sábado, 1 de junho de 2013

Quero ocê até depois qui a vida se acabá

Ensaio 4B
baitasar
O esquecimento que o tempo que passa faz nas lembranças parece acomodação da própria vida, um acordo faz de conta com a imagem de si mesma, infinita enquanto dure ela esquece que vai morrer, pula de uma para outra: da mãe na filha, depois na neta, na filha da neta, a vida vai viva, quem morre é o avô, pelo menos, na história dessa avó. Ela fica viva, mas vai perdendo no pensamento descolorindo, o feitio do rosto, o perfume da voz, o fumo da corda, cada pouco um pouco, vão sumindo. O barro que se desmancha em pó me assusta, o descuido com a memória ajuda deslembrar o cadáver aprontado, deixa mais fácil as lembranças acomodando no lugar mais apropriado: o tempo que foi uma vez de vez em quando, não será de novo um cadáver adiado, por enquanto a voz me chega, Neinho, não dá tempo de desperdiçá o tempo só com a dô, deixa pra sofrê se valê a dô, é melhó usá o desperdício da vida com a cantoria, os folguedo do amô. Não esquece da vida vivida, mais olha pra frente
Tem pensamento que vem com as memórias da avó, como se ela tivesse deixado mensagem da voz, não se anuncia com pedido de licença, apenas se chega, tem a força do amor, Nesse mundão tem muita gente do desamô, fazendo coisa feia de odiá, falando coisa ruim dos outro, se o neinho esfregá as vista vai se dá conta da beleza de tudo, não vira defunto antes da vez, esquece de falá dos outro, vê de vivê a vida, enquanto ocê fala dos outro tem alguém lhe querendo amô e ocê não vê
—        A avó sabe que não sou de ficar com fuxico.
Meu fio neto, falá dos outro é uma tentação sem fundo de acabá, quanto mais gente não se cuida mais cuida dos outro, tem gente qui cuida se os outro tão cuidando de cuidá, escutei dum amigo qui ele não queria sê perfeito, só queria sê feliz, respondi qui é assim o perfeito: sabe que não tem nada nesse mundão perfeito, então é bão trata logo de sê feliz porque tem sempre a vez de sentá pra conversá. É quando o relógio da parede pará de avisá a hora, pará de fazê o sangue circulá tic tac tic tac tic tac.
Tenho saudade do perfume da vida da avó, ficando adormecida até que revivia, revocada no redemoinho das lembranças a voz aparecia com ensinação. Gostava das conversas com os espíritos dos mais velhos, É bão escutá quem já viu a vida antes, pode de tê aconselhamento pra dá, avisá do perigo que foi descuidado. Ela não queria cometer injustiça com ninguém, gritava contra qualquer abuso, sempre preocupada em defender os preto, Mais cuidado, neinho, maldade não tem cô, mais tem nome; tudo qui é pessoa no mundo tem o qui ensiná, tem o qui aprendê, mais tem aquele qui não credita, só credita qui ele é qui sabe o ensinamento, só credita que preto pode sabê cantá, dançá, chutá bola, fazê batuqui e roubá, preto bão é o qui conhece o lugá de ficá.
A avó nunca foi na escola, mas elogiava, e rezava, para os netos não desistirem dos livros, Tá na hora dos preto ensiná na escola a lição dos livro e o assunto dos preto, não vai sê fofice, a história dos preto traído não é história qui os branco qué escutá
—        Eu sei, minha avó mãe... eu sei.
—        Não chega de sabê, neinho, tem qui fazê... enfrentá as caretice feia, deixá o cabelo crescê e enfeitá, cantá as cantorias, requebrá o corpo, fazê as oferenda e invoca os orixá, contá e escrevê as história dos preto desde muito antes da travessia da estrada das água, dizê do jeito de querê da vida, ensiná o batuque de tambô e a chave qui abre os caminho, não esquecê a abrição de porta da escola pros preto, entrá pela porta e ficá... até aprendê e ensiná.
Assim eu vivia, com essas memórias que iam e vinham, chegavam rápido e partiam mais ligeiro, quase não dava tempo de ter uma conversa, até que numa noite de muita escuridão a tia Vanda se resolveu de contar as história do jeito da avó, “Essa é uma vida da vez qui Ossaim chegô pra dançá na festa dos homê. Houve um tempo em qui os deus não atendia mais os pedido dos homê. Tudo o qui era pedido saia às avessa. Os homê, então, organizaram festa pros orixá. Cada semana um orixá era homenageado. Assim andava as coisa quando a avó advertiu, Nóis queremô uma surpresa vinda do mundo dos orixá. Certa noite, quando tavam homenageando Ossaim a festa foi interrompida pela chegada dum homê estranho, de traje e modo nobre, montado num antílope. Os homê não reconheceram, mais o receberam muito bem, parecia sê alguém importante, apesá de tê uma perna só. Os sacerdote mostraram todo o lugar e contaram os problema com os deus. A festa recomeçô muito animada e o estranho homê era o qui mais dançava. Ele parecia nunca se cansá. Quando ele já havia dançado toda noite e todos já tavam exausto, a montaria do homê falô: Vamos, já tá na hora de voltá. Ele foi embora e todos ficaram admirado de vê um animal falá. Os homê, então, descobriram qui aquele homê qui veio dançá era Ossaim. Ele gosta de passá despercebido. Ossaim também gosta de fazê surpresa. Ele veio dançá com os homê e quem sabe levá os pedido aos outros orixá.”
Conta mais, tia mãe
—        Agora, o fio sobrinho vai mais é dormí um pouco, precisa descansá as vista.
Naquela noite de festa e vigília, uma sombra sai do poço no casarão Canela Preta, caminha entre as frestas, para nos cantos, respira ofegante, o suor vermelho escorre da coroa de espinhos na testa, esparrama até o chão, deixa um rastro interminável de saudades, desaparecidos, extraviados na estrada grande das águas, encarreirados por correntes na canela preta, desacostumados dos costumes, e vomita mais escuridão nos passos arrastados atormentados pelo tempo não existido, o gosto perdido, arrancados das mãos, a dor parada entre muxoxos de choros , lamentos que rezam o sangue que parou de andar. No assoalho da madeira pesam os corpos que nunca dormem, vigiam. A assombração cuida para não caminhar sobre os sonhos daqueles cadáveres, tudo vem a seu tempo
—        Tia... tia... eu to com medo do sono. Conta mais...
—        Então, arregala as vista e se acomoda no colo da tia, isso, assim mesmo... “Ossaim tem as suas oferendas rejeitadas por Orunmilá.”
—        Quem é Orunmilá?
—        Ocê tem qui ficá com a boca fechada e as vista aberta...
—        Ta bom, tia... continua.
—        Vô continuá, “Era o dia da grande festa em homenagem a Orunmilá. Ossaim, qui recebeu de Orunmilá o podê sobre as folha, tava na porta da sua casa, muito mais triste e preocupado. Por ali passô Xangô, qui perguntô a Ossaim o qui tava acontecendo, qui motivo tinha de tanta tristeza? Ossaim respondeu qui tava triste porqui não podia í na festa de Orunmilá. Naquele ano a plantação só tinha dado abóbora. E os inhame, qui era o qui ele devia levá pra Orunmilá, era muito pouco, quase nada. Xangô disse qui isso não tinha importância e qui ele devia í assim mesmo. Ossaim, desolado, disse qui não queria í, mais pediu a Xangô qui entregasse seus inhame e suas abóbora pra Orunmilá. Quando Xangô chegô no palácio de Orunmilá, todos os orixá tavam lá. Eles havia trazido grandes quantidade de inhame, o suficiente pra abarrotá muitas tulha. Xangô descarregô os dele e fez o seu monte, juntando aos seus os inhame de Ossaim. Depois pegô só as abóbora de Ossaim e fez um outro monte. Orunmilá viu a pilha de inhame qui Xangô havia trazido e ficô muito satisfeito. Depois viu o monte de abóbora ao lado e perguntô a Xangô de quem vinha. Xangô, com mal disfarçada expressão de reprovação, respondeu qui as abóbora era presente de Ossaim. Orunmilá recusô a oferenda e mandô devolvê as abóbora a Ossaim qui ficô muito triste quando viu as abóbora de volta. Desde o acontecido da devolução das abóbora, Ossaim começô a passá por necessidade. Quase nem tinha o qui comê. Alguns dia depois, Ossaim tava com tanta fome qui resolveu cozinhá uma das abóbora rejeitadas por Orunmilá. Quando abriu a abóbora, Ossaim tomô um grande susto: em vez de semente, seu interiô tava recheado de dinheiro. Ossaim, então, partiu outra abóbora e outra e mais outra, e todas tavam repleta de dinheiro. Ossaim, qui era pobre, tinha a riqueza dentro de casa e não sabia. Com as suas abóbora Ossaim ficô rico e respeitado.”
—        O neinho ta com sono? Então, agora, dorme.
O colo da tia mãe é fofo e quente. Eu to embaixo da luz amarelada vigiando a avó. Não tem jeito, não consigo ficar num acordo com os olhos. Tento deixar eles abertos, mas caem e se fecham. É quando vejo a sombra chegando ao quarto da luz tênue e amarelada do abajur. Empurra à porta, nenhum ruído, as dobradiças se movem submissas, não gemem, convidam para entrar em silêncio, sem alarmes. aperto mais as vistas e coloco a mão na boca. Já entrou. A cobiça provando o gosto do mistério precisa acreditar que ela está ali, nunca partiu. Ele senta na cama, seus dedos flutuam delicadamente, sobrenadam como se pudessem agarrar com as mãos aquele amor alagado e voltar à vida.
Na cadeira do balanço, tia Vanda dormita comigo no colo. Na cama, a nêga toda enfeitada com tranças e contas nos cabelos, vestida em sua camisola mais fina e transparente, porque tudo ficou cristalino, o amor é óbvio, esvoaça com os sopros da escuridão, sorrindo levinho.
Eu apertava os olhos, mas não tinha jeito, não tinha nada que eu fizesse, nada me tirava daquele quarto com formas arredondadas, robusto, perfumado, quente, úmido. Podia sentir a dança dos amantes e a dor. A nêga Laetitia. O Capitão.
Não se lamentam pelas feridas, pelo sangue, pelos desaparecidos sem rosto, seria fácil terem desistido das lembranças, morrido, deixado de existido sem lágrimas, sem fome, sem miséria, tinham os beijos e os abraços, o desejo do um no outro, sonhando mais dentro, mais forte, mais demorado, inumeráveis noites de azuis, um mundo justo até o fundo, o balanço dos braços, as pernas, a caverna, os músculos amarrados pelas teias dos dedos. Um duro. Outra úmida. Trepam em suas tristezas dentro do outro para viverem sem intervalos, engolindo a fome de cravar os dentes nos beijos, a língua no canto do olho até devorar as lágrimas, secando a sede de uma história que vem se remendando por anos e anos, tão impossível, tão trágica. A dor da angústia grávida, mais uma vez, uma última vez, como se ela fosse o sêmen que coloca na caverna úmida as palavras revividas. Um, o pai. Outra, a mãe. Colhem-se no avesso
—        E o avô? — dei um grito que assustei a tia Vanda
—        Qui foi isso, sobrinho?
—        Desculpe, tia mãe, tava sonhando e acordei de preocupação e dó.
—        Volta pro sono...
—        Dá pra terminar de contar a história?
—        Ta bão, mais fecha as vista, aposto qui ocê dormi antes da história acabá...
—        Já fechei...
—        Hum, deixa eu vê, hum...
—        Quem era Ossaim, tia?
—        Era o nome dum escravo qui foi vendido a Orunmilá. Ele conhecia o segredo das erva, acabô sendo conhecido como um grande médico. O senhor das folha, da ciência e das erva, o orixá qui conhece o segredo da cura e o mistério da vida... hum... não falei, o neinho desabô em cima do sono... dorme qui a história não ta completa, a tia continua num outro dia.
Acabou o tempo da espera. Não é dia, nem é noite. Pelo menos, o Universo. Pelo menos, a Terra. Ela grávida mais uma vez de tanto ele duro, o sêmen derramando. A caverna úmida como as tumbas. A catinga e o perfume doces. A teia dos dedos vibrando. As asas querendo voar ao infinito gozo do desejo. As pernas abrindo às concupiscências cúmplices da sedução. Ela não quer nunca mais fechar as pernas para aquele amor, ele não quer nunca mais derramar o sêmen em outro amor. As chuvas do Universo escorrendo dos vales, dos montes, da boca, até às cavernas mais invisíveis. O pudor arrancado das suas asas, jogado no chão, esquecido, desaprendido. As súplicas, as juras do amor, os sussurros, estão metidos entre as transparências da penumbra amarelada. Gritam das suas bocas, Quero ocê, Me namora. Deitados de lado, o Capitão entre as pernas abertas da Terra, Quero ocê, até depois qui a vida se acabá, os olhos da nêga Laetitia sorrindo, Me namora, o Universo se expande devagar, duro. Entra e fica. Nunca mais o Universo e a Terra separados.
Tudo que veem é tão bonito, tão vivo. Nas asas do amor, a saudade regressa a verdadeira morada dos espíritos, se livra do cárcere do corpo, enlouquecendo a morte, nascendo de novo na direção dos sonhos como peixes-voadores, o frescor da mulher, seus pés encantadores, os joelhos dobrados, os pelos arretados, encaracolados, o perfume da umidade desaguando. A teia dos dedos do homem brotando, roçando, tocando de leve as terras, os rios, as margens. A língua do homem apontando o bico dos seios. A boca da mulher não respira, ela geme retirada da própria vontade, não fala, está mergulhada até os dentes, devorando as carnes. A saliva escorre da garganta e se espalha na cama, deixa um rastro interminável da vontade, é a criação do mundo. As mãos sobem às costas da mulher, os dedos enfiados em seus cabelos, a nuca arrepiada, Me come, me come, os olhos se fecham, não querem mais ver, o delírio chega com os espasmos da uva que faz o vinho dos embriagados, mergulham na profanação e lutam até serem o milagre sagrado de nascer de novo, Quero ocê até o mundo acabá da vida.
O Capitão ergue a nêga Laetitia da cama, sai mancando, abrindo caminho no pretume amarelado.
A tia Vanda continuava embalando o balanço da cadeira. Eu continuava imaginando a avó dormindo no abraço do Capitão.

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