quinta-feira, 22 de maio de 2014

histórias davóinha: Nasceu preto e escravizado 11cp

casarão canela preta


Nasceu preto e escravizado
Ensaio 11cp – 2ª edição 1ª reimpressão


baitasar



o grandão entrou na porta do fundo. ele era maior que o 69. mancava com a perna esquerda. a calça de brim desbotada, parecendo suja, ficava por cima da bota de gesso. deve ter quebrado o pé ou algo assim. marchava na direção da roleta. um passo, uma batida, Boa tarde.

Boa tarde, respondi. precisei puxar a cabeça para trás e subir o queixo

Achei que não tinham me visto. Obrigado, como se isso fosse possível, não enxergar um poste

O senhor poderia ter embarcado na frente.

Não podia, um senhor distinto, bem educado e gentil

Por que? Todos do 171 embarcaram na porta da frente.

sem afetações ensaiadas ou arroubos enfeitados, estendeu-me a mão com cem cruzados, Pegue, por favor. Ainda não havia pago a passagem.

o passageiro pagava uma tarifa de setenta e cinco cruzados. peguei seu dinheiro e lhe dei vinte e cinco cruzados. o seu troco. o grandão do pé quebrado girou a roleta até que a cabeça deu um estalo e travou. estava feita sua mudança de lugar. a sua passagem mancando do corredor do fundo para o corredor da frente. a roleta era o divisor dos compartimentos, antes e depois de pagar. um homem de bem, um exemplo de passageiro educado, se tivesse que arriscar um palpite, diria que o homem só pode ser um professor, Demora muito para prosseguirmos?

procurei nas minhas memórias tudo que avóinha havia ensinado com insistência e muita recomendação. lembrei elogios e advertências com a gentileza, repetia quase sempre que a boa educação ia abrir mais portas do que fechar. o grandão já tinha liberado o passadiço, a porteira continuava aberta, Não demora, senhor. É só o tempo de todos subirem.

tornei a virar as vistas para o largo dos enforcados. lá estava ela, parecia conversando, parecia rezando. no final, é tudo conversa, Miúdo, óiali. A árvore dos enforcado. Lugá onde upretu Josino foi enforquilhado.

olhei. não parecia sinistra nem lembrava o uso de tristeza que deram para os seus braços. braços fortes para aguentar o peso dos preto até depois do espírito ganhar soltura. A liberdade dos preto tardava, mas chegava nos braços daquela imensa árvore, Avóinha conheceu ele?

ela deu uns passos na direção de cá, voltou a ficar triste e cansada, Naquele tempo, avó era otra coisa. Num deu jeito de conhecê Josino. Mais agora, usdois, iô e ele, andamô proseando.

espetei as vistas com jeito de curiosidade nas sombras das árvores, Ele tá aqui?

avóinha balançou a cabeça do jeito que mostrava sua tristeza e enjoava o espírito sem um corpo, até que se balançou e chorou, Num tá. Inda bem qui num tá. é muntu tempo pra ficá pendurado, aquele choro não tinha lágrima, mas tinha a dor descida na estrada das águas. um caminho de sofrimentos, abandonos e mortes, ele jurô qui num coloca mais o gargalo da boca aqui, um pomá dipretu.

E o que ele fez?

avóinha me fez um olhar que nunca tinha visto, forças violentas lhe escapavam das vistas, como os ventos empurram as águas até a praia do arco-íris, empilhando os grãos um por cima do outro. o inferno bem que podia ser assim: os corpos empilhando, as ondas de fogo lambendo os grãos empilhados, marés irascíveis e coléricas, Nasceu pretu e escravizado. Assim, foi trabaiá na feitura da igreja santa.

não era essa a resposta que eu queria, mas não adiantava retrucar. avóinha come o mingau fervendo, pelas beiradas. o preto josino, por certo, tinha sido acusado de crime e sido condenado. tinha curiosidade de saber do crime de preto que fez o josino ficar pendurado na forca. mas tinha que esperar pelo complemento e do jeito que avóinha gostava de responder

não sabia de nenhuma igreja santa. até pode ser que tenha, mas é mais comum de existir homem santo do que lugar santo, Onde é a tal igreja santa?

pareceu um não sei o que quando me olhou antes de responder, Já vi qui ocê num conhece nada de nadica. Tem qui sabê procurá os esclarecimento informativo. Sentado nesse balcão ocê virô alvo dos zombeteiro.

tinha vez que davó parecia querer me impacientar. quando era assim, eu acabava dando menor importância para as conversas da avóinha, Fecha atrás, João! Vamos embora!

os passageiros aplaudiram minhas ordens. eu dando ordens. as coisas sobem pra cabeça. acabara de ter meus quinze segundos de fama e não foi preciso cantar ou me mostrar uma caricatura engraçada. o 69 não tinha mais lugares vazios para sentar. o senhor grandão se foi pelo corredor com o gargalo da boca dobrado, mancando, 1 e 2. olhando para o chão. calmo. calado. não havia muitos lugares no corredor. ninguém levantou para que pudesse sentar. chegou embaixo do alçapão no teto. enfiou a cabeça naquele quadrado da ventilação. endireitou o pescoço. os ombros do grandão roçando o corrimão pendurado no telhado de lata. fechei os olhos.

a cabeça que carrego nos ombros balançou, não pude evitar os pensamentos da história acontecida e da história se passando. o grandão com o pescoço esticado no alçapão, o josino com o pescoço esticado na ponta da corda, apertado pelo nó que se fechou. quebrado. ninguém se importa com o professor, muito menos com o preto josino.

um outro tipo parou ao lado do sujeitão. não alcançava o corrimão aéreo. um sujeito pequenino que tentou uma vez pegar o corrimão aéreo, ficou na pontinha dos pés e não passou disso, desistiu. jamais alcançaria no pega-mão do céu. desisti. eu nem teria tentado. acho que só eu conseguia entender sua frustração com os risos contidos e olhares de pena. encostou a cabeça no sujeitão e dormiu. o filho protegido pelo pai. escorado.

lá fora, escurecendo. os pretos continuavam pendurados no pomar de pretos. mais de duzentos anos amarrados pelo pescoço nos cabides daquelas árvores. esperando que a história fosse contada. a memória zanzando perdida. ainda vá ter o dia que o branco vem e corta a memória. sinto raiva do silêncio da história. já tivemos pena de morte na villa que serviu de uso nos preto.

o joão torto arrancou o 69 do largo dos enforcados.

avóinha ficou. não quis subir. queixou-se que tava toda perfumada e a multidão encharcou o caminhão com suor e falação. parecia tristinha. calada. o rocinante trotava como um galante e idoso soldado aposentado chamado às pressas ao combate.

outra parada, mais passageiros. nenhum desceu.

uma senhora pendurada com sua bolsa no ombro. muito descuidada. uma tentação para qualquer um. acho que já vi essa senhora, mas sou muito ruim para lembrar pessoas. a bolsa pendurada no ombro, a mão agarrada no corrimão aéreo. continuava se aproximando. acho que vai ter dificuldades com a roleta. as larguras de uma e de outra não combinavam. é isso. eu sabia. é a professora da biblioteca. muito querida, Boa tarde, professora.

olhou para mim, surpresa. mas respondeu com educação. e não poderia ser diferente, os professores são sempre muito educados. mudam um pouquinho quando estão com os alunos, mas também, com esses pequenos bagunceiros não há cristão que resista, Boa tarde, estendeu-me o valor da passagem enquanto se ajeitava para passar na roleta. parou. não desistiu, apenas parou. olhou-me diretamente, pude perceber a sua curiosidade e o seu problema com rostos e nomes. o seu problema é o meu problema professora, O senhor foi meu aluno?

ela precisava saber como eu a conhecia, Não, fui econômico, aprendi com davó, a melhor professora de todas, esses jeitos de desacomodar o conforto de quem acha que sabe tudo

Imaginei que não. Eu lembraria.

foi a minha vez de sentir o que não foi dito. claro, ela lembraria. quem esqueceria um aluno anão e negro? um rabanete preto marcaria sua memória, chamaria sua atenção respondendo a chamada do início da aula. sofri com a cena que poderia estar acontecendo em sua cabeça agora, mesmo que não tenha existido, mas se não existiu antes, tá acontecendo aqui, bem na minha frente

Tô aqui, professora, Onde? Onde, meu querido? Meu restinho de gente..., o pescoço esticado como um farol salva-vidas

não poderia esquecer. ninguém esquece

A senhora não lembra porque eu não gostava de ir à biblioteca, foi a minha vez de regatear com as memórias dela

Que pena, Não gostava de ler, E agora, gosta?

Assim, assim...

É ... parece que ninguém gosta mais de ler, coloquei a mão na roleta para oferecer minha ajuda de força. um pequeno ajeito daqui e dali, pronto, passou

Obrigada, querido, Obrigado, por tudo que a senhora me ensinou, Tá bem. Tchau.

não havia lugares desocupados no corredor. a terceira fileira começou a ser formada. o chão de lata tava atravancado com pés e sapatos, Por favor, mais um passinho à frente.

passinhos, empurrões, apertos. uns mais juntos que outros. as mãos no corrimão aéreo, nos bolsos, nas bolsas, nas coxas, Psiu, Pensei que avóinha não tinha embarcado.

ela soltou a gargalhada da faceirice. as tristezas tinham ficado lá atrás, E num tinha.

avóinha tava bem ali, na minha frente, sentada na roleta. elegante. bonita. os olhos tavam na cor da bisbilhotice, a brilhadura do brilho que embelezava tudo




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