Ensaio 4B
baitasar
O
esquecimento que o tempo que passa faz nas lembranças parece acomodação da
própria vida, um acordo faz de conta com a imagem de si mesma, infinita
enquanto dure ela esquece que vai morrer, pula de uma para outra: da mãe na
filha, depois na neta, na filha da neta, a vida vai viva, quem morre é o avô,
pelo menos, na história dessa avó. Ela fica viva, mas vai perdendo no
pensamento descolorindo, o feitio do rosto, o perfume da voz, o fumo da corda,
cada pouco um pouco, vão sumindo. O barro que se desmancha em pó me assusta, o
descuido com a memória ajuda deslembrar o cadáver aprontado, deixa mais fácil
as lembranças acomodando no lugar mais apropriado: o tempo que foi uma vez de
vez em quando, não será de novo um cadáver adiado, por enquanto a voz me chega,
Neinho, não dá tempo de desperdiçá o tempo só com a dô, deixa pra sofrê se valê
a dô, é melhó usá o desperdício da vida com a cantoria, os folguedo do amô. Não
esquece da vida vivida, mais olha pra frente
Tem
pensamento que vem com as memórias da avó, como se ela tivesse deixado mensagem
da voz, não se anuncia com pedido de licença, apenas se chega, tem a força do
amor, Nesse mundão tem muita gente do desamô, fazendo coisa feia de odiá,
falando coisa ruim dos outro, se o neinho esfregá as vista vai se dá conta da
beleza de tudo, não vira defunto antes da vez, esquece de falá dos outro, vê de
vivê a vida, enquanto ocê fala dos outro tem alguém lhe querendo amô e ocê não
vê
— A avó sabe que não sou de ficar com fuxico.
Meu
fio neto, falá dos outro é uma tentação sem fundo de acabá, quanto mais gente
não se cuida mais cuida dos outro, tem gente qui cuida se os outro tão cuidando
de cuidá, escutei dum amigo qui ele não queria sê perfeito, só queria sê feliz,
respondi qui é assim o perfeito: sabe que não tem nada nesse mundão perfeito,
então é bão trata logo de sê feliz porque tem sempre a vez de sentá pra
conversá. É quando o relógio da parede pará de avisá a hora, pará de fazê o
sangue circulá tic tac tic tac tic tac.
Tenho
saudade do perfume da vida da avó, ficando adormecida até que revivia, revocada
no redemoinho das lembranças a voz aparecia com ensinação. Gostava das
conversas com os espíritos dos mais velhos, É bão escutá quem já viu a vida
antes, pode de tê aconselhamento pra dá, avisá do perigo que foi descuidado. Ela
não queria cometer injustiça com ninguém, gritava contra qualquer abuso, sempre
preocupada em defender os preto, Mais cuidado, neinho, maldade não tem cô, mais
tem nome; tudo qui é pessoa no mundo tem o qui ensiná, tem o qui aprendê, mais
tem aquele qui não credita, só credita qui ele é qui sabe o ensinamento, só
credita que preto pode sabê cantá, dançá, chutá bola, fazê batuqui e roubá,
preto bão é o qui conhece o lugá de ficá.
A
avó nunca foi na escola, mas elogiava, e rezava, para os netos não desistirem
dos livros, Tá na hora dos preto ensiná na escola a lição dos livro e o assunto
dos preto, não vai sê fofice, a história dos preto traído não é história qui os
branco qué escutá
— Eu sei, minha avó mãe... eu sei.
— Não chega de sabê, neinho, tem qui fazê...
enfrentá as caretice feia, deixá o cabelo crescê e enfeitá, cantá as cantorias,
requebrá o corpo, fazê as oferenda e invoca os orixá, contá e escrevê as
história dos preto desde muito antes da travessia da estrada das água, dizê do
jeito de querê da vida, ensiná o batuque de tambô e a chave qui abre os caminho,
não esquecê a abrição de porta da escola pros preto, entrá pela porta e ficá...
até aprendê e ensiná.
Assim
eu vivia, com essas memórias que iam e vinham, chegavam rápido e partiam mais
ligeiro, quase não dava tempo de ter uma conversa, até que numa noite de muita
escuridão a tia Vanda se resolveu de contar as história do jeito da avó, “Essa é uma
vida da vez qui Ossaim chegô pra dançá na festa dos homê. Houve um tempo em
qui os deus não atendia mais os pedido dos homê. Tudo o qui era pedido saia às
avessa. Os homê, então, organizaram festa pros orixá. Cada semana um orixá era
homenageado. Assim andava as coisa quando a avó advertiu, Nóis queremô uma surpresa
vinda do mundo dos orixá. Certa noite, quando tavam homenageando Ossaim a festa
foi interrompida pela chegada dum homê estranho, de traje e modo nobre, montado
num antílope. Os homê não reconheceram, mais o receberam muito bem, parecia sê
alguém importante, apesá de tê uma perna só. Os sacerdote mostraram todo o
lugar e contaram os problema com os deus. A festa recomeçô muito animada e o
estranho homê era o qui mais dançava. Ele parecia nunca se cansá. Quando ele já
havia dançado toda noite e todos já tavam exausto, a montaria do homê falô:
Vamos, já tá na hora de voltá. Ele foi embora e todos ficaram admirado de vê um
animal falá. Os homê, então, descobriram qui aquele homê qui veio dançá era
Ossaim. Ele gosta de passá despercebido. Ossaim também gosta de fazê surpresa.
Ele veio dançá com os homê e quem sabe levá os pedido aos outros orixá.”
Conta
mais, tia mãe
— Agora, o fio sobrinho vai mais é dormí
um pouco, precisa descansá as vista.
Naquela
noite de festa e vigília, uma sombra sai do poço no casarão Canela Preta,
caminha entre as frestas, para nos cantos, respira ofegante, o suor vermelho
escorre da coroa de espinhos na testa, esparrama até o chão, deixa um rastro
interminável de saudades, desaparecidos, extraviados na estrada grande das
águas, encarreirados por correntes na canela preta, desacostumados dos
costumes, e vomita mais escuridão nos passos arrastados atormentados pelo tempo
não existido, o gosto perdido, arrancados das mãos, a dor parada entre muxoxos
de choros , lamentos que rezam o sangue que parou de andar. No assoalho da
madeira pesam os corpos que nunca dormem, vigiam. A assombração cuida para não
caminhar sobre os sonhos daqueles cadáveres, tudo vem a seu tempo
— Tia... tia... eu to com medo do sono.
Conta mais...
— Então, arregala as vista e se acomoda no
colo da tia, isso, assim mesmo... “Ossaim tem as suas oferendas rejeitadas por
Orunmilá.”
— Quem é Orunmilá?
— Ocê tem qui ficá com a boca fechada e as
vista aberta...
— Ta bom, tia... continua.
— Vô continuá, “Era o dia da grande festa
em homenagem a Orunmilá. Ossaim, qui recebeu de Orunmilá o podê sobre as folha,
tava na porta da sua casa, muito mais triste e preocupado. Por ali passô Xangô,
qui perguntô a Ossaim o qui tava acontecendo, qui motivo tinha de tanta tristeza?
Ossaim respondeu qui tava triste porqui não podia í na festa de Orunmilá.
Naquele ano a plantação só tinha dado abóbora. E os inhame, qui era o qui ele
devia levá pra Orunmilá, era muito pouco, quase nada. Xangô disse qui isso não
tinha importância e qui ele devia í assim mesmo. Ossaim, desolado, disse qui
não queria í, mais pediu a Xangô qui entregasse seus inhame e suas abóbora pra
Orunmilá. Quando Xangô chegô no palácio de Orunmilá, todos os orixá tavam lá.
Eles havia trazido grandes quantidade de inhame, o suficiente pra abarrotá
muitas tulha. Xangô descarregô os dele e fez o seu monte, juntando aos seus os
inhame de Ossaim. Depois pegô só as abóbora de Ossaim e fez um outro monte.
Orunmilá viu a pilha de inhame qui Xangô havia trazido e ficô muito satisfeito.
Depois viu o monte de abóbora ao lado e perguntô a Xangô de quem vinha. Xangô,
com mal disfarçada expressão de reprovação, respondeu qui as abóbora era
presente de Ossaim. Orunmilá recusô a oferenda e mandô devolvê as abóbora a
Ossaim qui ficô muito triste quando viu as abóbora de volta. Desde o acontecido
da devolução das abóbora, Ossaim começô a passá por necessidade. Quase nem
tinha o qui comê. Alguns dia depois, Ossaim tava com tanta fome qui resolveu
cozinhá uma das abóbora rejeitadas por Orunmilá. Quando abriu a abóbora, Ossaim
tomô um grande susto: em vez de semente, seu interiô tava recheado de dinheiro.
Ossaim, então, partiu outra abóbora e outra e mais outra, e todas tavam repleta
de dinheiro. Ossaim, qui era pobre, tinha a riqueza dentro de casa e não sabia.
Com as suas abóbora Ossaim ficô rico e respeitado.”
— O neinho ta com sono? Então, agora,
dorme.
O
colo da tia mãe é fofo e quente. Eu to embaixo da luz amarelada vigiando a avó.
Não tem jeito, não consigo ficar num acordo com os olhos. Tento deixar eles
abertos, mas caem e se fecham. É quando vejo a sombra chegando ao
quarto da luz tênue e amarelada do abajur. Empurra à porta, nenhum ruído, as
dobradiças se movem submissas, não gemem, convidam para entrar em silêncio, sem
alarmes. aperto mais as vistas e coloco a mão na boca. Já entrou. A cobiça provando o gosto do mistério precisa acreditar que ela está
ali, nunca partiu. Ele senta na cama, seus dedos flutuam delicadamente,
sobrenadam como se pudessem agarrar com as mãos aquele amor alagado e voltar à
vida.
Na
cadeira do balanço, tia Vanda dormita comigo no colo. Na cama, a nêga toda
enfeitada com tranças e contas nos cabelos, vestida em sua camisola mais fina e
transparente, porque tudo ficou cristalino, o amor é óbvio, esvoaça com os
sopros da escuridão, sorrindo levinho.
Eu
apertava os olhos, mas não tinha jeito, não tinha nada que eu fizesse, nada me
tirava daquele quarto com formas arredondadas, robusto, perfumado, quente,
úmido. Podia sentir a dança dos amantes e a dor. A nêga Laetitia. O Capitão.
Não
se lamentam pelas feridas, pelo sangue, pelos desaparecidos sem rosto, seria
fácil terem desistido das lembranças, morrido, deixado de existido sem
lágrimas, sem fome, sem miséria, tinham os beijos e os abraços, o desejo do um
no outro, sonhando mais dentro, mais forte, mais demorado, inumeráveis noites
de azuis, um mundo justo até o fundo, o balanço dos braços, as pernas, a
caverna, os músculos amarrados pelas teias dos dedos. Um duro. Outra úmida. Trepam
em suas tristezas dentro do outro para viverem sem intervalos, engolindo a fome
de cravar os dentes nos beijos, a língua no canto do olho até devorar
as lágrimas, secando a sede de uma história que vem se remendando por anos e
anos, tão impossível, tão trágica. A dor da angústia grávida, mais uma vez, uma
última vez, como se ela fosse o sêmen que coloca na caverna úmida as palavras
revividas. Um, o pai. Outra, a mãe. Colhem-se no avesso
— E o avô? — dei um grito que assustei a
tia Vanda
— Qui foi isso, sobrinho?
— Desculpe, tia mãe, tava sonhando e
acordei de preocupação e dó.
— Volta pro sono...
— Dá pra terminar de contar a história?
— Ta bão, mais fecha as vista, aposto qui
ocê dormi antes da história acabá...
— Já fechei...
— Hum, deixa eu vê, hum...
— Quem era Ossaim, tia?
— Era o nome dum escravo qui foi vendido a
Orunmilá. Ele conhecia o segredo das erva, acabô sendo conhecido como um grande
médico. O senhor das folha, da ciência e das erva, o orixá qui conhece o
segredo da cura e o mistério da vida... hum... não falei, o neinho desabô em
cima do sono... dorme qui a história não ta completa, a tia continua num outro
dia.
Acabou
o tempo da espera. Não é dia, nem é noite. Pelo menos, o Universo. Pelo menos,
a Terra. Ela grávida mais uma vez de tanto ele duro, o sêmen derramando. A
caverna úmida como as tumbas. A catinga e o perfume doces. A teia dos dedos
vibrando. As asas querendo voar ao infinito gozo do desejo. As pernas abrindo
às concupiscências cúmplices da sedução. Ela não quer nunca mais fechar as
pernas para aquele amor, ele não quer nunca mais derramar o sêmen em outro
amor. As chuvas do Universo escorrendo dos vales, dos montes, da boca, até às
cavernas mais invisíveis. O pudor arrancado das suas asas, jogado no chão,
esquecido, desaprendido. As súplicas, as juras do amor, os sussurros, estão
metidos entre as transparências da penumbra amarelada. Gritam das suas bocas,
Quero ocê, Me namora. Deitados de lado, o Capitão entre as pernas abertas da
Terra, Quero ocê, até depois qui a vida se acabá, os olhos da nêga Laetitia sorrindo,
Me namora, o Universo se expande devagar, duro. Entra e fica. Nunca mais o
Universo e a Terra separados.
Tudo
que veem é tão bonito, tão vivo. Nas asas do amor, a saudade regressa a verdadeira morada dos
espíritos, se livra do cárcere do corpo, enlouquecendo a
morte, nascendo de novo na direção dos sonhos como peixes-voadores, o frescor
da mulher, seus pés encantadores, os joelhos dobrados, os pelos arretados,
encaracolados, o perfume da umidade desaguando. A teia dos dedos do homem
brotando, roçando, tocando de leve as terras, os rios, as margens. A língua do homem
apontando o bico dos seios. A boca da mulher não respira, ela geme retirada da
própria vontade, não fala, está mergulhada até os dentes, devorando as carnes.
A saliva escorre da garganta e se espalha na cama, deixa um rastro interminável
da vontade, é a criação do mundo. As mãos sobem às costas da mulher, os dedos
enfiados em seus cabelos, a nuca arrepiada, Me come, me come, os olhos se fecham,
não querem mais ver, o delírio chega com os espasmos da uva que faz o vinho dos
embriagados, mergulham na profanação e lutam até serem o milagre sagrado de
nascer de novo, Quero ocê até o mundo acabá da vida.
O
Capitão ergue a nêga Laetitia da cama, sai mancando, abrindo caminho no pretume amarelado.
A
tia Vanda continuava embalando o balanço da cadeira. Eu continuava imaginando a
avó dormindo no abraço do Capitão.
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