Ensaio 06B
baitasar
O redemoinho da vida é incontrolável, rompe resistências, tanto pode acagaçar bravos, como acabaçar covardes, encanta-se nas encruzilhadas com as oferendas, trouxas e carregos, não faz perguntas, nem procura respeito ou submissão, a sua fome come todos, é uma fome sem tamanho.
Arrumei o passo à passo, entrei com o pé direito na empresa, afinal, toda ajuda sempre é bem-vinda. O tiuzin Batata do lado. O rodamoinho me atraindo como o novo contratado temporário da Viação Anônima, o cobrador das passagens. Era o fim da vida de fartura com a miséria. Tinha um emprego de respeito. Minha primeira missão de importância fora do casarão Canela Preta. Começava viver o turbilhão dos ventos contra e a favor, uma tarefa de gente grande.
Ainda não aprendia, nessas horas a prudência é um consenso.
Naquela madrugada, durante o caminho até a garagem da empresa dos ônibus, o tiuzin Batata enunciava suas últimas recomendações. Sussurrava pequenos conselhos, perguntei se ele estava arrependido
— Preocupado, sobrinho... só preocupado.
Alguns passos em silêncio e mais recomendações, avisos que achava mais importantes, as lembranças que lhe vinham com as preocupações. Queria ter todas as certezas de não estar me levando para uma luta de morte. Caminhava temendo o caminho à sua direita e o outro à sua esquerda
— Moleque, trabalha certinho... dá conta da féria do dia... cuida o troco, se precisá contá de novo, é só contá, até ficá com certeza... no fim tem as conta do dinheiro e da roleta, elas tem qui chegá junta, pode até sobrá, mais se faltá dinheiro vai saí do bolso do moleque, até a conta fechá.. se trabalhá direitinho, logo, logo, o moleque recebe os benefício do patrão.
— O tiuzin pode botá confiança.
— Eu sei... eu sei...
Na primeira semana, fiquei na reserva, entrava na falta de algum colega cobrador. O reservista fica no alcance do largador, o sujeito que organiza as saídas tem uma planilha, um telefone e uma cara de poucos amigos. Mandou, está mandado
— João Torto!
— Pronto, chefe...
— Pega o 69 e faz a rota do Paulão... acabou de quebrar. O Fumacinha vai no poleiro.
— Já to embarcando... Moleque!... Você mesmo... soldado no quartel quer trabalho, esse é pra nóis! Qué?
— Já to indo!
O coração subiu pela boca, corri atrás do João Torto, o saquinho com o troco numa das mãos, a guia de controle na outra. O largador subiu no ônibus, pediu a guia e anotou o número do último passageiro na roleta — Podem ir.
— A cavalaria está saindo! — gritou o Torto.
Depois da primeira viagem, a afobação diminuiu, o troco ficou mais fácil de calcular, acostumei com o poleiro, quase sobrava tempo para olhar às ruas com suas casas e pessoas incógnitas ficando para trás, um passado que podia ver de longe, desaparecendo, um passado que nunca vi de perto, desconhecidos. Havia tanto para ser visto do poleiro, pessoas, ruas, esquinas, carros, buracos, curvas, freios, lugares por onde só passamos... nunca descemos.
Meus novos heróis eram grandes, bebiam, falavam aos gritos, tinham sempre uma piada suja e indecente escorregando no canto da boca, a barriga crescendo, engravidando da cerveja, a bunda sumindo. Já perceberam? O motorista tem muita barriga e pouca bunda, quase nenhuma. O cigarro amarelando os dedos, os dentes, a tosse, o pigarro, o perfume, eu continuava me forjando na fumaça cinza dos meus heróis. Saia com o tiuzin Batata às 4 horas da manhã, chegava à garagem pontualmente, 4 e meia. Recebia o troco, às vezes embarcava, outras esperava pelos infortúnios. A primeira viagem saia às 4 e 45 minutos. Para e anda. Sobe e desce. Todas as luzes animadas. O dia acordando as ruas, as casas espreguiçando. A minha confiança aumentando, Um passinho mais pra frente, por favor. Não tinha muitos arrependimentos, esse não seria um remorso a mais, era um bom emprego, Segura João, ta subindo... feeecha! É isso, vamos levando todos, ninguém fica para trás, como um rodo puxando a água derramada. Limpando as ruas das paradas, derramando no curral das fábricas.
A minha missão era cobrar as passagens, se possível, sendo gentil, Bom dia, senhora. Nem tudo é tão bom que não possa melhorar, Um passinho mais à frente, por favor, feeecha! É isso, ninguém fica para trás. Amontoadinhos.
O largador fixava a tabela com os horários às 4 e meia. Os soldados rasos tocavam o horário até às 11 horas, com intervalo até às 4 da tarde, depois finalizamo às 10 horas da noite. Os peixes do patrão – peixe é o empregado com serviço de importância que só o patrão reconhece – saiam às 8 da noite. Perguntei ao tiuzin como se explica esse grande companheirismo entre o patrão com um ou outro funcionário, O moleque já ouviu falá sobre o acontecido do favô qui se paga com outro favô
— Uma mão lava a outra.
— Isso, mais também pode acontecê qui a mão suja emporcalha a outra.
Entendi o recado: preciso ficar com os olhos e ouvidos atentos, boca fechada, as moscas não entram e não saem palavras de arrependimento. Quase não carrego nas lembranças remorsos de muito peso, uma ou outra coisinha, o tempo dos sonhos com a geografia, o cabelo nas mãos, o beijo no galego, essa boquinha me atrasou mais que podia imaginar, a primeira comunhão, não quis ser coroinha, nem apeteceu o lugar do Tigão no tráfico, não queria minha boca cheia de ouro ou de terra, melhor não arriscar... se arrependimento pudesse matar, hoje seria bispo ou patrão, preto ou alemão, ninguém notava diferença no rabo daquela sereia.
Na segunda semana continuava na reserva. Queria um itinerário fixo antes de terminar o contrato de temporário. Um feito muito difícil, nunca dantes feito. Repetir o caminho e as pessoas. Conhecido. Famoso.
A tia Vanda ficava acordada, esperando. Não estava perdida da razão, desconfiava daquele prodígio sem desafio, Eita emprego de cobrar sem graça. Eu não queria nenhuma guerra na família, mas pareceu que a tia vivia enciumada porque o tiuzin fez o arranjo do emprego. Continuava parada até me ver entrar no quarto. Não tinha o que a curasse. Continuava me repreendendo na porta, só deixava passar quando percebia que nem toda água da torneira da chuva ia me afogar. Voltava as baterias aéreas para o tiuzin
— Batata, com esse horário maluco, o moleque não vai estudá!
– É tudo temporário...
Depois da primeira semana de serviço, o largador espalhou na garagem que o pequeno Batatinha era competente no ofício de cobrador, não dava para ficar bem de vida, mas já tinha emprego, logo, recebia o dinheiro
— Tia Vanda...
— Fumaça, não tem escola qui ensina no meio-dia até metade da tarde. Tudo tem jeito certo de fazê.
— Tia, aprendi com a avó que não tem um jeito certo, apenas. Tem o jeito certo da pessoa que os outros precisam escutar com a atenção do coração... é temporário... depois, é só ficar conhecido como o tiuzin.
A tia pareceu perder a sua paciência, eu também estava no mesmo ponto do desencontro, queria que ela num pequeno esforço pudesse me entender, mesmo que fosse uma compreensão aos frangalhos, com os trancos e barrancos da incompetência que temos para enxergar os outros: os egoístas estão lá fora, nunca estão dentro
— O teu tio é o caso do famoso qui é desconhecido. O preto com preparo na corrida, qui tem um treinadô ditadô: o motorista branco do caminhão do lixo. Ninguém pode sê mais malvado no cumprimento do horário. Não para o caminhão, só sê fô cruzamento ou perigo da pessoa na frente. Os preto lá atrás, pega no latão, vira no caminhão, corre pra devolvê, pega outro latão, vira e corre pra devolvê. Tudo sem perdê a imundícia dos outro pra fora do caminhão. Se perdê tem qui voltá e ajuntá, se não voltá vai escutá reclamação, se repetí, pega gancho. Vai pra reserva. O Batata não perdia nem farelo do latão. Corria mais qui o caminhão. Nos torneio, ganhô sempre. Era melhó qui os outro. Abriu os caminho correndo. Fez conhecido bão. Um ajuda daqui, outro dali, saiu do caminhão e virô cobradô das passagem. Num outro pulo já ficô de motorista. O carregadô de gente. E ocê, moleque? Vai corrê? Chutá bola? — me olhava de um jeito sem pena, sem dó, media a minha força, o tamanho da minha vontade, queria me fazer ver o que ela pressentia, o medo de não dar certo, mirar no alvo errado — Ocê vai se enterrá sentado, adormecido da bunda, enriquecendo o patrão da Anônima.
baitasar
O redemoinho da vida é incontrolável, rompe resistências, tanto pode acagaçar bravos, como acabaçar covardes, encanta-se nas encruzilhadas com as oferendas, trouxas e carregos, não faz perguntas, nem procura respeito ou submissão, a sua fome come todos, é uma fome sem tamanho.
Arrumei o passo à passo, entrei com o pé direito na empresa, afinal, toda ajuda sempre é bem-vinda. O tiuzin Batata do lado. O rodamoinho me atraindo como o novo contratado temporário da Viação Anônima, o cobrador das passagens. Era o fim da vida de fartura com a miséria. Tinha um emprego de respeito. Minha primeira missão de importância fora do casarão Canela Preta. Começava viver o turbilhão dos ventos contra e a favor, uma tarefa de gente grande.
Ainda não aprendia, nessas horas a prudência é um consenso.
Naquela madrugada, durante o caminho até a garagem da empresa dos ônibus, o tiuzin Batata enunciava suas últimas recomendações. Sussurrava pequenos conselhos, perguntei se ele estava arrependido
— Preocupado, sobrinho... só preocupado.
Alguns passos em silêncio e mais recomendações, avisos que achava mais importantes, as lembranças que lhe vinham com as preocupações. Queria ter todas as certezas de não estar me levando para uma luta de morte. Caminhava temendo o caminho à sua direita e o outro à sua esquerda
— Moleque, trabalha certinho... dá conta da féria do dia... cuida o troco, se precisá contá de novo, é só contá, até ficá com certeza... no fim tem as conta do dinheiro e da roleta, elas tem qui chegá junta, pode até sobrá, mais se faltá dinheiro vai saí do bolso do moleque, até a conta fechá.. se trabalhá direitinho, logo, logo, o moleque recebe os benefício do patrão.
— O tiuzin pode botá confiança.
— Eu sei... eu sei...
Na primeira semana, fiquei na reserva, entrava na falta de algum colega cobrador. O reservista fica no alcance do largador, o sujeito que organiza as saídas tem uma planilha, um telefone e uma cara de poucos amigos. Mandou, está mandado
— João Torto!
— Pronto, chefe...
— Pega o 69 e faz a rota do Paulão... acabou de quebrar. O Fumacinha vai no poleiro.
— Já to embarcando... Moleque!... Você mesmo... soldado no quartel quer trabalho, esse é pra nóis! Qué?
— Já to indo!
O coração subiu pela boca, corri atrás do João Torto, o saquinho com o troco numa das mãos, a guia de controle na outra. O largador subiu no ônibus, pediu a guia e anotou o número do último passageiro na roleta — Podem ir.
— A cavalaria está saindo! — gritou o Torto.
Depois da primeira viagem, a afobação diminuiu, o troco ficou mais fácil de calcular, acostumei com o poleiro, quase sobrava tempo para olhar às ruas com suas casas e pessoas incógnitas ficando para trás, um passado que podia ver de longe, desaparecendo, um passado que nunca vi de perto, desconhecidos. Havia tanto para ser visto do poleiro, pessoas, ruas, esquinas, carros, buracos, curvas, freios, lugares por onde só passamos... nunca descemos.
Meus novos heróis eram grandes, bebiam, falavam aos gritos, tinham sempre uma piada suja e indecente escorregando no canto da boca, a barriga crescendo, engravidando da cerveja, a bunda sumindo. Já perceberam? O motorista tem muita barriga e pouca bunda, quase nenhuma. O cigarro amarelando os dedos, os dentes, a tosse, o pigarro, o perfume, eu continuava me forjando na fumaça cinza dos meus heróis. Saia com o tiuzin Batata às 4 horas da manhã, chegava à garagem pontualmente, 4 e meia. Recebia o troco, às vezes embarcava, outras esperava pelos infortúnios. A primeira viagem saia às 4 e 45 minutos. Para e anda. Sobe e desce. Todas as luzes animadas. O dia acordando as ruas, as casas espreguiçando. A minha confiança aumentando, Um passinho mais pra frente, por favor. Não tinha muitos arrependimentos, esse não seria um remorso a mais, era um bom emprego, Segura João, ta subindo... feeecha! É isso, vamos levando todos, ninguém fica para trás, como um rodo puxando a água derramada. Limpando as ruas das paradas, derramando no curral das fábricas.
A minha missão era cobrar as passagens, se possível, sendo gentil, Bom dia, senhora. Nem tudo é tão bom que não possa melhorar, Um passinho mais à frente, por favor, feeecha! É isso, ninguém fica para trás. Amontoadinhos.
O largador fixava a tabela com os horários às 4 e meia. Os soldados rasos tocavam o horário até às 11 horas, com intervalo até às 4 da tarde, depois finalizamo às 10 horas da noite. Os peixes do patrão – peixe é o empregado com serviço de importância que só o patrão reconhece – saiam às 8 da noite. Perguntei ao tiuzin como se explica esse grande companheirismo entre o patrão com um ou outro funcionário, O moleque já ouviu falá sobre o acontecido do favô qui se paga com outro favô
— Uma mão lava a outra.
— Isso, mais também pode acontecê qui a mão suja emporcalha a outra.
Entendi o recado: preciso ficar com os olhos e ouvidos atentos, boca fechada, as moscas não entram e não saem palavras de arrependimento. Quase não carrego nas lembranças remorsos de muito peso, uma ou outra coisinha, o tempo dos sonhos com a geografia, o cabelo nas mãos, o beijo no galego, essa boquinha me atrasou mais que podia imaginar, a primeira comunhão, não quis ser coroinha, nem apeteceu o lugar do Tigão no tráfico, não queria minha boca cheia de ouro ou de terra, melhor não arriscar... se arrependimento pudesse matar, hoje seria bispo ou patrão, preto ou alemão, ninguém notava diferença no rabo daquela sereia.
Na segunda semana continuava na reserva. Queria um itinerário fixo antes de terminar o contrato de temporário. Um feito muito difícil, nunca dantes feito. Repetir o caminho e as pessoas. Conhecido. Famoso.
A tia Vanda ficava acordada, esperando. Não estava perdida da razão, desconfiava daquele prodígio sem desafio, Eita emprego de cobrar sem graça. Eu não queria nenhuma guerra na família, mas pareceu que a tia vivia enciumada porque o tiuzin fez o arranjo do emprego. Continuava parada até me ver entrar no quarto. Não tinha o que a curasse. Continuava me repreendendo na porta, só deixava passar quando percebia que nem toda água da torneira da chuva ia me afogar. Voltava as baterias aéreas para o tiuzin
— Batata, com esse horário maluco, o moleque não vai estudá!
– É tudo temporário...
Depois da primeira semana de serviço, o largador espalhou na garagem que o pequeno Batatinha era competente no ofício de cobrador, não dava para ficar bem de vida, mas já tinha emprego, logo, recebia o dinheiro
— Tia Vanda...
— Fumaça, não tem escola qui ensina no meio-dia até metade da tarde. Tudo tem jeito certo de fazê.
— Tia, aprendi com a avó que não tem um jeito certo, apenas. Tem o jeito certo da pessoa que os outros precisam escutar com a atenção do coração... é temporário... depois, é só ficar conhecido como o tiuzin.
A tia pareceu perder a sua paciência, eu também estava no mesmo ponto do desencontro, queria que ela num pequeno esforço pudesse me entender, mesmo que fosse uma compreensão aos frangalhos, com os trancos e barrancos da incompetência que temos para enxergar os outros: os egoístas estão lá fora, nunca estão dentro
— O teu tio é o caso do famoso qui é desconhecido. O preto com preparo na corrida, qui tem um treinadô ditadô: o motorista branco do caminhão do lixo. Ninguém pode sê mais malvado no cumprimento do horário. Não para o caminhão, só sê fô cruzamento ou perigo da pessoa na frente. Os preto lá atrás, pega no latão, vira no caminhão, corre pra devolvê, pega outro latão, vira e corre pra devolvê. Tudo sem perdê a imundícia dos outro pra fora do caminhão. Se perdê tem qui voltá e ajuntá, se não voltá vai escutá reclamação, se repetí, pega gancho. Vai pra reserva. O Batata não perdia nem farelo do latão. Corria mais qui o caminhão. Nos torneio, ganhô sempre. Era melhó qui os outro. Abriu os caminho correndo. Fez conhecido bão. Um ajuda daqui, outro dali, saiu do caminhão e virô cobradô das passagem. Num outro pulo já ficô de motorista. O carregadô de gente. E ocê, moleque? Vai corrê? Chutá bola? — me olhava de um jeito sem pena, sem dó, media a minha força, o tamanho da minha vontade, queria me fazer ver o que ela pressentia, o medo de não dar certo, mirar no alvo errado — Ocê vai se enterrá sentado, adormecido da bunda, enriquecendo o patrão da Anônima.
A tia falava a verdade, como se a verdade só fosse aquela verdade, até a mentira pode virar verdade, a lorota só precisa encontrar algum ouvido desatento, ou com maldade, e pronto, vira uma verdade verdadeira. Não tem empregado rico, só fica rico se roubar do patrão, que roubou do patrão. É isso, o dinheiro é incontrolável, corrompe as resistências, não faz perguntas, não responde perguntas, a sua fome come todos, come a fome. O empregado morre. O patrão morre. O homem morre. A mulher morre. O doutor morre. O traficante morre. O dinheiro continua comendo. O dinheiro come a morte e cospe na nossa cara, continua comendo até que a vida morre — Merda!
— O que foi moleque?
— Esqueci a guia no bolso...
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Leia também:
Ensaio 5B - Ele não é bicho, neinho, é meu fio
— O que foi moleque?
— Esqueci a guia no bolso...
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