quinta-feira, 4 de janeiro de 2018

O Segundo Sexo - 17. Fatos e Mitos: Temos aqui a chave de todo o mistério

Simone de Beauvoir



17. Fatos e Mitos


Segunda Parte
História

CAPITULO I


I


 : t
emos aqui a chave de todo o mistério




O MUNDO sempre pertenceu aos machos. Nenhuma das razões que nos propuseram para explicá-lo nos pareceu suficiente. É revendo à luz da filosofia existencial os dados da pré-história e da etnografia que poderemos compreender como a hierarquia dos sexos se estabeleceu. Já verificamos que, quando duas categorias humanas se acham em presença, cada uma delas quer impor à outra sua soberania; quando ambas estão em estado de sustentar a reivindicação, cria-se entre elas, seja na hostilidade, seja na amizade, sempre na tensão, uma relação de reciprocidade. Se uma das duas é privilegiada, ela domina a outra e tudo faz para mantê-la na opressão. Compreende-se pois que o homem tenha tido vontade de dominar a mulher. Mas que privilégio lhe permitiu satisfazer essa vontade?

As informações que fornecem os etnógrafos acerca das formas primitivas da sociedade humana são terrivelmente contraditórias e tanto mais quanto eles são mais bem informados e menos sistemáticos. É singularmente difícil ter uma ideia da situação da mulher no período que precedeu o da agricultura. Não se sabe sequer se, em condições de vida tão diferentes das de hoje, a musculatura da mulher, seu aparelho respiratório, não eram tão desenvolvidos como os do homem. Duros trabalhos eram-lhe confiados e, em particular, ela é que carregava os fardos. Entretanto, este último fato é ambíguo: é possível que essa função lhe fosse determinada para que, nos comboios, o homem conservasse as mãos livres a fim de defender-se contra os agressores ocasionais, indivíduos ou animais.

Seu papel era portanto o mais perigoso e o que exigia mais vigor. Parece, entretanto, que em muitos casos as mulheres eram bastante robustas e resistentes para participar das expedições dos guerreiros. Segundo as narrativas de Heródoto, as descrições relativas às amazonas do Daomé e muitos outros testemunhos antigos e modernos, aconteceu mulheres tomarem parte em guerras e vinditas sangrentas. Mostravam nessas ocasiões a mesma coragem e a mesma crueldade que os homens. Citam-se algumas que mordiam ferozmente o fígado de seus inimigos. Apesar de tudo, é provável que, então como hoje, os homens tivessem o privilégio da força física. Na era da maça e das feras, na era em que as resistências da Natureza atingiam um ponto máximo e as ferramentas eram as mais elementares, essa superioridade devia ter uma enorme importância. Em todo caso, por robustas que fossem as mulheres, na luta contra o mundo hostil as servidões da reprodução representavam para elas um terrível handicap: conta-se que as amazonas mutilavam os seios, o que significava que, pelo menos durante o período de sua vida guerreira, recusavam a maternidade. Quanto às mulheres normais, a gravidez, o parto, a menstruação diminuíam sua capacidade de trabalho e condenavam-nas a longos períodos de impotência. Para se defender contra os inimigos, para assegurar sua manutenção e a da prole, elas necessitavam da proteção dos guerreiros, e do produto da caça, da pesca a que se dedicavam os homens; como não havia evidentemente nenhum controle dos nascimentos, como a Natureza não assegura à mulher períodos de esterilidade como às demais fêmeas de mamíferos, as maternidades repetidas deviam absorver a maior parte de suas forças e de seu tempo. Não eram capazes de assegurar a vida dos filhos que pariam. E eis um primeiro fato de pesadas consequências: os primeiros tempos da espécie humana foram difíceis. Os povos coletores, caçadores e pescadores só extraíam do solo parcas riquezas e à custa de duros esforços. Nasciam crianças demais em relação aos recursos da coletividade; a fecundidade absurda da mulher impedia-a de participar ativamente na ampliação desses recursos, ao passo que criava indefinidamente novas necessidades. Imprescindível à perpetuação da espécie, perpetuava-se de maneira exagerada: o homem é que assegurava o equilíbrio da reprodução e da produção. Assim, a mulher não tinha sequer o privilégio de manter a vida em face do macho procriador; não desempenhava o papel do óvulo em relação ao espermatozoide, da matriz em relação ao falo; só tinha uma parte no esforço da espécie humana por perseverar em seu ser, e era graças ao homem que esse esforço se realiza concretamente.

Entretanto, como o equilíbrio da produção-reprodução consegue sempre estabelecer-se, ainda que à custa de infanticídios, de sacrifícios, de guerras, homens e mulheres do ponto de vista da sobrevivência coletiva são igualmente necessários. Poder-se-ia mesmo supor que, em certos estágios de abundância alimentar, seu papel protetor e nutritivo tenha subordinado o macho à muIher-mãe. Há fêmeas animais que encontram na maternidade uma completa autonomia; por que a mulher não conseguiu fazer disso um pedestal? Mesmo nos momentos em que a humanidade reclamava mais asperamente maior número de nascimentos, a necessidade de mão-de-obra superando a de matérias-primas a explorar, mesmo nas épocas em que a maternidade foi mais venerada, não permitiu ela que as mulheres conquistassem o primeiro lugar (1). A razão está em que a humanidade não é uma simples espécie natural: ela não procura manter-se enquanto espécie; seu projeto não é a estagnação: ela tende a superar-se.



(1) A sociologia não dá mais crédito, hoje, às elucubrações de Baschoffen.


As hordas primitivas quase não se interessavam pela sua posteridade. Não estando fixadas em um território, nada possuindo, não se encarnando em nenhuma coisa estável, não podiam ter nenhuma ideia concreta da permanência. Não tinham a preocupação de sobreviver a si mesmas e não se reconheciam na sua descendência: não temiam a morte e não reclamavam herdeiros; os filhos constituíam para elas um encargo e não uma riqueza; a prova está em que os infanticídios foram numerosos entre os povos nômades e muitos recém-nascidos que não eram exterminados morriam por falta de higiene em meio à indiferença geral. A mulher que engendra não conhece pois o orgulho da criação; sente-se o joguete passivo de forças obscuras e o parto doloroso é um acidente inútil e até importuno. Mais tarde, deu-se maior importância ao filho. Contudo, engendrar, aleitar não são atividades, são funções naturais; nenhum projeto nelas se empenha. Eis por que nelas a mulher não encontra motivo para uma afirmação altiva de sua existência: ela suporta passivamente seu destino biológico. Os trabalhos domésticos a que está voltada, porque só eles são conciliáveis com os encargos da maternidade, encerram-na na repetição e na imanência; reproduzem-se dia após dia sob uma forma idêntica que se perpetua quase sem modificação através dos séculos: não produzem nada de novo. O caso do homem é radicalmente diferente; ele não alimenta a coletividade à maneira das abelhas operárias mediante simples processo vital e sim com atos que transcendem sua condição animal. O homo faber é desde a origem dos tempos um inventor: já o bastão e a maça com que se arma para derrubar os frutos ou derriar os animais, são instrumentos com os quais ele aumenta seu domínio sobre o mundo. Não se atém a transportar para o lar peixes pegados nas águas, cumpre-lhe primeiramente assenhorear-se destas fabricando pirogas: para apossar-se das riquezas do mundo, ele anexa o próprio mundo. Nessa ação, experimenta seu poder: põe objetivos, projeta caminhos em direção a eles, realiza-se como existente. Para manter, cria; supera o presente, abre o futuro. Eis porque as expedições de caça e pesca assumem um caráter sagrado. Acolhem-se os seus êxitos com festas e triunfos; o homem neles conhece sua humanidade. Esse orgulho, ele o manifesta ainda hoje quando constrói uma barragem, um arranha-céu, uma pilha atômica. Não trabalhou somente para conservar o mundo dado: dilatou-lhes as fronteiras, lançou bases de um novo futuro.

Sua atividade tem outra dimensão que lhe dá sua suprema dignidade, e ela é amiúde perigosa. Se o sangue não passasse de alimento, não teria mais valor que o leite; mas o caçador não é um carniceiro: na luta contra os animais selvagens corre riscos. O guerreiro põe em jogo a própria vida para aumentar o prestígio da horda e do clã a que pertence. Com isso, prova de maneira convincente que a vida não é para o homem o valor supremo, que ela deve servir a fins mais importantes do que ela própria. A maior maldição que pesa sobre a mulher é estar excluída das expedições guerreiras. Não é dando a vida, é arriscando-a que o homem se ergue acima do animal; eis por que, na humanidade, a superioridade é outorgada não ao sexo que engendra e sim ao que mata.

Temos aqui a chave de todo o mistério. No nível da biologia é somente criando-se inteiramente de novo que uma espécie se mantém; mas essa criação não passa de uma repetição da mesma Vida sob formas diferentes. É transcendendo a Vida pela Existência que o homem assegura a repetição da Vida: com essa superação, ele cria valores que denegam qualquer valor à repetição simples. No animal, a gratuidade, a variedade das atividades do macho permanecem vãs porque nenhum projeto o habita; quando não serve a espécie, o que faz não é nada; ao passo que, servindo a espécie, o macho humano molda a face do mundo, cria instrumentos novos, inventa, forja um futuro. Pondo-se como soberano, ele encontra a cumplicidade da própria mulher, porque ela é também um existente, ela é habitada pela transcendência e seu projeto não está na repetição e sim na sua superação em vista de um futuro diferente; ela acha no fundo de seu ser a confirmação das pretensões masculinas. Associa-se aos homens nas festas que celebram os êxitos e as vitórias dos machos. Sua desgraça consiste em ter sido biologicamente votada a repetir a Vida, quando a seus próprios olhos a Vida não apresenta em si suas razões de ser e essas razões são mais importantes do que a própria vida.

Certas passagens da dialética com que Hegel define a relação do senhor com o escravo se aplicariam muito melhor à relação do homem com a mulher. O privilégio do senhor, diz, vem de que afirma o Espírito contra a Vida pelo fato de arriscar sua vida; mas, na realidade, o escravo vencido conheceu o mesmo risco, ao passo que a mulher é originalmente um existente que dá a Vida e não arrisca sua vida: entre ela e o macho nunca houve combate. A definição de Hegel aplica-se singularmente a ela. "A outra [consciência] é a consciência dependente para a qual a realidade essencial é a vida animal, isto é, o ser dado por uma entidade outra." Mas essa relação distingue-se da relação de opressão porque a mulher visa e reconhece, ela também, os valores que são concretamente atingidos pelo homem: ele é que abre o futuro para o qual transcende. Em verdade, as mulheres nunca opuseram valores femininos aos valores masculinos; foram os homens, desejosos de manter as prerrogativas masculinas, que inventaram essa divisão: entenderam criar um campo de domínio feminino — reinado da vida, da imanência — tão-somente para nele encerrar a mulher; mas é além de toda especificação sexual que o existente procura sua justificação no movimento de sua transcendência: a própria submissão da mulher é a prova disso. O que elas reivindicam hoje é serem reconhecidas como existentes ao mesmo título que os homens e não de sujeitar a existência à vida, o homem à sua animalidade.

Uma perspectiva existencial permitiu-nos, pois, compreender como a situação biológica e econômica das hordas primitivas devia acarretar a supremacia dos machos. A fêmea, mais do que o macho, é presa da espécie; a humanidade sempre procurou evadir-se de seu destino específico; pela invenção da ferramenta, a manutenção da vida tornou-se para o homem atividade e projeto, ao passo que na maternidade a mulher continua amarrada a seu corpo, como o animal. É porque a humanidade se põe em questão em seu ser, isto é, prefere razões de viver à vida, que perante a mulher o homem se pôs como senhor; o projeto do homem não é repetir-se no tempo, é reinar sobre o instante e construir o futuro. Foi a atividade do macho que, criando valores, constituiu a existência, ela própria, como valor: venceu as forças confusas da vida, escravizou a Natureza e a Mulher. Cabe-nos ver agora como essa situação se perpetuou e evoluiu através dos séculos. Que lugar deu a humanidade a essa parte de si mesma que em seu seio se definiu como o Outro? Que direitos lhe reconheceram? Como a definiram os homens?



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O SEGUNDO SEXO
SIMONE DE BEAUVOIR

Entendendo o eterno feminino como um homólogo da alma negra, epítetos que representam o desejo da casta dominadora de manter em "seu lugar", isto é, no lugar de vassalagem que escolheu para eles, mulher e negro, Simone de Beauvoir, despojada de qualquer preconceito, elaborou um dos mais lúcidos e interessantes estudos sobre a condição feminina. Para ela a opressão se expressa nos elogios às virtudes do bom negro, de alma inconsciente, infantil e alegre, do negro resignado, como na louvação da mulher realmente mulher, isto é, frívola, pueril, irresponsável, submetida ao homem.

Todavia, não esquece Simone de Beauvoir que a mulher é escrava de sua própria situação: não tem passado, não tem história, nem religião própria. Um negro fanático pode desejar uma humanidade inteiramente negra, destruindo o resto com uma explosão atômica. Mas a mulher mesmo em sonho não pode exterminar os homens. O laço que a une a seus opressores não é comparável a nenhum outro. A divisão dos sexos é, com efeito, um dado biológico e não um momento da história humana.

Assim, à luz da moral existencialista, da luta pela liberdade individual, Simone de Beauvoir, em O Segundo Sexo, agora em 4.a edição no Brasil, considera os meios de um ser humano se realizar dentro da condição feminina. Revela os caminhos que lhe são abertos, a independência, a superação das circunstâncias que restringem a sua liberdade.


4.a EDIÇÃO - 1970
Tradução
SÉRGIO MILLIET
Capa
FERNANDO LEMOS
DIFUSÃO EUROPÉIA DO LIVRO
Título do original:
LE DEUXIÊME SEXE
LES FAITS ET LES MYTHES
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Segundo Sexo é um livro escrito por Simone de Beauvoir, publicado em 1949 e uma das obras mais celebradas e importantes para o movimento feminista. O pensamento de Beauvoir analisa a situação da mulher na sociedade.

No Brasil, foi publicado em dois volumes. “Fatos e mitos” é o volume 1, e faz uma reflexão sobre mitos e fatos que condicionam a situação da mulher na sociedade. “A experiência vivida” é o volume 2, e analisa a condição feminina nas esferas sexual, psicológica, social e política.


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Leia também:

O Segundo Sexo - 12. Fatos e Mitos: a mulher é uma fêmea na medida em que se sente fêmea


O Segundo Sexo - 13. Fatos e Mitos: quando a observação descobre tantas anomalias quantos casos normais


O Segundo Sexo - 14. Fatos e Mitos: o próprio Freud admite que o prestígio do pênis explica-se pela soberania do pai


O Segundo Sexo - 15. Fatos e Mitos: A humanidade não é uma espécie animal: é uma realidade histórica


O Segundo Sexo - 16. Fatos e Mitos: as categorias impotentes para encerrar uma mulher concreta


O Segundo Sexo - 18. Fatos e Mitos: Não tem ainda os meios práticos de dominar a Mulher-Terra

O Segundo Sexo - 1 Fatos e Mitos: que é uma mulher?



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