domingo, 21 de janeiro de 2018

Honoré de Balzac - A Comédia Humana / Cenas da Vida Privada (continuação)

 Honoré de Balzac - A Comédia Humana / Vol 1


1
Estudos de Costumes 
- Cenas da Vida Privada



Prefácio à Comédia Humana
por Honoré de Balzac

(continuação)





A lei do escritor, o que faz que ele o seja, o que, não temo dizê-lo, o torna igual e talvez superior ao homem de Estado, é uma decisão qualquer sobre as coisas humanas, uma dedicação absoluta a princípios. Maquiavel, Hobbes, Bossuet, Leibniz, Kant, Montesquieu são a ciência que os homens de Estado aplicam. “Um escritor deve ter em moral e política opiniões definidas, deve considerar-se como um preceptor de homens; porquanto os homens não necessitam de mestres para duvidar”, disse Bonald.[20] Cedo adotei como regra essas grandes palavras, que são a lei do escritor monárquico, tanto quanto a do escritor democrático. Por isso, quando me quiserem opor a mim mesmo, isto decorrerá por fazerem má interpretação de alguma ironia, ou, então, reverter contra mim as palavras de uma das minhas personagens, manobra costumeira dos caluniadores. Quanto ao sentido íntimo, à alma desta obra, eis os princípios que lhe servem de base. 

O homem não é bom nem é mau; nasce com instintos e aptidões; a sociedade, longe de depravá-lo, como afirmou Rousseau, o aperfeiçoa, torna-o melhor; mas o interesse também desenvolve suas más tendências. O cristianismo, e sobretudo o catolicismo, sendo, como eu o disse em O médico rural, um sistema completo de repressão das tendências depravadas do homem, é o maior elemento de ordem social. 

Lendo atentamente o quadro da sociedade, moldado, por assim dizer, ao vivo, com todo o seu bem e todo o seu mal, tira-se daí a lição de que, se o pensamento, ou a paixão, a qual compreende o pensamento e o sentimento, é o elemento social, é também o elemento destruidor da sociedade. Nisto a vida social assemelha-se à vida humana. Só é possível dar longevidade aos povos moderando-lhes a ação vital. O ensino, ou melhor, a educação por associações religiosas, é, pois, o grande princípio de existência para os povos, o único meio de diminuir a soma do mal e de aumentar a soma do bem, em qualquer sociedade. O pensamento, princípio do mal e do bem, não pode ser preparado, domado e orientado a não ser pela religião. A única religião possível é o cristianismo. (Ver a carta escrita de Paris em Luís Lambert, na qual o jovem filósofo místico explica, a propósito da doutrina de Swedenborg, como nunca houve mais do que uma religião desde a origem do mundo.) O cristianismo criou os povos modernos, ele os conservará. Daí, sem dúvida, a necessidade do princípio monárquico. O catolicismo e a monarquia são dois princípios gêmeos. Quanto aos limites dentro dos quais esses dois princípios devem ser encerrados por instituições, a fim de não deixar que se desenvolvam de um modo absoluto, todos compreenderão que um prefácio tão sucinto quanto deve ser este não poderia tornar-se um tratado político. Por esse motivo não me aprofundarei nem nas dissensões religiosas nem nas dissensões políticas do momento. Escrevo à luz de duas verdades eternas: a religião e a monarquia, as duas necessidades que os acontecimentos contemporâneos proclamam e para as quais todo escritor de bom senso deve tentar fazer voltar a nossa terra. Sem ser inimigo da eleição, excelente princípio para constituir a lei, repilo a eleição considerada como único meio social; e principalmente tão mal organizada quanto o é hoje, porque não representa minorias importantes em cujas ideias e interesses pensaria um governo monárquico. A eleição generalizada a tudo nos dá o governo das massas, o único que não é responsável e no qual a tirania é ilimitada, porque se denomina a lei. Por isso considero a família, e não o indivíduo, como o verdadeiro elemento social. Sob esse ponto de vista, correndo embora o risco de ser considerado espírito retrógrado, enfileiro-me ao lado de Bossuet e de Bonald, em vez de ir com os inovadores modernos. Como a eleição se tornou o único meio social, se a ela devesse recorrer para mim mesmo, daí não se deveria inferir a menor contradição entre meus pensamentos e minhas ações. Um engenheiro pode declarar que determinada ponte está prestes a ruir, que há perigo para todos em utilizá-la, e não obstante ele a atravessa quando ela é o caminho único para chegar à cidade. Napoleão adaptara maravilhosamente a eleição ao gênio de nosso povo. Por isso, os menores deputados de seu Corpo Legislativo foram os mais célebres oradores das Câmaras na Restauração. Nenhuma câmara esteve à altura do Corpo Legislativo, comparando-os homem a homem. O sistema eletivo do Império é, pois, incontestavelmente o melhor. 

Algumas pessoas poderão achar alguma coisa de soberbo e de pretensioso nesta declaração. Procurarão rusga com o escritor pelo fato de ele querer ser historiador, pedir-lhe-ão os motivos de sua política. Obedeço aqui a um dever, eis a única resposta. A obra que empreendi terá a extensão de uma história; eu tinha a obrigação de dizer os seus motivos, ainda ocultos, seus princípios e sua moral. 

Necessariamente forçado a suprimir os prefácios publicados para responder às críticas essencialmente passageiras, não quero manter senão uma observação. 

Os escritores que têm uma finalidade, seja embora uma volta aos princípios que se acham no passado, justamente por serem eternos, devem sempre limpar o terreno. Ora, quem quer que traga sua contribuição para o domínio das ideias, quem quer que assinale um abuso, quem quer que anote um mal que deve ser suprimido, esse passará sempre por imoral. A censura por imoralidade, à qual jamais escapa um escritor corajoso, é, aliás, a última coisa que resta a fazer quando nada mais se tem de articular contra um poeta. Se fordes verdadeiro nas vossas pinturas; se à força de trabalhos diurnos e noturnos conseguirdes escrever a língua mais difícil do mundo, atiram-vos então em rosto a palavra imoral. Sócrates foi imoral, Jesus Cristo foi imoral. Ambos foram perseguidos em nome das sociedades que eles derrubavam ou reformavam. Quando querem matar alguém, acusam-no de imoralidade. Essa manobra, familiar aos partidos, é a vergonha de quantos a empregam. Lutero e Calvino bem sabiam o que estavam fazendo ao servir-se dos interesses materiais feridos, como de um escudo! Por esse motivo viveram todos os seus dias.[21] 

Ao copiar toda a sociedade, ao interpretá-la na imensidade das suas agitações, aconteceu, tinha de acontecer, que tal composição apresentasse mais de mal que de bem; que uma determinada parte do quadro representasse um grupo culpado: daí a crítica a bradar “imoralidade”, sem fazer observar a moralidade de outra parte destinada a formar um contraste perfeito. Como a crítica ignorava o plano geral, eu lhe perdoava tanto mais facilmente, atendendo a que não se pode impedir a crítica, como não se pode impedir o exercício da visão, da linguagem e do julgamento. De resto, ainda não soou para mim a hora da imparcialidade. Aliás, o autor que não sabe dispor-se a arrostar o fogo da crítica não deve escrever, da mesma forma que um viajante não se deve pôr a caminho contando com um céu perenemente sereno. Neste ponto, cumpre-me observar que os mais conscienciosos moralistas têm fortes dúvidas de que a sociedade possa oferecer tantas boas quantas más ações, e no quadro que dela faço encontram-se mais personagens virtuosas do que personagens censuráveis. As ações repreensíveis, as faltas, os crimes, dos mais leves aos mais graves, nele encontram sempre o castigo humano ou divino, ruidoso ou secreto. Fiz melhor do que o historiador, porque sou mais livre. Cromwell não sofreu, aqui na terra, outro castigo a não ser o que lhe impunha o pensador. E mesmo assim houve discussão entre escolas. O próprio Bossuet poupou aquele grande regicida.

Guilherme de Orange, o usurpador, Hugo Capeto, outro usurpador, morrem em plena velhice, sem ter tido mais desconfianças ou temores do que Henrique IV ou Carlos I. A vida de Catarina II e a de Luís XIV, postas em confronto, levariam a uma conclusão contra toda espécie de moral, se fossem julgadas sob o ponto de vista da moral que rege os particulares; pois para os reis, para os homens de Estado, há, como disse Napoleão, uma pequena e uma grande moral. As Cenas da Vida Política são baseadas nesta bela reflexão. A história não tem por lei, como o romance, propender para o belo ideal. A história é ou deveria ser o que foi; ao passo que o romance deve ser o mundo melhor, disse mme. Necker, um dos mais notáveis espíritos do século passado.[22] O romance, porém, nada seria se, nessa augusta mentira, não fosse verdadeiro nos pormenores, Obrigado a conformar-se às ideias de um país essencialmente hipócrita, Walter Scott foi falso, relativamente à humanidade, na pintura da mulher, porque seus modelos eram cismáticos. A mulher protestante não tem ideal. Pode ser casta, pura, virtuosa, mas seu amor sem expansão será sempre calmo e ordenado como um dever cumprido. Dir-se-ia que a Virgem Maria tivesse enregelado o coração dos sofistas que a exilavam do céu, a ela e aos seus tesouros de misericórdia. No protestantismo não há nada mais para a mulher após a falta, ao passo que na Igreja Católica a esperança do perdão a torna sublime. Por isso, para o escritor protestante só existe uma mulher, ao passo que o escritor católico encontra uma nova mulher em cada nova situação. Se Walter Scott tivesse sido católico, se se tivesse imposto a descrição verdadeira das diversas sociedades que se sucederam na Escócia, é possível que o pintor de Effie e de Alice (as duas personalidades que nos seus velhos dias ele se recriminou de haver esboçado) tivesse admitido as paixões, com as suas faltas e os seus castigos, com as virtudes que o arrependimento lhes indica. A paixão é toda a humanidade. Sem ela, a religião, a história, o romance, a arte seriam inúteis.





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Honoré de Balzac (Tours, 20 de maio de 1799 — Paris, 18 de agosto de 1850) foi um produtivo escritor francês, notável por suas agudas observações psicológicas. É considerado o fundador do Realismo na literatura moderna.[1][2] Sua magnum opus, A Comédia Humana, consiste de 95 romances, novelas e contos que procuram retratar todos os níveis da sociedade francesa da época, em particular a florescente burguesia após a queda de Napoleão Bonaparte em 1815.

Entre seus romances mais famosos destacam-se A Mulher de Trinta Anos (1831-32), Eugènie Grandet (1833), O Pai Goriot (1834), O Lírio do Vale (1835), As Ilusões Perdidas (1839), A Prima Bette (1846) e O Primo Pons (1847). Desde Le Dernier Chouan (1829), que depois se transformaria em Les Chouans (1829, na tradução brasileira A Bretanha), Balzac denunciou ou abordou os problemas do dinheiro, da usura, da hipocrisia familiar, da constituição dos verdadeiros poderes na França liberal burguesa e, ainda que o meio operário não apareça diretamente em suas obras, discorreu sobre fenômenos sociais a partir da pintura dos ambientes rurais, como em Os Camponeses, de 1844.[1] Além de romances, escreveu também "estudos filosóficos" (como A Procura do Absoluto, 1834) e estudos analíticos (como a Fisiologia do Casamento, que causou escândalo ao ser publicado em 1829).

Balzac tinha uma enorme capacidade de trabalho, usada sobretudo para cobrir as dívidas que acumulava.[1] De certo modo, suas despesas foram a razão pela qual, desde 1832 até sua morte, se dedicou incansavelmente à literatura. Sua extensa obra influenciou nomes como Proust, Zola, Dickens, Dostoyevsky, Flaubert, Henry James, Machado de Assis, Castelo Branco e Ítalo Calvino, e é constantemente adaptada para o cinema. Participante da vida mundana parisiense, teve vários relacionamentos, entre eles um célebre caso amoroso, desde 1832, com a polonesa Ewelina Hańska, com quem veio a se casar pouco antes de morrer.


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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip)
(Câmara Brasileira do Livro, sp, Brasil)

Balzac, Honoré de, 1799-1850. 
          A comédia humana: estudos de costumes: cenas da vida privada / Honoré de Balzac;                            orientação, introduções e notas de Paulo Rónai; tradução de Vidal de Oliveira; 3. ed. – São                  Paulo: Globo, 2012. 

          (A comédia humana; v. 1) Título original: La comédie humaine ISBN 978-85-250-5333-1                    0.000 kb; ePUB 

1. Romance francês i. Rónai, Paulo. ii. Título. iii. Série. 

12-13086                                                                               cdd-843 

Índices para catálogo sistemático: 
1. Romances: Literatura francesa 843

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[20] O visconde Louis-Gabriel Amboise de Bonald (1754 -1840) foi um dos defensores mais fervorosos das ideias monárquicas e católicas e um adversário combativo dos princípios da Revolução Francesa assim como da filosofia sensualista.

[21]Por esse motivo viveram todos os seus dias. Subentenda-se: e não morreram envenenados ou crucificados como Sócrates ou Jesus.

[22] Mme. Suzzanne Necker (1739 -1794), esposa do famoso banqueiro e ministro Jacques Necker, famosa por seu espírito; mãe de Madame de Staël.



Honoré de Balzac - A Comédia Humana / Cenas da Vida Privada (final - Prefácio)


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