domingo, 17 de fevereiro de 2019

Baudelaire - Pequenos Poemas em Prosa: XL O Espelho

Baudelaire - Pequenos Poemas em Prosa



XL

O ESPELHO 


Um homem medonho entra e mira-se no espelho.

— Por que olha para o espelho, se só pode ver-se com desgosto? — perguntei-lhe — Senhor, — respondeu-me, — segundo os imortais princípios de 89, todos os homens são iguais em direitos: tenho, pois, o direito de mirar-me. Com prazer ou com desgosto, isto é com minha consciência.

Em nome do bom senso, é certo que eu tinha razão; mas, do ponto de vista da lei, a razão estava com ele.



XLI

O PORTO 


Um porto é um retiro encantador para uma alma cansada das lutas da vida. A largueza do céu, a móvel arquitetura das nuvens, o colorido cambiante do mar, o brilho dos faróis, são um prisma maravilhosamente adequado para distrair o olhar sem cansá-lo nunca. 

As formas esguias dos navios, de construção complicada, aos quais a maré imprime oscilações harmoniosas, servem para entreter na alma o gosto do ritmo e da beleza. E há, além disso, uma espécie de prazer misterioso e aristocrático, para quem não tem mais curiosidade nem ambição, em contemplar, deitado no mirante ou debruçado no cais, todos os movimentos dos que partem e dos que chegam, dos que ainda têm a força de querer e o desejo de viajar ou fazer fortuna.



XLII

RETRATOS DE AMANTES 


Num boudoir de homens, numa sala de fumar contígua a um elegante cassino, quatro homens fumavam e bebiam. Não eram precisamente nem moços nem velhos, nem bonitos nem feios; mas, velhos ou moços, traziam essa distinção não desprezada pelos veteranos da alegria, esse indescritível não sei quê, essa tristeza fria e irônica que diz claramente: “Já vivemos muito e ainda procuramos o que poderíamos amar e estimar”. 

Um deles desviou a conversa para as mulheres. Teria sido mais filosófico não tocar absolutamente no assunto, mas há pessoas de espírito que, quando bebem, deixam de desprezar as palestras banais. Escuta-se então aquele que fala, como se escutaria uma música de dança. 

— Todos os homens, — dizia ele, — já tiveram a idade dos querubins; é a época em que, à falta de dríades (37), a gente abraça, sem desprazer, o tronco dos carvalhos. É o primeiro grau do amor. No segundo grau, principia-se a escolher. Poder deliberar é já uma decadência. É então que se procura decididamente a beleza. Quanto a mim, senhores, vanglorio-me de ter chegado, há muito tempo, à época climatérica do terceiro grau, no qual nem a beleza é suficiente, se não é temperada de perfume, de enfeites, et cætera. Confesso mesmo que, às vezes, aspiro como a uma felicidade desconhecida, a um certo grau que deve marcar a calma absoluta. Mas, durante toda a minha vida, exceto na idade de querubim, tenho sido mais sensível do que qualquer outro à enervante toleima, à irritante mediocridade das mulheres. O que amo nos animais é, sobretudo, a sua candura. E agora julguem quanto devo ter sofrido com minha última amante. Ela era bastarda de um príncipe. Bonita, naturalmente; sem isso, porque haveria eu de querê-la? Mas, essa qualidade era prejudicada por uma ambição inconveniente e disforme. Era uma mulher que queria sempre fazer-se de homem. “Você não é homem! Ah, se eu fosse homem! De nós dois, o homem sou eu!” Tais eram os insuportáveis refrões que saíam daquela boca da qual eu desejaria que só partissem canções. A propósito de um livro, de um poema, de uma ópera pela qual eu deixasse escapar a minha admiração, ela logo me dizia: “Acha que isso seja assim tão forte?” E argumentava: “E conhecerá você sua força?” Um belo dia, resolveu dedicar-se à química, de modo que, entre minha boca e a sua, passei a encontrar uma máscara de vidro. Além disso, muito esquiva. Se às vezes eu a excitava com um gesto um pouco amoroso demais, convulsionava-se como uma sensitiva violada... 

— E como acabou? — perguntou um dos outros. — Nunca pensei que você fosse tão paciente. 

— Deus — continuou ele — deu o remédio. Um dia, encontrei essa Minerva (38), ávida de força ideal, num colóquio com o meu criado, e numa situação que me obrigou a retirar-me para não envergonhá-los. À noite, mandei os dois embora, pagando-lhes o saldo de suas contas. 

— Quanto a mim, — disse o que interrompera, — só posso queixar-me de mim mesmo. 

A felicidade foi morar em minha casa e eu não a reconheci. O destino doara-me, estes últimos tempos, o usufruto de uma mulher que era certamente a mais amável, obediente e dedicada das criaturas. Sempre disposta, mas sem entusiasmo! “Quero, pois você gosta”, — era sua resposta habitual. Se vocês dessem uma bengalada naquela parede ou naquele banco, obteriam mais suspiros do que os impulsos do amor mais furioso do seio de minha amante. Depois de um ano de vida comum, ela confessou-me que jamais conhecera o prazer. Enjoei desse duelo desigual, e a incomparável rapariga casou-se. Tive, mais tarde, a ideia de tornar a vê-la e então ela me disse, mostrando-me seis lindas crianças: “Pois é, meu caro amigo, a esposa continua tão virgem como quando era sua amante”. Nada mudara naquela criatura. Às vezes, tenho saudades: eu deveria ter-me casado com ela. 

Os outros puseram-se a rir, e um terceiro disse por sua vez: — Senhores, conheci prazeres que talvez tenham esquecido. Quero falar do lado cômico do amor, cômico que não exclui a admiração. Creio que admirei mais minha última amante do que vocês odiaram ou amaram as suas. E toda a gente admirava-a tanto quanto eu. Quando entrávamos num restaurante, ao cabo de alguns minutos, todos se esqueciam de comer para contemplá-la. Os próprios garçons e a caixa experimentavam esse êxtase contagioso ao ponto de se esquecerem dos seus deveres. Em suma, vivi por algum tempo com um fenômeno vivo. Ela comia, mastigava, triturava, devorava, engolia, mas com o ar mais natural e despreocupado deste mundo. Mantinha-me assim, durante muito tempo, em êxtase. Tinha um modo delicado, sonhador, inglês e romântico de dizer: “Estou com fome!” E repetia essas palavras dia e noite, mostrando os dentes mais bonitos deste mundo, que os teriam enternecido e alegrado ao mesmo tempo. Eu poderia ter feito fortuna mostrando-a nas feiras como um monstro polífago. Alimentava-a bem; no entanto, ela me abandonou... 

Por um fornecedor de víveres, talvez? Mais ou menos isso, uma espécie de empregado da intendência que, com alguns expedientes que conhecia, talvez tenha fornecido àquela pobre criança a ração de vários soldados. É pelo menos o que suponho. 

— Eu — disse o quarto — é que amarguei sofrimentos atrozes, justamente pelo contrário do que em geral se atribui à fêmea egoísta. Acho que vocês, mortais de tanta sorte, não têm o direito de se queixarem das imperfeições de suas amantes! Disse isso num tom sério demais para um homem de aspecto doce e grave, com uma fisionomia quase clerical, infelizmente iluminada por uns olhos cinzentos claros, cuja expressão parecia dizer: “Eu quero!” ou: “É preciso!” ou ainda: “Não perdoo!” — Se, nervoso como o conheço, G..., medrosos e volúveis como vocês dois, K... e J..., vocês se tivessem unido a certa mulher de minhas relações, ou teriam fugido, ou estariam mortos. Pois eu sobrevivi, como estão vendo. Imaginem uma pessoa incapaz de cometer uma falta, de sentimento ou de cálculo; imaginem uma desoladora serenidade de temperamento; uma dedicação sem falsidade e sem exageros; uma meiguice sem fraqueza; uma energia sem violência. A história do meu amor parece uma interminável viagem numa planície pura e polida como um espelho, vertiginosamente monótona, que refletisse todos os meus sentimentos e gestos com a irônica exatidão da minha própria consciência, de maneira que eu não pudesse permitir-me uma atitude ou um sentimento condenável sem sentir imediatamente a muda censura do meu inseparável espectro. O amor parecia-me uma tutela. Quantas tolices ela me impediu de fazer e que eu lamento não ter cometido! Quantas dívidas pagas contra a minha vontade! Privava-me de todos os benefícios que eu pudesse tirar da minha loucura pessoal. Com um regime frio e seguido à risca, refreava todos os meus caprichos. Por cúmulo do horror, passado o perigo, não exigia reconhecimento. 

Quantas vezes não tive o ímpeto de saltar-lhe à garganta e gritar-lhe: “Seja imperfeita, miserável! Para que eu possa gostar de você sem aborrecimento e sem cólera!” Admirei-a durante vários anos, o coração cheio de ódio. Afinal, não fui eu que morri! — Ah! — interromperam os outros, — então ela morreu? 

— Sim! Aquilo não podia continuar. O amor tornara-se para mim um pesadelo horrível. Vencer ou morrer, como ensina a Política; eis a alternativa que o destino me impunha. Uma noite, num bosque... à beira de um charco... após um melancólico passeio em que os olhos dela refletiam a doçura do céu, e em que o meu coração estava crispado como o inferno...

— O quê! 

— Como! 

— Que quer você dizer? 

— Era inevitável. Tenho um sentimento de equidade muito grande para espancar, ultrajar ou despedir um servidor irrepreensível. Mas, era preciso conciliar esse sentimento com o horror que aquele ser me inspirava, e livrar-me dele sem lhe faltar ao respeito. Que queriam que eu fizesse, se ela era perfeita? 

Os três outros companheiros lançaram-lhe um olhar vago e meio estúpido, como fingindo não compreender e confessando implicitamente que também não se sentiam capazes de ação tão rigorosa, embora suficientemente explicada. 

Em seguida, mandaram vir novas garrafas, para matar o tempo, que torna a vida tão dura, e acelerar a vida, que corre tão devagar.


___________

Charles-Pierre Baudelaire (Paris, 9 de abril de 1821 — Paris, 31 de agosto de 1867) foi um poeta boémio ou dandy ou flâneur e teórico da arte francesa. É considerado um dos precursores do simbolismo e reconhecido internacionalmente como o fundador da tradição moderna em poesia, juntamente com Walt Whitman, embora tenha se relacionado com diversas escolas artísticas. Sua obra teórica também influenciou profundamente as artes plásticas do século XIX.
Nasceu em Paris a 9 de abril de 1821. Estudou no Colégio Real de Lyon e Lycée Louis-le-Grand (de onde foi expulso por não querer mostrar um bilhete que lhe foi passado por um colega).
Em 1840 foi enviado pelo padrasto, preocupado com sua vida desregrada, à Índia, mas nunca chegou ao destino. Pára na ilha da Reunião e retorna a Paris. Atingindo a maioridade, ganha posse da herança do pai. Por dois anos vive entre drogas e álcool na companhia de Jeanne Duval. Em 1844 sua mãe entra na justiça, acusando-o de pródigo, e então sua fortuna torna-se controlada por um notário.
Em 1857 é lançado As flores do mal contendo 100 poemas. O autor do livro é acusado, no mesmo ano, pela justiça, de ultrajar a moral pública. Os exemplares são apreendidos, pagando de multa o escritor 300 francos e a editora 100 francos.
Essa censura se deveu a apenas seis poemas do livro. Baudelaire aceita a sentença e escreve seis novos poemas, "mais belos que os suprimidos", segundo ele.
Mesmo depois disso, Baudelaire tenta ingressar na Academia Francesa. Há divergência, entre os estudiosos, sobre a principal razão pela qual Baudelaire tentou isso. Uns dizem que foi para se reabilitar aos olhos da mãe (que dessa forma lhe daria mais dinheiro), e outros dizem que ele queria se reabilitar com o público em geral, que via suas obras com maus olhos em função das duras críticas que ele recebia da burguesia.
Morreu prematuramente sem sequer conhecer a fama, em 1867, em Paris, e seu corpo está sepultado no Cemitério do Montparnasse, em Paris.

__________________

Leia também:

(37) Dríades ou dríadas, antigas divindades silvestres, ninfas dos bosques.

(38) MINERVA, também chamada PALAS ou ATENA entre os gregos, era a deusa da sabedoria e das artes. A lenda representa-a saindo armada da cabeça de Júpiter, que Vulcano abrira com um machado.


Nenhum comentário:

Postar um comentário