sexta-feira, 22 de fevereiro de 2019

Stanislaw PP - FeBeAPá: O Festival de Besteira (3)

O Festival de Besteira

Festival de Besteira que Assola o País





Fiscais da Alfândega do porto do Rio de Janeiro apreenderam trezentos litros de plasma sanguíneo enviados pelo governo de Israel à Cruz Vermelha Brasileira, para socorrer flagelados. Só depois de paga a taxa de armazenagem e várias providências do próprio embaixador do país amigo foi que os hospitais puderam receber o plasma. Pelo jeito o Febeapá em 66 seria muito mais animadinho que em 65, coisa que era considerada impossível pelos técnicos em imbecilidade. 

O economista Glycon de Paiva pronunciava a seguinte frase, durante a posse do sr. Harold Polland no Conselho Nacional de Economia: “O Brasil é um país com problemas urgentes, ingentes, mas sem gente”. Segundo Tia Zulmira, “essa frase que parece inteligente é justamente de gente indigente metida a dirigente”. 

O casamento do padre Vidigal, político mineiro e matreiro, servia para ativar debates dos mais cocorocas sobre o celibato dos sacerdotes. O casamento em si foi muito interessante porque o padre Vidigal era um tremendo cara de pau e, quando seu colega que oficiava a cerimônia lhe perguntou se aceitava a noiva como legítima esposa, respondeu com postura militar: “Aceito para cumprir um dever para com a pátria”. Aventou-se então a hipótese de que, tendo o padre Vidigal aderido tardiamente ao positivismo, talvez conseguisse ordem e progresso na lua de mel. [7] 

Em Belo Horizonte assumia a Secretaria de Agricultura o ruralista Evaristo de Paula e saudava o governador Israel Pinheiro em sua posse, afirmando que “o sr. Israel tem sangue de boi em suas veias, cheira a capim e traz em si o movimento telúrico dos milharais em espiga”. Só faltou o cara dizer que o sr. Israel Pinheiro era a própria estátua da reforma agrária. 

O medo de alma do outro mundo acabava com um programa. Foi assim: a TV Globo apresentava o programa Globo Especial, onde eram debatidas teses religiosas. Era um programa sério e de um alto nível educativo, principalmente se levarmos em conta a cretinice que é o grosso (nos dois sentidos) da programação na máquina de fazer doido. Pois muito bem: num domingo estiveram presentes aos debates um padre católico e um espírita, tendo este levado certa vantagem sobre o outro, nas suas explanações. No dia seguinte a TV Globo recebia um ofício do Contel, [8] proibindo o programa em todo o território nacional. Era o medo oficial dos espíritos. Na atual conjuntura, controlar as matérias já atrapalhava as autoridades, imaginem só controlar os espíritos. 

E o secretário de Turismo da Guanabara, sr. Rio Branco, mudava a ornamentação para o Carnaval, na avenida Rio Branco, por uma outra mais leve, e saía-se com esta: “Deus me livre acontecer um acidente na avenida do vovô”. 

Era dos mais democratizadores o caso criado pelo coronel comandante do Batalhão de Carros de Combate, sediado em Valença (RJ), que cercou Barra do Piraí com oitocentos soldados e exigiu que a Câmara de Vereadores local elegesse os membros da mesa conforme listinha que entregou ao presidente da Assembleia. Dizem que foi a eleição “democrática” mais rápida que já houve. Num instante estavam eleitos os candidatos do coronel e, se mais rápida não foi essa eleição, é porque alguns vereadores, ao verem tanto soldado embalado, tiveram que ir primeiro lá dentro, cumprir prementes necessidades fisiológicas. 

A minissaia era lançada no Rio e execrada em Belo Horizonte, onde o delegado de Costumes (inclusive costumes femininos) declarava aos jornais que prenderia o costureiro francês Pierre Cardin (bicharoca parisiense responsável pelo referido lançamento), caso aparecesse na capital mineira “para dar espetáculos obscenos, com seus vestidos decotados e saias curtas”. E acrescentava furioso: “A tradição de moral e pudor dos mineiros será preservada sempre”. Toda essa cocorocada iria influenciar um deputado estadual de lá — Lourival Pereira da Silva —, que fez um discurso na Câmara sobre o tema “Ninguém levantará a saia da Mulher Mineira”. 

No Nordeste o problema não era saia, era sutiã. Técnicos da Sudene [9] consideravam de interesse prioritário para o desenvolvimento econômico da região a instalação de uma fábrica especializada nesse artigo que os nacionalistas preferem chamar de “porta-seios”. 

O general Olímpio Mourão Filho doava ao Museu Mariano Procópio, de Juiz de Fora, a espada e a farda de campanha que usava como comandante das forças que fizeram a “redentora” de 1 de abril. Isso é que foi revolução: com pouco mais de dois anos já estava dando peças para museu. 

Na cidade de Mantena (MG) o delegado deu tanto tiro que a cidade deixou de ter população e passou a ter sobrevivente. Em Tenente Portela (RS) um policial chamado Neider Madruga prendeu toda a Câmara de Vereadores porque o candidato da sua corriola não foi eleito na renovação da mesa diretora. Mesmo com o habeas corpus aos vereadores, dado pelo juiz local, o Madruga levou todos em cana para Porto Alegre, preferindo “fazer democracia com as próprias mãos”. 

Aliás, o direito penal periclitava. Em Brasília, depois de um dos maiores movimentos do Festival de Besteira, que bagunçou a universidade local, o reitor Laerte Ramos — figurinha que ama tanto uma marafa que cachaça no Distrito Federal passou a se chamar “reitor” — nomeava um professor para a cadeira de direito penal. O ilustre lente nomeado começou com estas palavras a sua primeira aula: “A ciência do direito é aquela que estuda o direito”. 

Manchete do jornal Correio do Ceará: “Todo fumante morre de câncer a não ser que outra doença o mate primeiro”. 

Começa o novo martírio de Tiradentes! Um historiador mineiro levantou a questão, dizendo que Tiradentes barbudo e cabeludo era besteira, pois o mártir da Independência era alferes e, portanto, usava cabelo curtinho, como todo militar. O blá-blá-blá comeu firme e obrigou o marechal presidente a se manifestar, assinando um decreto que estabelecia a figura de Tiradentes a ser cultuada, isto é, seria a mesma da estátua do falecido, colocada na frente do Palácio Tiradentes, antiga Câmara Federal, no Rio. Nessa altura já tinha sido distribuído para as escolas um Tiradentes bem mais remoçado, sob protesto de professoras primárias que diziam ser o outro “mais respeitável”. Recolheu-se o Tiradentes mocinho, emitiu-se uma nota de cinco mil cruzeiros, com a forca aparecendo, e o Diário Oficial publicou a resolução presidencial de se venerar “a efígie que melhor se ajusta à imagem de Joaquim José da Silva Xavier gravada pela tradição na memória do povo brasileiro”. Quando todos esperavam que iam deixar Tiradentes sossegado, no Diário Oficial seguinte ao da publicação do decreto presidencial constava uma retificação que ninguém entendeu, dizendo: “Onde se lê Joaquim José, leia-se José Joaquim”. Ora, todo mundo sabe que o nome do mártir era Joaquim José, até mesmo aquele samba da Escola de Samba Império Serrano, que venceu um Carnaval, mas os que estavam salvando o país tinham dúvidas. Uma plêiade de altas autoridades esteve reunida para confabular e veio a retificação da retificação. O Diário Oficial do dia 27 de abril de 66 publicava: “Fica sem efeito a retificação publicada no Diário Oficial de 19/04/66, na página 4101”. Felizmente a coisa parou aí, do contrário iam acabar escrevendo Xavier com “CH”. 

Correu o mês de maio mais ou menos tranquilo, embora o coronel Costa Cavalcanti, deputado pernambucano e líder da tal linha-dura, afirmasse que a candidatura Costa e Silva “cheirava a povo”, mostrando um defeito olfativo impressionante. Um outro coronel, chamado Pitaluga, ainda em maio, ao passar o comando de seu regimento, fez um discurso no qual afirmava: “A Revolução de Março livrou o mundo da Terceira Guerra Mundial”. Lá no Vietnã todo mundo achou que o coronel Pitaluga tinha razão.



Continua... o festival de besteiras




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Leia também:

Stanislaw PP - FeBeAPá: O Festival de Besteira (1)

Stanislaw PP - FeBeAPá: O Festival de Besteira (2)

Stanislaw PP - FeBeAPá: O Festival de Besteira (4)

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(7) Padre Maciel Vidigal, deputado federal de 1959 a 1971, dispensado de seus votos sacerdotais em 1965 pelo Papa Paulo VI, para que pudesse se casar.
(8) Conselho Nacional de Telecomunicações.
(9) Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste.


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SÉRGIO PORTO nasceu no Rio de Janeiro em 1923 e morreu na mesma cidade em 1968. Foi cronista, radialista, homem de teatro e TV, compositor. Conhecido nacionalmente por meio do pseudônimo Stanislaw Ponte Preta, publicou, além de Febeapá, coletâneas de crônicas, textos sobre futebol, entre outros.


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