terça-feira, 23 de janeiro de 2018

21.O Estrangeiro: "É certo que matei" - Albert Camus

Albert Camus


SEGUNDA PARTE


Capítulo 4


21. "É certo que matei"



  À TARDE, os grandes ventiladores continuavam a agitar a atmosfera espessa da sala, como os leques multicolores dos jurados continuavam a ser abanados na mesma direção. O discurso do meu advogado parecia não ter fim. Num momento dado, no entanto, ouvi-o dizer: "É certo que matei". Depois prosseguiu no mesmo tom, dizendo "eu", cada vez que falava de mim. Eu estava muito admirado. Debrucei-me para um dos polícias e perguntei-Lhe porquê. Mandou-me calar e, instantes depois, acrescentou: "Todos os advogados fazem o mesmo". Mas a mim, parecia-me que isso era afastar-me ainda um pouco mais do caso, reduzir-me a zero e, de um certo ponto de vista, substituir-se à minha pessoa. O certo é que eu, no fim de contas, estava já muito longe deste tribunal. O meu advogado, aliás, pareceu-me ridículo. Depois de ter falado rapidamente da provocação, pôs-se igualmente a falar da minha alma. Mas creio que tinha muito menos talento do que o procurador. "Também eu, afirmou, me debrucei sobre esta alma, mas ao contrário do eminente representante do Ministério Público, encontrei alguma coisa e posso dizer que li como num livro aberto". Lera que eu era um bom homem, um trabalhador metódico, infatigável, fiel à casa que me empregava, amado por todos, comparticipando das misérias dos outros. Para ele, eu era um filho modelo, que sustentara a mãe até mais não poder. Finalmente, esperara que uma casa de recolhimento desse à velha senhora o conforto que os meus meios não permitiam oferecer-lhe. "Muito me espanto, acrescentou, que tenham feito tanto barulho em volta desse asilo. Porque afinal, se fosse preciso dar uma prova da utilidade e da grandeza destas instituições, teríamos que acentuar que são subvencionadas pelo próprio Estado". 

Não falou, porém, no enterro e eu senti que isto era uma lacuna da defesa. Mas por causa de todas estas extensas frases, de todos estes dias e horas intermináveis durante os quais tanto se tinha falado da minha alma, tive a impressão que tudo se transformava como que numa água incolor que me causava vertigens. 

Para o fim, lembro-me unicamente de que na rua e através de todo o espaço das salas e das tribunas, enquanto o meu advogado continuava a falar, eu ouvia a buzina do vendedor de gelados. Assaltaram-me as recordações de uma vida que já não me pertencia, mas onde encontrara as mais pobres e as mais tenazes das minhas alegrias: odores do verão, do bairro que eu amava, um certo céu ao anoitecer, o riso e os vestidos de Maria. Tudo quanto neste lugar eu fazia de inútil subiu-me então à garganta e só tive uma pressa: acabar depressa com isto e voltar à minha cela, onde ia poder dormir. Mal ouvi o advogado gritar, para concluir, que os jurados não quereriam certamente condenar à morte um trabalhador honesto, perdido por um minuto de desvario, e pedir as circunstâncias atenuantes para um crime cujo remorso eterno, o mais severo dos castigos, eu trazia já comigo. O tribunal suspendeu a audiência e o advogado sentou-se, com um ar estafado. Mas os colegas foram nesta altura apertar-lhe a mão. 

Ouvi: 

"Esplêndido, meu caro". Um deles voltou-se mesmo para mim, como a pedir a minha opinião: "Hem?" Assenti, mas não era sincero, porque estava extremamente cansado. 

No entanto a hora declinava, lá fora, e o calor não era tão grande. A certos barulhos da rua que chegavam até mim, adivinhava já a doçura do fim de tarde. Estávamos ali, todos, à espera. E o que esperávamos todos juntos, na realidade só me dizia respeito a mim. Voltei a olhar para a sala. 

Estava tudo no mesmo estado do primeiro dia. 

Cruzei com os olhares do jornalista de cinzento e da mulher-autômato. Isto lembrou-me que, durante todo o processo, não olhara uma única vez para Maria. Não a esquecera, mas estivera muito ocupado. Estava entre Celeste e Raimundo. Fez-me um pequeno sinal, como se dissesse: "Enfim!" e vi surgir um sorriso, na sua cara ansiosa. Mas sentia-me com o coração fechado, e nem sequer fui capaz de lhe corresponder ao sorriso. 

Os juízes regressaram. Leram aos jurados, muito depressa, uma série de pontos principais do processo. Ouvi "culpado de crime"... "provocação"... "circunstâncias atenuantes". Os jurados saíram e levaram-me para a salinha onde já tinha estado à espera. O meu advogado veio ter comigo: estava muito eloquente e falou-me com mais confiança e mais cordialidade do que nunca. Pensava que tudo correria bem e que me sairia com alguns anos de prisão. Perguntei-lhe se havia probabilidades de derrogação, no caso de uma sentença desfavorável. Respondeu que não. A tática que seguira, fora a de não indispor o júri. Explicou-me que não se derroga um processo sem mais nem menos, por nada! Isto pareceu-me evidente e inclinei-me diante destas razões. Considerando friamente a coisa, era perfeitamente natural. Caso contrário, haveria uma sobrecarga de papeladas inúteis. "De todos os modos, disse-me o meu advogado, pode-se apelar. Mas estou convencido de que o desfecho será favorável". 

Esperamos muito tempo, julgo que bem uns três quartos de hora: Ao fim deste tempo, retiniu a campainha. O meu advogado deixou-me, dizendo: "O presidente do júri vai ler as respostas. Só o mandarão entrar quando a sentença for pronunciada". Ouviram-se portas a bater. Corriam pessoas por escadas abaixo, não sei se longe, se perto de onde eu estava. Depois escutei uma voz surda ler qualquer coisa na sala. Quando a campainha tocou e que a porta se abriu, subiu até mim o silêncio da sala, o silêncio e a singular sensação que experimentei quando olhei para o jovem jornalista e reparei que pela primeira vez afastava os olhos de mim. Não olhei para o lado de Maria. Não tive tempo, aliás, pois o presidente disse-me de um modo estranho que me cortariam a cabeça numa praça pública em nome do povo francês. Pareceu-me então reconhecer o sentimento que lia em todas as caras. Julgo que era a consideração. Os polícias mostravam-se muito amáveis comigo. O advogado pôs-me a mão num pulso. Já não conseguia pensar. Mas o presidente perguntou se eu queria declarar alguma coisa. Refleti. Disse: "Não". Foi então que me levaram.





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A Constatação do Absurdo

Nascido e criado entre contrastes fundamentais, Albert Camus desde cedo aprendeu que a miséria engendra uma solidão que lhe é típica, uma austeridade toda sua, uma desconfiança da vida - mas a paisagem desperta uma rica sensualidade, uma eufórica sensação de onipotência, um orgulho desmedido de possuir a beleza inteiramente gratuita. Este aprendizado, feito a meio caminho entre a miséria e o sol, levou-o à consciência do que existe de mais trágico na condição humana: o absurdo, essa irremediável incompatibilidade entre as aspirações e a realidade.


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Camus, Albert, 1913-1960.
              O Estrangeiro
Título Original L'Étranger
Tradução de António Quadros
Edição Livros do Brasil
Lisboa
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