quarta-feira, 3 de janeiro de 2018

Gente Pobre - 22. ninguém pode fugir ao seu destino - Dostoiévski

Fiódor Dostoiévski


22.




28 de julho


Minha querida Bárbara:




Ah! Bárbara, querida Bárbara! Desta vez a culpa é toda sua e há de pesar-lhe na consciência. A sua carta arrumou com os últimos laivos de superioridade que ainda me restavam e deixou-me por completo desnorteado. Só agora pude pensar em tudo calmamente e lançar um olhar introspetivo para o meu coração, tendo verificado que a razão estava do meu lado. Razão de sobra. Não quero referir-me agora aos meus três dias de loucura (seja boa, querida; não falemos mais nestas coisas!); limito-me apenas a insistir no afeto que lhe consagro e a afirmar que este sentimento nada tem de absurdo. Não, de modo nenhum. Mas, minha querida, ainda não sabe tudo. Se soubesse como isso foi, como comecei a gostar de si, falaria de outro modo. Agora fala assim, mas estou convencida de que intimamente pensa outra coisa. Passam-lhe pela cabeça essas ideias, mas não as sente. 

Quanto ao incidente com os oficiais, para lhe ser franco, nem sei bem como aquilo foi. Devo observar-lhe que nessa altura atravessava uma crise terrível. Imagine que havia já um mês que eu andava, por assim dizer, suspenso por um fio. Encontrava-me numa situação tão aflitiva que não sabia que rumo dar à minha vida. Ocultava-lhe tudo, e aqui em casa procurava também que ninguém o percebesse; mas a patroa encarregava-se de pôr toda a gente ao facto do que se passava. Isso não me incomodaria muito e teria deixado essa desavergonhada dizer o que lhe apetecesse; mas, em primeiro lugar, isso era uma vergonha e, em segundo, saiba que ela estava ao corrente das nossas relações de amizade, não sei como, e dizia cá em casa tais coisas a nosso respeito, que eu ficava atordoado e me via obrigado a tapar os ouvidos. O caso é que as outras pessoas não os tapavam, antes os abriam o mais possível. Mesmo agora, não sei onde me esconder deles. 

Na verdade, este conjunto de circunstâncias desagradáveis, até então para mim desconhecidas, deixaram-me desnorteado. Soube depois, por Fédora, que um tipo indigno aparecera em vossa casa e a insultara com uma vil proposta. A dor que tal ofensa lhe deve ter causado, avalio-a bem, minha querida, por mim próprio, porquanto isso me feriu também profundamente. Então, como que me fugiu a razão e perdi a cabeça. Nunca me senti tão encolerizado, querida Bárbara. O meu primeiro movimento foi correr a toda a pressa em busca daquele sedutor, para quem nada havia de sagrado no mundo. Para ser franco, porém, não sei o que pretendia; queria, sim, obstar a que a ofendessem. Que tristeza! Chovia e o chão estava coberto de lama, e no coração sentia uma mágoa imensa. Quis regressar a casa, mas eis que não me aguentei nas pernas e... Encontrei-me com Emelia, o Emelia Ilich, que é companheiro de ofício, ou antes, era, porque agora já não é; despediram-no, ignoro porquê. Não sei em que trabalha presentemente, mas ele já deve ter conseguido alguma coisa... Depois Emelia agarrou-se a mim e acompanhou-me. Sim, devo contar-lhe tudo, querida Bárbara, embora não lhe causem alegria alguma os infortúnios e faltas do seu amigo, o relato de todas as minhas desventuras. Daí a três dias, ao anoitecer, animado por Emelia — Deus lhe perdoe! —, fui ter com o oficial, cujo endereço soubera por intermédio do nosso criado. Vem agora a propósito dizer-lhe, querida, que eu trazia, havia muito, esse rapaz debaixo de olho; já quando ele se encontrava hospedado aqui, eu o vigiava. Agora compreendo que não me conduzi lá muito bem, pois não me encontrava muito fixe quando fui a sua casa. E depois, francamente, não sei o que se passou. Lembro-me apenas de que estava acompanhado de muitíssimos empregados, embora talvez eu naquela altura visse tudo em duplicado. Tão pouco me recordo das palavras que lhe dirigi, lembrando-me apenas de que, preso de nobre indignação, falei pelos cotovelos. Por fim, puseram-me fora da porta, empurrando-me pelas escadas abaixo, isto é, eu é que me atirei, esta é que é a verdade. Como vim ter a casa, isso não sei. E eis tudo, querida Bárbara. O resto já o conhece. Rebaixei-me muito, sem dúvida, a minha reputação ficou um pouco abalada com isto; mas ninguém tem conhecimento de tudo o que sucedeu, nenhum estranho, além da minha boa amiga. Assim, afinal de contas, é como se nada se houvesse passado. Será, porventura, da mesma opinião, querida Bárbara? Que me diz? A única coisa que sei ao certo é que, no ano passado, um dos hóspedes daqui, Aksenti Osipovicth, fez o mesmo a Pedro Petrovitch, mas em segredo. Convidou-o a ir até ao quarto da guarda — eu, por acaso, presenciei tudo — e logo que o apanhou ali, disse-lhe o que entendeu, mas educadamente, sem fazer barulho, de modo que só eu, como já referi, tive conhecimento da cena. O fato de eu estar ao corrente do caso não importa, pois se alguém me fizesse perguntas a tal respeito, limitar-meia a afirmar que nada ouvira, de modo que era a mesma coisa que de nada soubesse. Pois, a seguir a isso, as relações entre ambos não se alteraram. Como sabe, Pedro Petrovitch é muito orgulhoso e teve o máximo cuidado em não contar nada a ninguém. Agora, cumprimentam-se e até se apertam a mão, quando se encontram, tal como se entre eles nada se tivesse passado. 

Lá que me rebaixei muito e — o que é mais lamentável — fiquei muito diminuído na minha dignidade, isso compreendo e estou plenamente de acordo consigo, minha boa amiga. Mas não há dúvida de que isto já devia estar escrito desde o meu nascimento, seria certamente a minha sina e, como sabe, ninguém pode fugir ao seu destino. 

Aqui tem, pois, querida Bárbara, o relato pormenorizado de todas as minhas atribulações e infortúnios. Como vê, são de tal marca, que melhor será não falar mais neles. Sinto-me um pouco doente, meu amor, e perdi toda a minha boa disposição. Dou por terminada esta, reiterando-lhe a certeza dos meus sentimentos de afeto, estima e respeito. 

Seu muito humilde criado



Makar Dievuchkin








29 de julho


Meu querido Makar Alexeievitch:




Li as suas duas últimas cartas, que me fizeram sofrer imenso. Meu Deus! Ou o meu bom amigo me oculta alguma coisa, descrevendo-me apenas uma parte dos seus infortúnios, ou então, Makar Alexeievitch, não compreendi nada do que nelas diz... Venha, hoje, ver-me, por amor de Deus! Venha do trabalho direito aqui e janta connosco, ouviu? Não sei que vida é a sua agora aí, nem como se arranja com a patroa. Não se refere a isso nas suas cartas e tenho a impressão de que o faz de propósito. 

Até à vista, meu bom amigo; não falte. Seria mesmo preferível vir sempre comer connosco. 

A Fédora cozinha muito bem. Até logo, pois. 

Sua



Bárbara Dobroselof





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Esse é o tipo de livro que modifica algo na gente. “Pobre gente” foi o primeiro romance de Dostoievski, começou a escrever em 1844 e terminou no ano seguinte. O personagem Makar Dévushkin, um auxiliar administrativo que leva trinta anos copiando documentos, mora numa pensão humilde, seu pequeno quarto fica ao lado da cozinha, é o que pode pagar com o seu salário também minúsculo. O frio e a frieza de uma sociedade que ignora os pobres. Crítica social contundente, comendo pelas beiradas narrativas. Segundo alguns historiadores, uma das obras que mandou o autor para a cadeia siberiana. Eram os 25 anos de um gênio então já se apurando na escrita, despertando assim, para sentir seu tempo e as humilhações da época, desesperos; um olhar sobre todas as coisas da sofrida gente. Triste narrativa pungente da condição humana em torno desses dois personagens, como vítimas de fatalidades da vida numa sociedade onde poucos conseguem realmente sair do ramerão, e onde muitos se movem numa crueldade austera entre si, forçada pelas inóspitas condições em que vivem. Makar e Varenka vivem um amor idílico ensombrado pelo que os circunda (Makar é muito mais velho que Varenka), agravando as suas próprias condições a um nível desesperador e quase doentio, mas sempre com alguma perspectiva de esperança fundadas em ilusões muitas das vezes patéticas, algo falsamente ingênuas, ilustrativas, no entanto, ao alcance do coração humano que tudo pode sonhar, sem se importar com as verdadeiras condições em que se encontra, principalmente nessas condições por assim dizer desprezíveis.



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Fiódor Dostoiévski

GENTE POBRE

Título original: Bednye Lyudi (1846)

Tradução anônima 2014 © Centaur Editions

centaur.editions@gmail.com


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