quarta-feira, 3 de janeiro de 2018

O Brasil Nação - v1: § 44 – Involução e reação - Manoel Bomfim

Manoel Bomfim



O Brasil nação volume 1





PRIMEIRA PARTE
SEQUÊNCIAS HISTÓRICAS



capítulo 5
o acervo do império





§ 44 – Involução e reação




Os homens da ideologia liberal do Império, sobretudo os de 1860 a 75, sempre que procuravam as causas da degradação do regime, citavam a legislação de 1839-1849, em que se definiu a política conformadora do segundo Império – interpretação do ato adicional, reforma do código do processo, reinstituição do conselho de Estado... As primícias – interpretação... foram ainda na gestão Araújo Lima Vasconcelos, e demonstram, já o assinalamos, que a política do segundo reinado foi anterior a ele – entronização de Pedro II, antecipação do regime, e a que o imperador não se poderia negar. Quando viemos da história de 1826-31, parece impossível este sinistro milagre – de que, pelas artes de quase os mesmos homens, se tivesse feito, para a gloriosa onipotência do neobragantismo, mais do que o sonhara o primeiro imperador (à parte a reunião). Na desfaçatez da abjuração, destruiu-se tudo do que se conquistara em 1831-32. Fora bem pouco, mas tanto sofreram as liberdades públicas sob a legislação reatora de 1830-49, que, daí por diante, os mais avançados radicais entre os liberais faziam todo o seu liberalismo em combatê-la. Os trâmites de gestação dessas leis dá-nos a plena significação delas. Foi, sob a forma de interpretação, a primeira obra positiva de Hermeto pós traição, fecundado por Araújo Lima, para estreia do fundador da dinastia – junta do coice. Deu-se o parto antes do entremês de 1840, e, passados os 85 dias de mistificação liberal, refeitos e reforçados os Vasconcelos, Hermeto, Araújo Lima, Costa Carvalho... com os Paranaguá, Araújo Viana, José Clemente, Calmon... servidos pelo marcialismo dos feitores Lima e Silva e Andrea, não tiveram meias medidas. São as façanhas do ministério de 23 de março de 1841, onde Vilela Barbosa, liberal de Antonio Carlos, vem a ser conservador de Vasconcelos. Aí já se encontra o tenor do conservadorismo – Soares de Sousa, freio novo, para uma nação já sem ardores de ginetismo.


Dias sinistros, esses de 1841-49! Revelados os intuitos da camarilha no poder, os raros liberais de essência – os cônegos Carinho, Alencar, Otoni, Vergueiro, Feijó, José Bento... vieram a ser patriarcas invisíveis, últimos defensores, naquela geração de trânsfugas, das liberdades públicas.166  Todos os outros vêm formar o grosso dos conservadores, de Hermeto a José Clemente, cada qual mais cativo na obra de reação – leis de 23 de novembro e de 3 de dezembro de 1841, para o restabelecimento do conselho de Estado e a reforma do código do processo. Note-se: o conselho de Estado fora abolido por um dispositivo constitucional, do ato adicional. A nação, que não pudera acompanhar a vertiginosa descida, em misérias, dos seus políticos, e ainda não ajustada ao neobragantismo, respondeu a esse movimento de reação elegendo uma câmara democrata e nacional – liberal, em formal oposição ao governo. Foi quando o lichen Paranaguá-José Clemente-Soares de Souza venceu o próprio cinismo – para dizer, no palavrório da dissolução prévia, que a câmara eleita, alma da nação, não tinha idoneidade moral ou força... A afronta não poderia passar em vão, quando ainda havia daquele ânimo brasileiro que produzira o 7 de Abril, São Paulo e Minas entenderam defender a liberdade, e reclamaram, bem explicitamente – “a revogação das três leis... a da interpretação do ato adicional, a lei das reformas do código, e a do conselho de Estado”; a assembleia provincial de São Paulo enviou ao governo uma deputação, portadora de uma representação, nesse teor. A comissão era composta do brigadeiro Gavião Peixoto, o deputado Souza Queiroz e o Senador Vergueiro. Pois bem: o governo Paranaguá-Paulino-José Clemente levou o desplante ao ponto de baixar um aviso, de 5 de fevereiro de 1842, declarando que nem a comissão, nem a representação podiam ser recebidos – por atentar contra artigos da constituição. O atentado estava em dizer, a representação, que o monarca se via coacto pelos Vasconcelos e Hermeto... “que o obrigavam a assinar atos opressivos...” Pecava a


166 Nessa geração também haverá apostasias, renegamentos e traições – Meireles cumulado de honrarias, Torres Homem promovido a Inhomirim, Paula e Sousa que renega a revolução de 1842, Limpo de Abreu, promovido a Abaeté...


representação em acreditar que a reação e os ataques à liberdade se faziam sem a aquiescência, ou a contragosto de Pedro II, e os ingênuos liberais pagaram caro a ilusão: ao governo, que se negava a ouvi-los, eles responderam com as armas na mão... Derradeiro espasmo no esforço brasileiro pela liberdade. Vemos reproduzirem-se, aí, as façanhas do Padre Tenório, Padre Pessoa e Frei Caneca: além de Feijó, o Padre Oliveira, em São Paulo, o Cônego Marinho, em Minas, são soldados da revolução liberal, tão nobre e necessária, como frágil e inexequível – num mundo político cujas fortunas eram as abjurações realçadas em servilismo. Os aspectos concretos são copiosamente expressivos: a garantia da ordem destacada para dominar São Paulo; o braço do absolutismo mandado para abater os Mineiros; Vasconcelos e Hermeto a completar José Clemente e Vilela Barbosa; Feijó, prisioneiro às portas da morte, e transportado num leito, por centenas de léguas até a prisão no exílio; absolutamente inválido, forçado a arrancar da sua extrema pobreza os contos de réis com que a justiça imperial o esmaga, e que não o esmaga tanto quanto o vilipêndio do general de polícia, já Barão de Caxias, secundando o renegado Costa Carvalho... Cuidadosamente escolhem-se, entre os políticos, os mais ativos em favor das liberdades nacionais, e são exilados para Portugal, guardando-se, no entanto, os proeminentes, cujo processo deve servir de exemplo – Alencar, Feijó, Vergueiro. O grande ituano tem de vir do seu desterro para responder perante o tribunal político do Senado, condenado a ouvir os doestos dos Vasconcelos e Hermeto, que não podiam suportar aquela superioridade moral, e disto faziam motivo de acusação; Feijó condenado a ser defendido pela flacidez do futuro Caravelas... 

E prossegue o declínio, contra o qual de nada vale o generoso sacrifício dos de 1848. Agora, para cada um dos raros Nunes Machado, há dezenas de Soares de Sousa, Tosta, Calmon, Silva Maia, Macaé, Felizardo de Sousa, Itaboraí... Não há mais razões para tateios e hesitações: o neobragantismo tem um programa e uma rota. Depois da vitória sobre os liberais de São Paulo e Minas, há liberais para alimentar as veleidades do espúrio parlamentarismo imperial. São os homens que completam a degradação eleitoral. Vão-se como vieram; e os Fernandes Torres, Marcelino de Brito... encarregam-se de cumular a legislação reacionária: dec. de 19 de agosto de 1846, segundo o qual “o governo geral era competente para conhecer das irregularidades das eleições municipais, e de juízes de paz, e mandar reformar as que contiverem nulidades...”167  Um político da época deixou o comentário necessário: “O governo, juiz da validade de eleições locais é monstruosidade que não se vê na França de Napoleão III... Baseado em pretextos, o governo anula as eleições das poucas paróquias em que triunfa a oposição...” Logo depois: a organização da guarda nacional, a lei do recrutamento e a rede da polícia escravizaram totalmente a vastidão do Brasil ao poder central, de modo a tornar saudosos os dias da metrópole de Lisboa. Era, porém, necessário – porque já se preparavam as duras campanhas do Sul, em satisfação do torvo imperialismo bragantino: recrutados, ou jugulados na guarda nacional, os brasileiros deviam formar os batalhões que tinham de morrer sob as ordens dos que sucederam a Lecor e Barbacena. Tavares Bastos chamava a tais mostrengos de legislação – “duplo crime, contra a constituição e contra o futuro do país... Os donatários da terra chamam a isto imitar o exemplo das grandes nações...” Sales Torres Homem, quando já fazia a evolução para Inhomirim (em abril de 1853), mostrava:


Despojou-se o poder judiciário das funções constitucionais – de pronunciar e julgar, para conferi-las a agentes do executivo, a empregados policiais, à discrição dos ministros... destruíram a primeira das garantias protetoras da sociedade, deixando a descoberto todos os direitos políticos e individuais. Foram além do que se pratica na Turquia, ultrapassaram o arbítrio do nosso regime colonial. Fizeram o que a mão de ferro de Bonaparte não ousou fazer no código do processo da França.


167 Sousa Carvalho, op. cit., pág. 36. 


O despotismo legalizado chegou ao ponto de que os próprios conservadores – São Vicente, Saião Lobato, até dos mais cascudos como Euzébio de Queiroz, José de Alencar... fulminaram tal legislação. Antes mesmo dela dar todos os seus frutos, um dos seus autores, Bernardo de Vasconcelos, como envergonhado, pensou em corrigi-la, apresentando, em 1845 (Senado, 14 de julho), um projeto, que é o melhor comentário do caso: “É revogada a lei de 3 de dezembro, de 1841, na parte que confere autoridade aos chefes de polícia, delegados e subdelegados para proferirem sentenças definitivas e de pronúncia...” Mas, tal era a mentalidade reinante, que Bernardo de Vasconcelos foi liberal; não aceitaram o seu projeto... Em 1860, Landulfo teve de registrar: “O segundo reinado nada fundou ainda; a sua obra tem sido a reação incessante, pertinaz, contra as conquistas dos dois primeiros períodos...” 

Para fazer base a essa política, os negreiros portugueses, estimulados, acoroçoados, convidados pelos escravocratas desfrutadores do país, despejavam pela costa brasileira os seus carregamentos; aviltava-se de mais em mais o trabalho, acumulavam-se os óbices a uma organização inteligente e livre da produção, para que os ingleses pudessem apresentar-nos ao mundo como o refugo da cristandade, e, espezinhando a nossa soberania, viessem fazer a polícia das costas brasileiras contra os mesmos negreiros, mantendo uma presiganga dessa polícia bem em frente ao paço imperial, para, finalmente, atirar-nos a suprema afronta do bill Aberdeen...

Constituição engendrada e concertada contra os interesses e as liberdades nacionais, lembrada e obedecida somente para o mal; parlamentarismo de mentira, liberdade de favor... e nenhuma realidade, nem possibilidade de opinião nacional. O antigo regime, de necessária incompatibilidade entre o Estado-metrópole e a colônia oprimida e espoliada, subsiste em novas formas, e, bem senhor do país, refloresce em novo viço: corte-metrópole, herdeira da primeira metrópole, por sobre a nação já desiludida, na aspiração de ser livre e de ter destinos próprios. E, como haver efetiva liberdade, na boa prática de uma democracia inteligente? Como esperar uma política de opinião?... Não havia, não podia haver, qualquer ensaio de intervenção efetiva da Nação no funcionamento do Estado; não havia, nem podia haver, a verdadeira liberdade, de onde pudesse sair uma política de opinião.





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"Morreu no Rio aos 64 anos, em 1932, deixando-nos como legado frases, que infelizmente, ainda ecoam como válidas: 'Somos uma nação ineducada, conduzida por um Estado pervertido. Ineducada, a nação se anula; representada por um Estado pervertido, a nação se degrada'. As lições que nos são ministradas em O Brasil nação ainda se fazem eternas. Torcemos para que um dia caduquem. E que o novo Brasil sonhado por Bomfim se torne realidade."

Cecília Costa Junqueira



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O Brasil nação: vol. I / Manoel Bomfim. – 1. ed. – Rio de Janeiro: Fundação Darcy Ribeiro, 2013. 332 p.; 21 cm. – (Coleção biblioteca básica brasileira; 35).


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