domingo, 4 de maio de 2014

O sinal da cruz e o pecado

Ensaio 1A - 2ªed
baitasar
Não sou igrejeira, dessas que abrem e fecham portas, nem tenho calos nos dedos, não uso meus dedos para segurar o rosário de contas e a sua enfiada das rezas. Mas siempre que passo na calçada da casa dos sacramentos, me deparo com qualquer cruz, tenha o tamanho que precise ter, sinto o formigamento do medo nas mãos. Preciso fazer o sinal combinado que aprendi antes de sair de la Montaña; antes de deixar o penico de barro; antes de aprender a limpar sozinha minhas sujeiras do corpo.
No tempo de menina, deixava a mão esquerda na xexéu e a direita repetia com o instinto de sobrevivência: Pai, Filho e Espírito Santo. Amém. No tempo de mulher, a mão da xexéu fica largada de lado, desinteressada, aprendeu que é pecado tocar na xexéu, mas a direita segue repetindo com o instinto do hábito. Depois de anos, o prenúncio do castigo continua como um aviso para não brincar com o sinal da cruz. Fazer o gesto em público funciona como uma tabuleta de proteção.
E quando é preciso mais alívio com os desembaraços do dia-a-dia, rezo um Pai Nosso e uma Ave Maria. Já tive necessidade de resolver coisa mais braba, então, depois do sinal da cruz, rezei três Pai Nosso e três Ave Maria, mais o Credo. Sou assim, não acredito, mas não desacredito. Meu desafogo é a cruz quando os julgamentos da lucidez me fogem e os desacordos aumentam. Acho que é um bom hábito.
Tenho outros.
Quando caminho por cruzamentos siempre evito o centro da cruz. E, por via das dúvidas, nos cruzamentos com despachos tenho o mesmo instinto de respeito. Primeiro, peço licença e faço o sinal da cruz, depois digo minha saudação
—        Salvem as bandas de lá, salvem as bandas de cá! — e cruzo pelos lados. Nunca pelo centro do cruzeiro.
Não sei se existe razão para tanto respeito e quitação de dívida, feita ou por fazer, além do medo de perder a amorosidade dos espíritos antigos. De qualquer maneira, fiz e não desfiz de rezar, faço gosto de cuidar no que piso. Siempre ajuda que a mão do auxílio não me tenha mágoas ou ganas de castigar.
Espero que a cruz e os espíritos antigos compreendam as razões por trás das escolhas que fiz. Não foram apenas para satisfazer minhas vontades ou caprichos, fiz o que fiz porque quis.
Ajudei muitas meninas.
Chegavam perdidas.
Algumas já vinham vencidas, amarguradas e solitárias. Maltratadas. Sem dormir, sem conseguir fechar os olhos. Algumas moraram na casa, outras vinham para atender a freguesia: fizeram o que fizeram porque ajudei.
Quando as meninas moravam na casa ficavam com cinquenta por cento. O melhor arranjo para as meninas era chegarem apenas para o trabalho, ficavam com setenta e cinco de tudo que ganhavam. Melhor para elas, melhor para a casa. Trabalhar sozinha na rua precisa sorte e coragem. No dias de hoje, precisa ser também maluca, mas, no fim, vai se agarrar na proteção de algum safado sem respeito. Vai ficar sem nada e virar propriedade de malandro.
Aqui, elas tinham abrigo, atenção, salvaguarda, ajuda e regalias. Cliente violento ia se entender com o Calçacurta. Esse é sério, cumpridor das suas promessas. Nunca me pediu dinheiro para deixar a casa funcionando, nem quis favor desmedido. Recebia atendimento de primeira classe, gozar e endurecer à vontade com as meninas da sua escolha. A casa tinha orgulho de servir esse homem de tanta importância, e recebia seus elogios com satisfação
—        Minha querida, na sua casa o cliente goza de prazer. Não precisa rir da piada.
Fui como as meninas. Depois, fui deixando o combate na linha de frente, não pedia nada que já não tivesse feito, mas precisava agir como uma general: dura, exigente, intransigente, disciplinada. Aceitei muito conselho do Calçacurta. O homem entendia do que falava e fazia, adorava que se babava de apanhar uma boa surra das meninas. Não reclamava. Não gemia. Não desistia. Parecia quer provar que homem apanha calado, com o bico fechado.
Entre as meninas, tinha uma mais chamadas que as outras, mas não era uma regra rígida. Não havia ciúmes entre elas. Eram os fatos da vida e se convenciam que não havia nada de mais. Eram um time. Todas tiveram oportunidade de popularidade e cheiro de dinheiro. Foram ensinadas a ficarem concentradas em ganhar dinheiro, negociar bem e serem cuidadoras.
Para ganhar bem, foi preciso aceitar muito. Topar tudo, desde que pagassem muito. Mas sem mau gosto ou barbarismo. Do contrário, nosso padrinho era chamado. Atendia com rapidez de emergência qualquer convocação. Tinha vez que sumia, depois do caso resolvido. Outras, colocava o indicador e o polegar no amaciamento do bigode, ficava pensativo, perguntava se incomodava as meninas o atendimento extra
—        Imagina! Claro que não, padrinho.
Despesas pequenas com médico ou um que outro remédio ficava na conta das meninas, mas quando o serviço precisava de mais tempo que uma visita de consultório, a despesa ficava com a casa. E muitas vezes, o padrinho encaminhava a menina com abatimento mais sério de doença para atendimento em clínica privativa.
Coisa boa que o homem mandava, não pedia e gostava das meninas e da casa. Bons tempos. Havia mais segurança e respeito. Tempo de decência e moralidade.
Uma vez, uma única vez, convocou a casa fechada para o público
—        Preciso de atendimento especial num gringo. — um graúdo das políticas estrangeiras que chegara por aqueles dias. Não precisou pedir duas vezes. Fechamos.
Mandei colocar uma tabuleta de aviso
“Fechamos para balanço. Amanhã abriremos, normalmente.”
A clientela chiou, mas não havia o que fazer. As portas foram fechadas para receber o senador político dos estrangeiros. Não me surpreendi quando vi que era gordo. Seu país se tornou um lugar de gordos. Ele tinha a língua presa e desavergonhada. Falava muito bem, imaginei que estava acostumado em vir nos visitar ou espiar. Não quis quarto nem privacidade, preferiu os acontecimentos por ali, na chegada.
O padrinho Calçacurta saiu. Resmungou que não queria constrangimentos.
A comitiva se atirou em nossos oferecimentos de prazer.
O senador parecia um homem agoniado e desassossegado que trouxe junto sua bebida. Um desavergonhado desconfiado. Ofereceu-me sua bebida. Recusei. Nunca bebia em serviço de guarda.
Soldado no quartel precisa ficar alerta.
As meninas lhe tiraram a roupa. Vi o correntão e o crucifixo balançando nos peitos gordos. Meu instinto fez a mão esquerda ficar parada ao lado do corpo. A direita subiu mecânica e precisa ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo. Amém. Nem tudo que se repete como papagaios são verdades. Pedi que a penumbra pudesse esconder a pouca vergonha daquele homem atirado pelo chão, rolando à vontade. Comeu e foi comido. Gritava maluquices enquanto as meninas se divertiam
—        A experiência anal é maravilhosa!
Foi a primeira vez que a droga entrou na casa.
Cheirava e bebia.
Um dos seus convidados, gente daqui, deu um trabalho danado na Facécia. A menina usou todos os truques no sujeito, mas nada lhe fez ficar pronto. O não endurecimento nos provoca uma sensação do dever não cumprido. Foi preciso ensinar as meninas que não existe culpa. Tem vez que dá certo, tem vez que não dá, e pronto.
Fiquei com dó do atrapalhado. A Facécia pronta, untada com vaselina, querendo, e o sujeito inutilizado. Tanto esforço, energia. O homem gritava palavrões para o seu ferramental. Lambia desajeitado a xexéu, e nada. Parecia um monólogo
—        Doutor... to ficando esfoladinha.
O desesperado ergueu o queixo, a mirou sobre os pelos e o umbigo, o rosto dela escondido pelos seios não podia ver seus olhos assustados
—        Saliva de língua é antibiótico de muitos recursos.
—        Então, continue. — foi o jeito de fazer o nobre doutor sentir utilidade de uso. A Facécia coitada, sempre foi de muita classe e muitos talentos. A paciência era um deles.

Guria com firula não vingava na casa.

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