segunda-feira, 18 de fevereiro de 2019

Edgar Allan Poe - Contos: Um Homem na Lua (04)

Edgar Allan Poe - Contos




Um Homem na Lua 
Título original: The Unparalleled Adventure of One Hans Pfaall 
Publicado em 1835






Cheio o coração de delirantes fantasias 
Que eu capitaneio, 
Com uma lança de fogo e um cavalo de ar 
Viajo através da imensidade.

— Canção de Tom O’Fedlan



continuando...




«Às oito horas tinha alcançado uma altura de 17 milhas. Portanto, pareceu-me evidente não só que aumentaria a minha velocidade ascensional, mas também que esse acréscimo não era menos sensível embora não tivesse deitado o lastro fora. As dores violentas de cabeça e de ouvidos voltavam de novo, a intervalos, e de quando em quando as hemorragias nasais. Mas apesar de tudo, sofria muito menos que antes, não obstante a dificuldade respiratória e os movimentos espasmódicos que se sucediam a cada inspiração. Então, preparei o aparelho condensador para poder fazê-lo funcionar imediatamente. 
«Durante esse período da minha ascensão, o aspecto da terra era realmente magnífico. Para Oeste, para o Norte, para o Sul, até aos limites que a minha vista dominava, o mar estendia-se até longe, imóvel na aparência, tomando de momento para momento uma tonalidade azul mais profunda. Para Este estendiam-se bem distintamente as Ilhas Britânicas; as costas ocidentais da França e da Espanha e uma pequena parte do norte do continente africano. Era absolutamente impossível descobrir o menor vestígio de edificações e as mais orgulhosas cidades da humanidade tinham desaparecido completamente da face da terra. 
«O que mais me assombrou no aspecto das coisas situadas por baixo de mim foi a aparente concavidade da superfície do globo. Eu esperava estupidamente que a sua convexidade real se manifestasse cada vez mais à medida que a altura aumentasse. No entanto, alguns segundos de reflexão bastaram-me para compreender este contra-senso. 
«Uma linha traçada perpendicularmente do ponto em que eu me encontrava até à Terra formaria a perpendicular de um triângulo-retângulo cuja base se estendia em ângulo reto até ao horizonte, e a hipotenusa, do horizonte até ao ponto ocupado pelo meu balão. Mas a altura em que eu estava nada significava comparativamente à extensão abarcada pela minha vista. Noutros termos: a base e a hipotenusa do suposto triângulo eram tão longas em relação à perpendicular que podiam considerar-se como duas linhas quase paralelas. Deste modo, o horizonte do aeronauta aparecia sempre ao nível da barquinha; mas como o ponto situado imediatamente abaixo parecia e estava, com efeito, a uma imensa distância, era lógico também que o supusesse igualmente a uma imensa distância abaixo do horizonte. Daqui a impressão de concavidade; e esta impressão teria de durar até que a altura se encontrasse, relativamente à extensão da perspetiva, numa proporção igual, isto é, até que o aparente paralelismo da base e da hipotenusa desaparecessem. 
«Entretanto, como as pombas pareciam sofrer horrivelmente, resolvi pô-las em liberdade. Soltei primeiro uma delas, um soberbo exemplar cinzento, ela pula na borda da barquinha. Parecia extraordinariamente mal disposta: olhava em volta de si, batia as asas, fazia ouvir o seu arrulho, mas não se atrevia a saltar da barquinha. Por fim, agarrei-a e atirei-a a umas seis jardas de distância. 
«Mas, em vez de descer, como eu supunha, fazia esforços desesperados para voltar ao balão, soltando ao mesmo tempo gritos agudíssimos. Conseguiu por fim voltar à sua antiga posição na borda da barquinha, mas, mal pousara nela as patinhas, inclinou a cabeça sobre o peito e caiu morta no fundo da nave. 
«A outra não teve sorte tão deplorável. Para evitar que seguisse o exemplo da sua companheira e voltasse para o balão, precipitei-a para baixo com todas as minhas forças e vi então com alegria que continuava descendo a grande velocidade, utilizando as asas com facilidade e de uma maneira perfeitamente natural. Não tardou a desaparecer da minha vista e tenho a certeza de que chegou sã e salva a porto seguro. 
«Quanto à gata, que me parecia restabelecida da sua crise, regalava-se agora esplendidamente com a pomba morta e acabou por adormecer dando sinais de grande satisfação. Os gatinhos recém-nascidos não manifestavam o menor mal-estar. 
«Às oito e um quarto, não podendo já respirar por mais tempo sem sentir uma dor intolerável, comecei a ajustar em volta da barquinha o aparelho condensador. Este aparelho exige algumas explicações. 
«Lembrar-se-ão Vossas Excelências de que o meu fim, ao encerrar-me por completo no fundo daquela atmosfera tão singularmente rarefeita, era desenvolver, com a ajuda do meu condensador, uma quantidade dessa mesma atmosfera suficiente para as necessidades respiratórias. 
«Assim, portanto, tinha preparado um grande saco de borracha muito flexível, muito sólido, absolutamente impermeável, que formava uma espécie de invólucro dentro do qual entrava a barquinha e cujos extremos passavam por cima dos bordos, e subiam exteriormente ao longo das costas, até ao extremo do arco, colocado imediatamente abaixo do balão. 
«Este invólucro podia fechar-se hermeticamente por meio de uma espécie de nó corredio colocado em volta do arco superior. Nos lados deste invólucro tinha adaptado três pedaços de cristal muito sólido, mas muito transparente, e através dos quais podia olhar, em volta de mim, para todas as direções. Na parte do invólucro que formava o fundo tinha uma quarta janela correspondente a uma pequena abertura praticada no fundo da barquinha, e graças a ela podia ver também perpendicularmente. 
«Aproximadamente a um pé abaixo de uma das janelas laterais havia uma abertura circular de três polegadas de diâmetro com um rebordo adaptável à espiral de um parafuso. Neste rebordo aparafusava-se o largo tubo do condensador e, fazendo o vácuo no corpo da máquina, atraía-se a este tubo uma certa quantidade de ar rarefeito, que por sua vez era devolvido em estado de condensação e misturado ao ar ténue contido dentro da câmara. Repetida várias vezes, esta operação renovava a atmosfera o suficiente para as necessidades respiratórias. Mas, dada a exiguidade do espaço em que eu me movia, claro está que em pouco tempo o ar se viciaria fatalmente para a vida com o seu contínuo contacto com os pulmões. Este perigo desapareceria por meio de uma válvula de escape colocada no fundo da barquinha, e que, aberta uns segundos, deixaria expulsar uma quantidade de atmosfera viciada equivalente à que deixava entrar, ao mesmo tempo, a bomba do aparelho condensador. Para experimentar as condições atmosféricas do ar livre dependurei a gata e os filhos de um cesto preso à barquinha por um puxador colocado perto da válvula e através da qual podia dar-lhes de comer quando necessitassem. 
«Quando acabei todos estes preparativos e enchi a câmara de ar condensado eram nove menos dez. Durante estas operações sofri de uma maneira horrível com a dificuldade de respirar e arrependi-me amargamente da negligência, ou da talvez fatal imprudência, que me fizera deixar para o último momento um assunto de tanta importância. Mas não tardei a sentir os benefícios da minha invenção. Respirei de novo com inteira liberdade e fui agradavelmente surpreendido pela desaparição das dores sofridas até então. Só me ficou um ligeiro mal-estar de cabeça, acompanhado de uma sensação de plenitude ou de distensão nos punhos, nas canelas e na garganta. 
«Às nove menos vinte, quer dizer, pouco depois de ter fechado a câmara, o mercúrio alcançou o seu limite extremo e caiu na celha do barômetro, que, conforme disse anteriormente, era bastante grande. Marcava então uma altura de 123000 pés, ou sejam 25 milhas, e portanto o meu olhar não alcançava menos da trecentésima-vigésima parte da superfície total da Terra. Às nove perdi novamente de vista a Terra para o lado Este, mas não antes de observar que o balão derivava rapidamente na direção nordeste. O oceano conservava abaixo de mim a sua superfície côncava, mas via-se com dificuldade por causa de várias e flutuantes massas de nuvens. 
«Às nove e meia fiz de novo a experiência das penas e atirei um punhado delas através da válvula. Não voltejaram como eu supunha mas caíram perpendicularmente em massa e com tal velocidade que as perdi de vista nalguns segundos. Surpreendeu-me este extraordinário fenômeno. Não podia acreditar que a minha velocidade ascensional fosse tão súbita e prodigiosamente acelerada. Mas pensei também que a atmosfera estava demasiado rarefeita para suster sequer uma pena e que a rapidez da sua descida correspondia à combinação das duas velocidades: a delas ao cair e a do balão subindo. 
«Às dez reparei que não tinha nada a fazer e que nada, absolutamente nada, reclamava a minha atenção imediata. Marchava tudo como que sobre rodas e eu estava convencido de que o balão subia com incessante e crescente velocidade, embora não tivesse nenhum processo para o verificar. 
«Não sentia dor nem mal-estar de qualquer espécie, e até desfrutava de um bem-estar desconhecido desde que saíra de Rotterdam. Entretinha-me a experimentar o estado de todos os instrumentos e a renovar, de vez em quando, a atmosfera da câmara. No que se refere a este último ponto, resolvi fazê-lo de quarenta em quarenta minutos, mais para garantir por completo a minha saúde que por uma necessidade absoluta. 
«Estas tarefas não me impediam, por pouco que fosse, toda a espécie de sonhos e conjeturas. Pensava nas estranhas e quiméricas regiões lunares. A imaginação, livre por fim de todas as peias externas, vagueava a seu gosto por entre as múltiplas maravilhas de um planeta tenebroso e variado. Tão depressa eram bosques emaranhados e veneráveis como rochosos precipícios e cascatas retumbantes precipitando-se em abismos insondáveis; tão depressa chegava a plácidas solidões inundadas por um sol de meio-dia, onde não penetravam os ventos celestiais, como via estender-se vastos prados de papoulas e de grandes flores, semelhantes a lírios, cobertos de silêncio e eternamente imóveis. Noutros momentos parecia-me viajar longe, muito longe, e entrar num lugar que não era mais do que um vago e tenebroso lago ladeado por uma fronteira de nuvens. Mas nem só estas imagens se apoderaram do meu cérebro. O meu espírito também procurava uma série de horrores da mais negra, da mais terrível natureza, e cuja simples hipótese ou possibilidade sacudia as mais ínfimas profundidades da minha alma. 
«Não me obstinava, no entanto, muito tempo na ideia destes quiméricos perigos. Sérios bastante eram os reais e palpáveis que rodeavam a minha viagem para absorver a minha atenção. 
«Às cinco da tarde, ao renovar a atmosfera da câmara, aproveitei a oportunidade para observar a gata e os filhos através da válvula. 
«A gata parecia sofrer novamente e não duvidei um só instante de que o seu sofrimento provinha da dificuldade respiratória. Mas no que se refere aos gatinhos, o meu assombro não teve limites. Embora inferior ao da mãe, esperava vê-los presos de algum mal-estar. Longe disso: vi que desfrutavam perfeita saúde e que respiravam com toda a liberdade. Isto confirmava de um modo amplo e rotundo a minha teoria, que uma atmosfera quimicamente insuficiente para as funções vitais de um ser nascido fora dela não produzia o menor incômodo ao que estivesse no caso contrário, como sucedia aos gatinhos. 
«Desgraçadamente eu não poderia comprovar novamente o triunfo da minha teoria, porque, ao passar a mão, através da válvula, com uma taça cheia de água para a gata, prendeu-se-me a manga da camisa na anilha que sustinha o cesto e soltei-o do balão em que estava pendurado. Evaporado no ar, o cesto com os seus habitantes não teria desaparecido da minha vista de forma mais súbita. 
«Não devia ter passado nem sequer a décima parte de um segundo entre o ato de soltar-se e a sua desaparição. Desejei-lhes boa viagem, embora, como é natural, não acreditasse que a bicharada e os filhos pudessem sobreviver para contar a sua odisseia. 
«Às seis horas observei que uma grande parte da superfície da Terra visível para Este se fundia numa sombra espessa que avançava incessante e rapidamente; por fim, às sete menos cinco, toda a superfície ficou envolvida pelas trevas da noite. Alguns instantes depois, os raios do sol poente deixaram de iluminar o balão e esta circunstância, por inesperada, causou-me um enorme prazer. Era indubitável que pela manhã contemplaria a saída do astro luminoso muitas horas antes dos cidadãos de Rotterdam, embora eles estivessem muito mais para Este do que eu. Cada dia estava mais alto na atmosfera, e portanto gozaria da luz solar um período de tempo cada vez mais longo.


Continua...



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Edgar Allan Poe (nascido Edgar Poe; Boston, Massachusetts, Estados Unidos, 19 de Janeiro de 1809 — Baltimore, Maryland, Estados Unidos, 7 de Outubro de 1849) foi um autor, poeta, editor e crítico literário estadunidense, integrante do movimento romântico estadunidense.[1][2] Conhecido por suas histórias que envolvem o mistério e o macabro, Poe foi um dos primeiros escritores americanos de contos e é geralmente considerado o inventor do gênero ficção policial, também recebendo crédito por sua contribuição ao emergente gênero de ficção científica.[3] Ele foi o primeiro escritor americano conhecido por tentar ganhar a vida através da escrita por si só, resultando em uma vida e carreira financeiramente difíceis.

Ele nasceu como Edgar Poe, em Boston, Massachusetts; quando jovem, ficou órfão de mãe, que morreu pouco depois de seu pai abandonar a família. Poe foi acolhido por Francis Allan e o seu marido John Allan, de Richmond, Virginia, mas nunca foi formalmente adotado. Ele frequentou a Universidade da Virgínia por um semestre, passando a maior parte do tempo entre bebidas e mulheres. Nesse período, teve uma séria discussão com seu pai adotivo e fugiu de casa para se alistar nas forças armadas, onde serviu durante dois anos antes de ser dispensado. Depois de falhar como cadete em West Point, deixou a sua família adotiva. Sua carreira começou humildemente com a publicação de uma coleção anônima de poemas, Tamerlane and Other Poems (1827).

Poe mudou seu foco para a prosa e passou os próximos anos trabalhando para revistas e jornais, tornando-se conhecido por seu próprio estilo de crítica literária. Seu trabalho o obrigou a se mudar para diversas cidades, incluindo Baltimore, Filadélfia e Nova Iorque. Em Baltimore, casou-se com Virginia Clemm, sua prima de 13 anos de idade. Em 1845, Poe publicou seu poema The Raven, foi um sucesso instantâneo. Sua esposa morreu de tuberculose dois anos após a publicação. Ele começou a planejar a criação de seu próprio jornal, The Penn (posteriormente renomeado para The Stylus), porém, em 7 de outubro de 1849, aos 40 anos, morreu antes que pudesse ser produzido. A causa de sua morte é desconhecida e foi por diversas vezes atribuída ao álcool, congestão cerebral, cólera, drogas, doenças cardiovasculares, raiva, suicídio, tuberculose entre outros agentes.

Poe e suas obras influenciaram a literatura nos Estados Unidos e ao redor do mundo, bem como em campos especializados, tais como a cosmologia e a criptografia. Poe e seu trabalho aparecem ao longo da cultura popular na literatura, música, filmes e televisão. Várias de suas casas são dedicadas como museus atualmente.


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Edgar Allan Poe

CONTOS

Originalmente publicados entre 1831 e 1849 






Edgar Allan Poe - Contos: Um Homem na Lua (01)

Edgar Allan Poe - Contos: Um Homem na Lua (02)

Edgar Allan Poe - Contos: Um Homem na Lua (03)

Edgar Allan Poe - Contos: Um Homem na Lua (05)

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