segunda-feira, 22 de janeiro de 2018

Stendhal - O Vermelho e o Negro: Um Prefeito

Stendhal - O Vermelho e o Negro



Livro I

A verdade, a áspera verdade. 
Danton 


Capítulo II

UM PREFEITO



A importância, senhor, não é nada? O respeito dos tolos, o assombro das crianças, a inveja dos ricos, o desprezo do sábio. 
BARNAVE




FELIZMENTE PARA A reputação do sr. de Rênal como administrador, um imenso muro de sustentação era necessário ao passeio público que costeia a colina a uma centena de pés acima do curso do Doubs, e que deve a essa admirável posição uma das vistas mais pitorescas da França. Mas, a cada primavera, as águas da chuva sulcavam o passeio, nele abrindo ravinas e tornando-o impraticável. Esse inconveniente, sentido por todos, pôs o sr. de Rênal na feliz necessidade de imor​talizar sua administração por um muro de seis metros de altura e trinta ou quarenta toesas [1] de comprimento. 

O parapeito desse muro, para o qual o sr. de Rênal teve de fazer três viagens a Paris, pois o penúltimo ministro do Interior havia se declarado inimigo mortal do passeio de Verrières, o parapeito desse muro eleva-se agora a uma altura de 1,20 metros do solo. E, como para desafiar todos os ministros presentes e passados, é guarnecido neste momento com lajes de pedra de cantaria. 

Quantas vezes, pensando nos bailes de Paris abandonados na véspera, e com o peito apoiado contra esses grandes blocos de pedra de um belo cinza puxando para o azul, meus olhares mergulharam no vale do Doubs! À distância, na margem esquerda, serpenteiam cinco ou seis vales no fundo dos quais o olhar distingue perfeitamente pequenos riachos. Depois de terem corrido de cascata em cascata, vêmo-los caírem no Doubs. O sol é muito quente nessas montanhas; quando brilha a pino, o devaneio do viajante é abrigado nesse terraço por magníficos plátanos. Seu crescimento rápido e seu belo verdor puxando para o azul devem-se à terra trazida, que o sr. prefeito mandou colocar atrás do imenso muro de sustentação, pois, apesar da oposição do conselho municipal, ele ampliou o passeio em mais de 1,80 metros (embora ele seja conservador e eu liberal, louvo-o por essa medida); eis por que, em sua opinião e na do sr. Valenod, o feliz diretor do asilo de mendicidade de Verrières, esse terraço pode sustentar a comparação com o de Saint-Germain-en-Laye. 

Quanto a mim, só vejo uma coisa a censurar no PASSEIO DA FIDELIDADE; lê-se esse nome oficial em quinze ou vinte pontos, em placas de mármore que valeram uma medalha a mais ao sr. de Rênal; o que eu reprovaria ao Passeio da Fidelidade é a maneira bárbara pela qual a autoridade manda cortar e podar quase ao extremo esses vigorosos plátanos. Em vez de se assemelharem, por suas copas baixas, redondas e achatadas, à mais vulgar das árvores de quintal, seria melhor que tivessem aquelas formas magníficas que possuem na Inglaterra. Mas a vontade do sr. prefeito é despótica, e duas vezes por ano todas as árvores pertencentes à comuna são impiedosamente amputadas. Os liberais da localidade afirmam, mas exageram, que a mão do jardineiro oficial tornou-se bem mais severa depois que o sr. vigário Maslon adquiriu o hábito de apoderar-se dos produtos da poda. 

Esse jovem eclesiástico foi enviado de Besançon, há alguns anos, para vigiar o abade Chélan e alguns curas dos arredores. Um velho cirurgião-mor do exército da Itália, reformado em Verrières, e que era ao mesmo tempo, segundo o sr. prefeito, jacobino e bonapartista, ousou um dia queixar-se a ele da mutilação periódica dessas belas árvores. 

– Gosto da sombra, respondeu o sr. de Rênal com o tom de voz conveniente quando se fala a um cirurgião, membro da Legião de Honra; gosto da sombra, mando cortar minhas árvores para que deem sombra, e não concebo que uma árvore seja feita para outra coisa, mesmo quando, ao contrário da útil nogueira, ela não proporciona lucro

Eis a grande frase que decide tudo em Verrières: PROPORCIONAR LUCRO. Por si só ela representa o pensamento habitual de mais de três quartas partes dos habitantes. 

Proporcionar lucro é a razão que decide tudo nessa pequena cidade que vos parecia tão bonita. O forasteiro que chega, seduzido pela beleza dos frescos e profundos vales que a circundam, imagina de início que seus habitantes são sensíveis ao belo; falam com insistência da beleza de sua terra: não se pode negar que dão importância a isso; mas é porque ela atrai alguns forasteiros cujo dinheiro enriquece os estalajadeiros, o que, pelo mecanis​mo de tributos municipais, proporciona lucro à cidade

Por um belo dia de outono, o sr. de Rênal passeava pelo Passeio da Fidelidade, de braço dado com sua mulher. Enquanto escutava o marido falar com um ar grave, o olhar da sra. de Rênal seguia com inquietude os movimentos de três garotos. O mais velho, que podia ter onze anos, aproximava-se seguidamente do parapeito e fazia menção de nele subir. Uma voz doce pronunciava então o nome Adolphe, e a criança renunciava a seu projeto ambicioso. A sra. de Rênal parecia ter uns trinta anos, mas era ainda bastante bonita. 

– Ele ainda vai se arrepender, esse janota de Paris, dizia o sr. de Rênal com um ar ofendido e a face mais pálida que de costume. Tenho alguns amigos no palácio... 

Mas, embora eu queira vos falar da província durante duzentas páginas, não cometerei a barbárie de vos fazer suportar a extensão e os sábios rodeios de um diálogo de província. 

Esse janota de Paris, tão odiado pelo prefeito de Verrières, não era senão o sr. Appert, que, dois dias antes, encontrara o meio de introduzir-se não apenas na prisão e no asilo de mendicidade de Verrières, mas também no hospital administrado gratuitamente pelo prefeito e os principais proprietários da localidade. 

– Mas, dizia timidamente a sra. de Rênal, que mal pode lhe fazer esse senhor de Paris, se você administra os bens dos pobres com a mais escrupulosa probidade? 

– Ele vem apenas para espalhar a reprovação, e a seguir fará inserir artigos nos jornais do liberalismo. 

– Você jamais os lê, meu caro. 

– Mas nos falam desses artigos jacobinos; tudo isso nos distrai e nos impede de fazer o bem.[2] Quanto a mim, jamais perdoarei o cura.


[1] Sessenta ou oitenta metros. (N.T.)

[2] Histórico.



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ADVERTÊNCIA DO EDITOR
Esta obra estava prestes a ser publicada quando os grandes acontecimentos de julho [de 1830] vieram dar a todos os espíritos uma direção pouco favorável aos jogos da imaginação. Temos motivos para acreditar que as páginas seguintes foram escritas em 1827.


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Henri-Marie Beyle, mais conhecido como Stendhal (Grenoble, 23 de janeiro de 1783 — Paris, 23 de março de 1842) foi um escritor francês reputado pela fineza na análise dos sentimentos de seus personagens e por seu estilo deliberadamente seco.

Órfão de mãe desde 1789, criou-se entre seu pai e sua tia. Rejeitou as virtudes monárquicas e religiosas que lhe inculcaram e expressou cedo a vontade de fugir de sua cidade natal. Abertamente republicano, acolheu com entusiasmo a execução do rei e celebrou inclusive a breve detenção de seu pai. A partir de 1796 foi aluno da Escola central de Grenoble e em 1799 conseguiu o primeiro prêmio de matemática. Viajou a Paris para ingressar na Escola Politécnica, mas adoeceu e não pôde se apresentar à prova de acesso. Graças a Pierre Daru, um parente longínquo que se converteria em seu protetor, começou a trabalhar no ministério de Guerra.

Enviado pelo exército como ajudante do general Michaud, em 1800 descobriu a Itália, país que tomou como sua pátria de escolha. Desenganado da vida militar, abandonou o exército em 1801. Entre os salões e teatros parisienses, sempre apaixonado de uma mulher diferente, começou (sem sucesso) a cultivar ambições literárias. Em precária situação econômica, Daru lhe conseguiu um novo posto como intendente militar em Brunswick, destino em que permaneceu entre 1806 e 1808. Admirador incondicional de Napoleão, exerceu diversos cargos oficiais e participou nas campanhas imperiais. Em 1814, após queda do corso, se exilou na Itália, fixou sua residência em Milão e efetuou várias viagens pela península italiana. Publicou seus primeiros livros de crítica de arte sob o pseudônimo de L. A. C. Bombet, e em 1817 apareceu Roma, Nápoles e Florença, um ensaio mais original, onde mistura a crítica com recordações pessoais, no que utilizou por primeira vez o pseudônimo de Stendhal. O governo austríaco lhe acusou de apoiar o movimento independentista italiano, pelo que abandonou Milão em 1821, passou por Londres e se instalou de novo em Paris, quando terminou a perseguição aos aliados de Napoleão.

"Dandy" afamado, frequentava os salões de maneira assídua, enquanto sobrevivia com os rendimentos obtidos com as suas colaborações em algumas revistas literárias inglesas. Em 1822 publicou Sobre o amor, ensaio baseado em boa parte nas suas próprias experiências e no qual exprimia ideias bastante avançadas; destaca a sua teoria da cristalização, processo pelo que o espírito, adaptando a realidade aos seus desejos, cobre de perfeições o objeto do desejo.

Estabeleceu o seu renome de escritor graças à Vida de Rossini e às duas partes de seu Racine e Shakespeare, autêntico manifesto do romantismo. Depois de uma relação sentimental com a atriz Clémentine Curial, que durou até 1826, empreendeu novas viagens ao Reino Unido e Itália e redigiu a sua primeira novela, Armance. Em 1828, sem dinheiro nem sucesso literário, solicitou um posto na Biblioteca Real, que não lhe foi concedido; afundado numa péssima situação económica, a morte do conde de Daru, no ano seguinte, afetou-o particularmente. Superou este período difícil graças aos cargos de cônsul que obteve primeiro em Trieste e mais tarde em Civitavecchia, enquanto se entregava sem reservas à literatura.

Em 1830 aparece sua primeira obra-prima: O Vermelho e o Negro, uma crónica analítica da sociedade francesa na época da Restauração, na qual Stendhal representou as ambições da sua época e as contradições da emergente sociedade de classes, destacando sobretudo a análise psicológica das personagens e o estilo direto e objetivo da narração. Em 1839 publicou A Cartuxa de Parma, muito mais novelesca do que a sua obra anterior, que escreveu em apenas dois meses e que por sua espontaneidade constitui uma confissão poética extraordinariamente sincera, ainda que só tivesse recebido o elogio de Honoré de Balzac.

Ambas são novelas de aprendizagem e partilham rasgos românticos e realistas; nelas aparece um novo tipo de herói, tipicamente moderno, caracterizado pelo seu isolamento da sociedade e o seu confronto com as suas convenções e ideais, no que muito possivelmente se reflete em parte a personalidade do próprio Stendhal.

Outra importante obra de Stendhal é Napoleão, na qual o escritor narra momentos importantes da vida do grande general Bonaparte. Como o próprio Stendhal descreve no início deste livro, havia na época (1837) uma carência de registos referentes ao período da carreira militar de Napoleão, sobretudo a sua atuação nas várias batalhas na Itália. Dessa forma, e também porque Stendhal era um admirador incondicional do corso, a obra prioriza a emergência de Bonaparte no cenário militar, entre os anos de 1796 e 1797 nas batalhas italianas. Declarou, certa vez, que não considerava morrer na rua algo indigno e, curiosamente, faleceu de um ataque de apoplexia, na rua, sem concluir a sua última obra, Lamiel, que foi publicada muito depois da sua morte.



O reconhecimento da obra de Stendhal, como ele mesmo previu, só se iniciou cerca de cinquenta anos após sua morte, ocorrida em 1842, na cidade de Paris.

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Leia também: 

Stendhal - O Vermelho e o Negro: Uma pequena cidade
Stendhal - O Vermelho e o Negro: Um Prefeito
Stendhal - O Vermelho e o Negro: O Bem dos Pobres


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