terça-feira, 13 de maio de 2014

histórias davóinha: João Torto do 69! 09cp

casarão canela preta


João Torto do 69!
Ensaio 09cp – 2ª edição 1ª reimpressão


baitasar




pedi que avóinha parasse com aquela fumaceira, caso ela não tivesse se dado por conta, eu e o tiuzin Batata távamos de conversa importante. engraçado como esses aparecimentos da avóinha cabem dentro de um tempo sem tempo, não parecem ser conversa nem parecem estar indo ou vindo, ficam num jeito de estar em tudo. pedi que me deixasse de conversa com o tiuzin, Mais hora é mais dinheiro. E tem o pedido do largadô novo da garagem, tudo se ajuntô no meu decisório. Uma mão ajuda outra. Hoje, é ele qui precisa, amanhã... pode sê eu.

o tiuzin Batata parou sério, queria fazer algum anúncio que lhe custava a certeza de tá fazendo o certo. deu um esfregão forte nas duas mãos, O seu tiuzin Manoel se ofereceu pra busca ocê, miúdo.

pulei de brabeza. não tinha nenhuma desavença com o tiuzin Manoel, mas fiquei incomodado com essa sujeição de alguém precisar me buscar. mais parecia um colegial que um trabalhador. anão, preto, louco e despreparado na própria proteção, O tiuzin Manoel não tem obrigação nem a necessidade.

o tiuzin Batata ergueu a mão aberta e balançou na frente do rosto. sacudiu a cabeça de um lado e outro, conformado com a sua serventia de uso: um relógio preso na parede, É decisão decidida. Ainda mais, siocê não tem lembrança, é bão de se lembrá qui hoje é dia do pagamento, parou o pêndulo e colocou a mão no meu ombro, parecia querer fazer alguma confidência da família, Sua tia Vanda não ia tê sossego té a chegada do miúdo no Canela Preta. A ajuda do seu tio Manoel não tem negociação. É assim que vai sê.

assim é que seria, se é assim que tinha que ser, no meu primeiro dia do pagamento. isso de ser a primeira vez é apego sem importância. só tem gravidade de acontecimento quando a história do sucedido escapa das mãos, ela fica mais prestigiada que a própria relevância. claro, não é assim em tudo que se faz, a primeira vez nem sempre importa, nem sempre é lembrada, e muitas têm valor de história que não vai ser contada, Qual terá sido o primeiro escravo preto desta terra de homens bondosos? Como terá sido o momento mágico do primeiro pé preto das mulheres pretas pisando a terra das mulheres caridosas? Em que fábula de ninar e sonhar, homens caridosos e mulheres bondosas encontraram redenção depois de açoitar o primeiro preto? Quinhentos anos de histórias de ninar embalando os cuidados de escravizar e explorar. Os brancos antibióticos nunca quiseram os pretos por aqui.

acordei do meu sono reservista

descobri que no dia do pagamento ninguém faltava. não tinha carro quebrado por descuido ou exagero de pouco caso, os reservistas não saem da garagem. o movimento era quase nenhum. não havia entra e sai por faltas ou quebradeiras. aproveitei para dormir até o intervalo do tiuzin. depois que ele encostou o 22 na garagem saímos para o almoço. a comida do meu gosto: arroz, feijão, carne assada em panela de barro, aipim, tomate e cebola, mais batata assada, só na pensão da dona Amora. qualidade e quantidade, tudo na volta da garagem. a vida fervilhava por aqui

depois do alívio da fome, um ligeiro cochilo. a pequena siesta. reservista com sorte passa o dia dormindo

sentei na sala de espera do reservatório. olhava as paredes. juntava letras em palavras cruzadas. o caso dos dez negrinhos. gosto de ler os crimes e mistérios dos livros. o João Torto dormia o sono solto que facilita a soltura do hálito e dos espíritos. roncava a própria soltura. sabia que o 69 não saia, Talvez, me confidenciou, o final do dia. 

o quartel continuava calmo, nenhuma prontidão ou averiguação. no meio da tarde, o tiuzin saiu do esconderijo, embarcou no 22 e voltou para sua rota. era só esperar o dia acabando. anoitecendo a malha das camas. mais cruzadas, negrinhos e os dez casos, a corneta tocando, o final da tarde avermelhada, o corneteiro tocando, João Torto do 69!

o João apareceu amassado como uma bolinha de papel, dessas que enrugamos com as mãos e depois atiramos na careca de alguma cabeça branca. ajeitava as calças na cintura. as botinas estavam desamarradas, os cadarços encostavam no chão das pedras regulares. tive medo que o meu capitão fosse tropeçar nas cordas da botina. um condutor que não se aguenta, Sim, senhor! 

o largador deixou que ele se aproximasse, não parecia entusiasmado com a disposição do socorrista. deu um suspiro escapista, desses que não deixam dúvidas da enorme angústia de não acreditar no impossível. a voz parecia resignada quando deu a ordem de cumprimento imediato, carregava uma planilha em uma das mãos e a caneta vermelha na outra mão, O 69 vai puxá a rota da vila Boa Esperança. O 171 do Chico Baiana quebrou. Vão lá, recolham os passageiros e terminem a viagem.

É pra já!

terminou de enfiar a camisa azul dentro da calça, agachou para amarrar as botinas e produziu um som deselegante. achei nojento aquele vento me apanhando em cheio, Batatinha!

Tô aqui, quase sem respirar, virou-se, e ficamos frente a frente, os dois tínhamos os sentidos na correnteza da visão. as ventas do João dilatavam, minhas orelhas cresciam e ficavam quentes

Pronto? 

outra história começava a ser contada, Pronto!

subimos no 69

o caminhão para o carregamento encarava o portão. parado. esperando a abertura da porteira. uma pequena provocação do João, avisar que a cavalaria estava em prontidão. o motor estremeceu portas e janelas. o pé do João pesava no acelerador. a fumaça da descarga despontava preta

saímos no socorro

dois cavaleiros sem exército, desenferrujando as marchas, testando os freios. acelerando. fedendo a óleo queimado. o cavalo do ferro-velho com ferraduras pneumáticas esgotadas, o estribo recolhido, as portas fechadas. fechados em uma armadura velha, pesada e corroída. João Torto comandava o cérebro, os pedais e o volante. eu seguia ao lado, seu fiel escudeiro. cantava hinos, ria das piadas sujas, avisava das paradas e partidas, cobrava as passagens. recolhia os lucros da Anônima, aumentava a fortuna do patrão, mas não usava as correntes da escravidão, Ocê é qui pensa, miúdo.

avóinha tinha embarcado. quase fiz reza de vontade e pedi o seu desembarque. recuei do pedido, ela não ia atender minha pretensão, fiz de conta que seu assunto não era assunto do meu interesse. peguei o saquinho das moedas e distribui no caixa. depois puxei do bolso os cruzados de 10, 50 e 100. enfiei no caixa. olhei na volta do 69, o trânsito estava desapressado, quase parado. a estrada era uma arrastadura para difamar qualquer um. os cascos pneumáticos do Rocinante se moviam lentos e pausados. nossa rota tinha lugar de começo, iniciava depois do translado dos passageiros do 171 para o 69, Falta muito, João? 

ele ergueu um dos olhos para o retrovisor, depois me respondeu, Quase lá, estamos quase lá.

o quase lá do João Torto arrastou o 69 por mais vinte minutos, queimando óleo e sufocando os hostis caminhantes das ruas. quando chegamos no local do desfalecimento do 171, os passageiros estavam na beirada do fio da calçada. adivinhavam onde o 69 ficaria parado para o embarque socorrista. senti, pela primeira vez, o desejo de salvar vidas. um bombeiro. eu queria ser um bombeiro

paramos atrás do 171, junto da parada para os ônibus, Chegamos, Batatinha!

deu o aviso e puxou o freio de estacionamento do 69. desviou sua atenção do volante e virou-se todo para trás, seu sorriso mais desafiador me esperava, 
Tá pronto, guri?

Mãos à obra! 

foi a minha resposta ao seu desafio

guri coisa nenhuma, sou colega de farda e esse barco precisa dos dois. não era hora de discursos. respirei fundo, não foi nenhum suspiro. não estava atônito ou confuso. mas aquelas pessoas tinham esperado mais tempo que do costume, a paciência lhes tinha escapado. eu precisava da alma serena ou seria mais um musgo verde brotando da pedra. um querubim, Pode abrir as portas, João!

as pessoas não esperaram que as portas se abrissem totalmente para subirem reclamando, onde se viu isso, onde se viu aquilo, Uma pouca vergonha! 

era o mais delicado dos gritos, Falta de respeito! Tratam as passageiros como animais!

e eu com tudo isso. aquelas pessoas pareciam não saber que eu era o mocinho. estava ali para levar todos a salvo em algum fim de mundo, Neinho, gentileza não custa nada, tenta prová o gosto. 

não sei como, mas não foi surpresa a aparição da avóinha

Se avóinha tem certeza...

Tenta...

senti que era a professora da geografia falando pras paredes, ensinando quem não queria aprender, estava lá porque precisava estar

Senhores... senhoras... 

nenhum ouvinte, nem um aluno interessado. olhei de lado pra avóinha, ela me piscou e sorriu, Não desisti, neinho. O silêncio não qué dizê qui tudo tá ruim. Nem o falatório tagarela é aviso qui tudo tá bão.

fiz um suspiro de impaciência e fiquei em pé no meu assento de cobrador. ergui-me na pontinha dos dedos, até agarrar no corrimão aéreo, Ei! 

meus pulmões fizeram minha garganta explodir, Silêncio!

havia conseguido que ficassem quietos. e agora? não tinha planos. o João Torto me achava bisbilhoteiro. os passageiros estavam curiosos. e agora, Eu e o meu colega João viemos socorrer os passageiros do 171. Desejamos que ao chegarem a suas casas, e todos vão chegar em suas casas, nem que isso custe muitas vidas, possam sentir o cheiro gostoso do café no coador, a água da chaleira chiando, o bule, Haiti, Haiti, Haiti, tá fazendo na cozinha, tá cheirando aqui!



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