sábado, 6 de julho de 2013

Neinho, o preto Josino foi enforquilhado

Ensaio 09B
baitasar
—        Enforca!
—        Passa a corda no negro!
—        Safado!
Um buraco, uma cova, queria uma toca para me esconder daqueles gritos, a vergonha do desdém, o cinismo dos suspiros, a indiferença, a mudez. Nenhum dos passageiros deu a menor importância às boas-vindas, ao café Haiti, à minha alegria postiça. Olhei para os lados, Avó, chamei uma, duas, três vezes, Avó, outra vez, Calma, neinho, Aonde a avó andava, Onde ocê acha... nas nuvens, Chamei a avó, mais vezes que o costume, Nem foi tanto assim, A avó escutava, Claro, Então, viu que fiz papelão, Fez, E a avó concorda, Não disse pra ocê cantá, qui bobice essa conversa do café Haiti, Quis ser gentil, Neinho, bastava ocê escutá sem brabeza e ajudá levá tudo pra casa. Não consegui abrir a boca e retrucar a avó, ela fez sinal com os olhos para me sentar e sossegar o pinto, Senta aí, olha lá fora, E daí, Ocê vê o quê, Nada... a rua, as pessoas, as casas, O neinho precisa esforçá as vista, mostrá pros olho o que ocê vê, carece fornicá com curiosidade.
Desgrudei da avó, o gado subindo no Rocinante, organizado em fila, agonizando. O João Torto, largado sobre sua janela, conversava animado com o Chico da Baiana — O que foi isso, Chico?
—        Tudo dentro da normalidade... — ergueu os ombros, repuxou um dos lados da boca, subiu as duas mãos espalmadas num aviso da desistência — ... a caixa quebrô, não foi repentino. Caminhão velho é assim, provoca os atrasos, e a quebradeira não é maior por causa da boa vontade de Deus, mais os cuidados do Seu Cristóvão
—        Ta certo, Chico... te cuida. — o João enfiou o braço lá fora, feito o cumprimento das mãos, virou para os meus lados, reuniu o ar nos pulmões e perguntou, junto com um pigarro
—        Tudo certo, Batatinha?
Viajo sentado de frente para a roleta, as costas na janela, os lados para os passageiros sentados, na direita enxergo a frente do 69, na esquerda aponto o fundo do carro, Psiu, me fiz de embaçado, Psiu, O que foi, avó, Olha pra cá, Não posso, Não qué olhá, ta bem, não olhá, mais vai escutá e não vê, Não vou ver o quê, avó, As árvore, aqui fora, Essa não é hora de olhar a vista, Bestice, é só querê e fazê a hora
—        Abre atrás, João! — um branco grandão estava parado na calçada, na porta do fundo. O João abriu a porta e o comprido subiu no 69, Neinho, não perde a sorte de olhá e sabê o que vê. Virei à cabeça dela e olhei, Pronto, avó, O que ocê vê, Você, a minha avó morta, O neinho vê as árvore, Também, É as árvore dos enforcado, O que a avó ta dizendo, Não vê os preto pendurado no pescoço, fiz o sinal da cruz, Cruz e credo, tesconjuro, não resisti a tentação de vê, São as árvore dos enforcado dum tempo qui existiu lei qui mandava matá pelo pescoço, os preto escravo ficava pendurado até cansá de respirá, Não acredito, avó, Não penduraram mais preto, qui os preto pendurado na praça do divertimento, pra não perdê dinheiro, pois olhe bem, dá pra vê os preto boiando no vento, O que eles fizeram, Nascê, Não acredito, balancei a cabeça dum lado pra outro, repeti, Não acredito, Existiu pros preto, na verdade, era lei que servia pra tudo qui era gente, mais tinha gosto de sê usada nos preto, Que abuso, avó, As leis dos branco, qui os branco estuda, é feita pra arredá os pobre, os preto e as puta desafortunada, pra mais longe qui lugar perdido, a justiça limpa tudo
—        Achei que não tinham me visto. — o sujeito que entrou na porta do fundo era muito grande, quase maior que o 69. Precisei puxar a cabeça atrás e subir o queixo
—        O senhor podia ter embarcado na frente.
—        Não podia...
—        Por quê?
—        Não paguei a passagem para o seu colega, o que é certo é o certo. — para ter direito a sua passagem, ao outro lado da roleta, o passageiro pagava uma tarifa: setenta e cinco cruzados. Ele me estendeu a mão com cem cruzados, peguei seu dinheiro e dei o troco: vinte e cinco cruzados. O passadiço estava liberado. O grandão girou a roleta até que a catraca deu um estalo e parou, estava feita a sua mudança de lugar, a sua passagem do corredor do fundo para o corredor da frente, depois da roleta
—        Demora muito para seguirmos viagem?
—        Não, assim que todos subirem. — tornei a virar as vistas para o largo dos enforcados, Neinho, ali, nas árvore dos enforcado, o preto Josino foi enforquilhado, A avó conheceu ele, Naquela época a avó era outra coisa, mais agora andamô proseando, Ele ta aqui, Não, ele jurô qui aqui não coloca mais o gargalo da boca, E o que ele fez, O Josino conta qui ajudô no levantamento da igreja das Dores, Onde fica, Já vi qui ocê não conhece nada de nadica, To escutando a avó contá a história, não to
—        Vamos embora, motorista!
O 69 não tinha mais assentos desocupados. O senhor grandão caminhava pelo corredor com o gargalo da boca dobrado, olhando para o chão. Parecia consternado. Culpado. Aquele sujeito enorme era maior que o 69. Ele enfiou a testa no alçapão do teto, endireitou o pescoço. Os ombros roçando no corrimão pendurado no telhado de zinco. Fechei os olhos, a cabeça me balançou, uns com o pescoço dobrado, outros, como o Josino, quebrado, apertado até fechar, Muito antes, perto de 1807, colocaram água morna na fervura e na vontade de construí a tal igreja, a fervura tinha mais capricheira qui dinheiro. O crescimento das parede dependia das doação dos mais endinheirado da cidade. Quando é assim, e muita pouca a boa vontade, de vez em quando chegava madeira, pedra, bronze para os sino, tinta para os santo, vidro para as janela embaçada. Uma ou outra vez recomendava o coração alguma pechincha em dinheiro. O mais certo era botá os preto escravo pra trabalhá na casa de Deus, uma forma mais atinada de ajudá e aliviava a consciência, de quebra garantia lugá no céu.
O sujeitão estava dentro do alçapão, ao seu lado, um outro tipo de homem, pequenino, que não alcançava no corrimão aéreo. Ele bem que tentou uma vez, outra, mais outra, não adiantou ficar na pontinha dos pés, não alcançava no pega-mão dos homens. Cansou. Ou desistiu. Encostou a cabeça no sujeitão e dormiu. Protegido. Escorado.
Lá fora escurecendo, e os pretos continuavam pendurados. Mais de duzentos anos amarrados pelo pescoço esfumaçado, nos cabides daquelas árvores. Sinto pena da memória zanzando na escória dos mortos, fiquei com raiva do silêncio da história.
O João Torto arrancou o 69 do Largo dos Enforcados. A avó ficou, não quis subir. Reclamou que uma multidão encheu o ônibus.
Outra parada, mais passageiros. Ninguém descia. Uma senhora subiu na última parada carregando uma bolsa pendurada no ombro. Descuidada. Era uma facilidade de dar água na boca de qualquer larápio. Num olhar rápido avaliei que ela teria dificuldades com a roleta, as larguras eram maiores. Coloquei a mão na roleta para dar uma ajuda de força, mas um pequeno ajeito daqui e ali, pronto, passou. Não havia lugar desocupado no corredor, o chão de lata estava atravancado com pés e sapatos
—        Por favor, mais um passinho à frente... vamos liberar a roleta.

Passinhos, empurrões e apertos.

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