum cérebro, o estribo recolhido, as portas fechadas, por dentro da uma armadura velha e corroída, João Torto comandava os pedais e o enfronte. Eu seguia, ao lado, seu fiel escudeiro, cantando hinos, rindo das piadas sujas, pedindo, gritando, sorrindo, tirando o chapéu para as senhoras, cobrando as passagens, recolhendo os lucros da Anônima, a fortuna do patrão.

Peguei o saquinho das moedas e distribui no caixa. Depois, puxei do bolso os cruzados: 10, 50 e 100. O trânsito estava arrastado. A estrada era uma arrastadura de difamar qualquer um, se movia lenta e pausada sob os cascos pneumáticos do Rocinante. Nossa rota iniciava a partir da transformação dos provisórios do 171 para o 69

—        Falta muito, João?

—        Quase lá... quase lá.

Quando chegamos no local do sinistro, os passageiros do 171 estavam na beirada do fio da calçada. Adivinhavam onde o João Torto iria estacionar. Paramos atrás do 171, junto a parada dos ônibus — Chegamos, Batatinha!

—        Mãos à obra!

—        Ta pronto, guri?

Respirei fundo, não foi nenhum suspiro. Não queria ficar atônito nem confuso, precisava da alma serena, era mais um mosquito brotando da pedra para viver seu ciclo, um querubim

—        Pode abrir as portas, João!

Os passageiros subiam reclamando, Onde se viu isso, onde se viu aquilo, Uma pouca vergonha, Falta de respeito. E eu, com tudo isso, só estava ali para levar todos a salvo para algum fim de mundo, Neinho, a gentileza não custa nada, tenta prová o gosto, Se a avó tem certeza, Ensaia antes, Não tem tempo

—        Senhores... senhoras... — ninguém ouvia, olhei o lado da avó, ela piscou o olho e sorriu, Não desisti, neinho, o silêncio não qué dizê qui tudo ta bão!

Fiquei em pé, na pontinha dos dedos, no meu assento de cobrador, agarrado no corrimão aéreo — Eu e o meu colega João viemos socorrer os passageiros do 171, desejamos que ao chegarem em suas casas, todos possam sentir o cheiro do café no coador, a água na chaleira chiando, o bule, Haiti, Haiti, Haiti... tá fazendo na cozinha, tá cheirando aqui...

__________________

Leia também: 

Nenhum comentário:

Postar um comentário