terça-feira, 19 de fevereiro de 2019

Stendhal - O Vermelho e o Negro: O Canto do Galo (XV)

Livro I 

A verdade, a áspera verdade. 
Danton 


Capítulo XV

O CANTO DO GALO

Amor em latim se diz amor; 
Do amor, portanto, vem a morte, 
E também a angústia que morde, 
Lamentos, ciladas, crimes, remorsos.

BRASÃO DO AMOR





SE JULIEN TIVESSE um pouco da habilidade que tão gratuitamente se atribuía, poderia ter-se felicitado no dia seguinte pelo efeito produzido por sua viagem a Verrières. Sua ausência fizera esquecer suas imperícias. Ainda naquele dia, esteve de muito mau humor; à noite, ocorreu-lhe uma ideia ridícula, e ele a comunicou à sra. de Rênal com rara intrepidez. 

Tão logo sentaram-se no jardim, e sem esperar uma escuridão suficiente, Juliem aproximou sua boca do ouvido da sra. de Rênal e, com o risco de comprometê-la horrivelmente, disse-lhe: 

– Esta noite às duas horas irei a seu quarto, senhora, tenho algo a lhe dizer. 

Julien temia que seu pedido não fosse aceito; seu papel de sedutor pesava-lhe tanto que, se pudesse seguir sua vontade, teria se recolhido em seu quarto por vários dias, deixando de ver as duas senhoras. Ele compreendia que, por sua conduta estudada da véspera, pusera a perder as belas aparências do dia precedente, e não sabia de fato a que santo recorrer. 

A sra. de Rênal respondeu com uma indignação real, e de maneira alguma exagerada, ao anúncio impertinente que Julien ousava fazer-lhe. Ele acreditou ver desprezo em sua curta resposta. Tinha certeza de que nessa resposta, pronunciada em voz muito baixa, ouvira as palavras não amole! Sob pretexto de dizer qualquer coisa às crian​ças, Julien foi até o quarto delas e, ao voltar, sentou-se ao lado da sra. Derville e distante da sra. de Rênal. Afastou assim toda possibilidade de pegar-lhe a mão. A conversa foi séria, e Julien saiu-se bem, com exceção de alguns momentos de silêncio, durante os quais forçava os miolos. Que manobra posso inventar, pensava, para obrigar a sra. de Rênal a mostrar-me aqueles sinais inequívocos de ternura que me faziam crer, há três dias, que ela era minha? 

Julien estava extremamente desconcertado com a situação quase sem saída de suas preocupações. Contudo, nada o teria embaraçado mais que o sucesso. 

Quando se separaram à meia-noite, seu pessimismo o fez pensar que era visto com desprezo pela sra. Derville, e provavelmente de maneira não muito melhor pela sra. de Rênal. 

Com grande mau humor e muito humilhado, não conseguiu dormir. Estava a mil léguas da ideia de renunciar a todo fingimento, a todo projeto, e de viver o cotidiano com a sra. de Rênal, contentando-se como uma criança com a felicidade de cada dia. 

Fatigou os miolos tentando inventar manobras engenhosas, que no instante seguinte achava absurdas; em suma, estava muito infeliz, quando soaram duas horas no relógio do castelo.

Esse ruído o despertou como o canto do galo despertou são Pedro. Viu-se no instante mais penoso do dia. Não havia mais pensado em sua proposta impertinente desde o momento em que a fizera; ela fora muito mal recebida. 

Eu disse a ela que iria a seu quarto às duas horas, falou a si mesmo, levantando-se; posso ser inexperiente e grosseiro, como é próprio ao filho de um aldeão, a sra. Derville deu-me a entender isso, mas pelo menos não serei covarde. 

Julien tinha razão de felicitar-se por sua coragem, nunca havia se imposto uma obrigação mais penosa. Ao abrir sua porta, estava tão trêmulo que os joelhos não o sustinham e foi forçado a apoiar-se contra a parede. 

Estava sem sapatos. Foi escutar à porta do sr. de Rênal, cujo ronco pôde distinguir. Ficou desolado com isso, pois não havia mais pretexto para não ir até o quarto dela. Mas o que farei lá, meu Deus?! Não tinha nenhum projeto e, mesmo que o tivesse, sentia-se tão perturbado que seria incapaz de segui-lo. 

Enfim, e sofrendo mil vezes mais do que se marchasse para a morte, entrou no pequeno corredor que conduzia ao quarto da sra. de Rênal. Abriu a porta com a mão trêmula e fazendo um ruído terrível. 

Havia luz, uma lamparina ardia sob a lareira; ele não esperava esse novo contratempo. Ao vê-lo entrar, a sra. de Rênal lançou-se vivamente para fora da cama. Desgraçado!, gritou. Houve uma pequena desordem. Julien esqueceu seus vãos projetos e voltou a seu papel natural; não agradar a uma mulher tão encantadora pareceu-lhe a maior das infelicidades. Respondeu a suas reprovações lançando-se a seus pés, abraçando seus joelhos. Como ela lhe falasse com extrema dureza, ele desfez-se em lágrimas. 

Algumas horas depois, quando Julien saiu do quarto da sra. de Rênal, poder-se-ia dizer, em estilo de romance, que ele não tinha mais nada a desejar. De fato, devia ao amor que inspirara, e à impressão imprevista que encantos sedutores haviam produzido nele, uma vitória à qual não o teria conduzido sua astúcia tão canhestra. 

Mas, nos momentos mais doces, vítima de um orgulho bizarro, ele pretendeu ainda desempenhar o papel de um homem acostumado a subjugar as mulheres: fez incríveis esforços para estragar o que tinha de amável. Em vez de estar atento aos transportes que fazia nascer, e aos remorsos que os tornavam mais vivos, a ideia do dever jamais cessou de estar presente a seus olhos. Ele temia um remorso horrível e um ridículo eterno, caso se afastasse do modelo ideal que se propunha seguir. Em uma palavra, o que fazia de Julien um ser superior foi precisamente o que o impediu de saborear a felicidade que se lhe oferecia. É como uma moça de dezesseis anos, de cores lindas, que, para ir ao baile, tem a insensatez de cobrir-se de ruge. 

Mortalmente assustada pelo aparecimento de Julien, a sra. de Rênal expusera-se aos mais cruéis alarmes. O choro e o desespero de Julien haviam-na perturbado viva​mente. 

Mesmo quando nada mais podia recusar-lhe, ela rechaçava Julien para longe de si, com uma indignação real, para a seguir lançar-se em seus braços. Em toda essa conduta não havia nenhum projeto. Acreditava-se condenada sem remissão, e buscava esconder-se da visão do inferno cobrindo Julien das mais vivas carícias. Em suma, nada teria faltado à felicidade de nosso herói, nem mesmo uma sensibilidade ardente na mulher que acabava de arrebatar, se ele soubesse usufruí-la. A partida de Julien não fez cessar os transportes que a agitavam contra sua vontade, e o combate com os remorsos que a dilaceravam. 

Meu Deus! Ser feliz, ser amado, é apenas isso? Tal foi o primeiro pensamento de Julien ao voltar a seu quarto. Estava naquele estado de pasmo e de inquieta agitação em que cai a alma que acabou de obter o que há muito desejava. Ela estava acostumada a desejar, não encontra mais o que desejar, e no entanto não tem ainda lembranças. Como o soldado que retorna do desfile, Julien repassou atentamente todos os detalhes de sua conduta. 

– Nada faltou do que impus a mim mesmo? Desempenhei bem meu papel? 

E que papel? O de um homem acostumado a ser brilhante com as mulheres.






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ADVERTÊNCIA DO EDITOR

Esta obra estava prestes a ser publicada quando os grandes acontecimentos de julho [de 1830] vieram dar a todos os espíritos uma direção pouco favorável aos jogos da imaginação. Temos motivos para acreditar que as páginas seguintes foram escritas em 1827.


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Henri-Marie Beyle, mais conhecido como Stendhal (Grenoble, 23 de janeiro de 1783 — Paris, 23 de março de 1842) foi um escritor francês reputado pela fineza na análise dos sentimentos de seus personagens e por seu estilo deliberadamente seco.


Órfão de mãe desde 1789, criou-se entre seu pai e sua tia. Rejeitou as virtudes monárquicas e religiosas que lhe inculcaram e expressou cedo a vontade de fugir de sua cidade natal. Abertamente republicano, acolheu com entusiasmo a execução do rei e celebrou inclusive a breve detenção de seu pai. A partir de 1796 foi aluno da Escola central de Grenoble e em 1799 conseguiu o primeiro prêmio de matemática. Viajou a Paris para ingressar na Escola Politécnica, mas adoeceu e não pôde se apresentar à prova de acesso. Graças a Pierre Daru, um parente longínquo que se converteria em seu protetor, começou a trabalhar no ministério de Guerra.

Enviado pelo exército como ajudante do general Michaud, em 1800 descobriu a Itália, país que tomou como sua pátria de escolha. Desenganado da vida militar, abandonou o exército em 1801. Entre os salões e teatros parisienses, sempre apaixonado de uma mulher diferente, começou (sem sucesso) a cultivar ambições literárias. Em precária situação econômica, Daru lhe conseguiu um novo posto como intendente militar em Brunswick, destino em que permaneceu entre 1806 e 1808. Admirador incondicional de Napoleão, exerceu diversos cargos oficiais e participou nas campanhas imperiais. Em 1814, após queda do corso, se exilou na Itália, fixou sua residência em Milão e efetuou várias viagens pela península italiana. Publicou seus primeiros livros de crítica de arte sob o pseudônimo de L. A. C. Bombet, e em 1817 apareceu Roma, Nápoles e Florença, um ensaio mais original, onde mistura a crítica com recordações pessoais, no que utilizou por primeira vez o pseudônimo de Stendhal. O governo austríaco lhe acusou de apoiar o movimento independentista italiano, pelo que abandonou Milão em 1821, passou por Londres e se instalou de novo em Paris, quando terminou a perseguição aos aliados de Napoleão.

"Dandy" afamado, frequentava os salões de maneira assídua, enquanto sobrevivia com os rendimentos obtidos com as suas colaborações em algumas revistas literárias inglesas. Em 1822 publicou Sobre o amor, ensaio baseado em boa parte nas suas próprias experiências e no qual exprimia ideias bastante avançadas; destaca a sua teoria da cristalização, processo pelo que o espírito, adaptando a realidade aos seus desejos, cobre de perfeições o objeto do desejo.

Estabeleceu o seu renome de escritor graças à Vida de Rossini e às duas partes de seu Racine e Shakespeare, autêntico manifesto do romantismo. Depois de uma relação sentimental com a atriz Clémentine Curial, que durou até 1826, empreendeu novas viagens ao Reino Unido e Itália e redigiu a sua primeira novela, Armance. Em 1828, sem dinheiro nem sucesso literário, solicitou um posto na Biblioteca Real, que não lhe foi concedido; afundado numa péssima situação económica, a morte do conde de Daru, no ano seguinte, afetou-o particularmente. Superou este período difícil graças aos cargos de cônsul que obteve primeiro em Trieste e mais tarde em Civitavecchia, enquanto se entregava sem reservas à literatura.

Em 1830 aparece sua primeira obra-prima: O Vermelho e o Negro, uma crónica analítica da sociedade francesa na época da Restauração, na qual Stendhal representou as ambições da sua época e as contradições da emergente sociedade de classes, destacando sobretudo a análise psicológica das personagens e o estilo direto e objetivo da narração. Em 1839 publicou A Cartuxa de Parma, muito mais novelesca do que a sua obra anterior, que escreveu em apenas dois meses e que por sua espontaneidade constitui uma confissão poética extraordinariamente sincera, ainda que só tivesse recebido o elogio de Honoré de Balzac.

Ambas são novelas de aprendizagem e partilham rasgos românticos e realistas; nelas aparece um novo tipo de herói, tipicamente moderno, caracterizado pelo seu isolamento da sociedade e o seu confronto com as suas convenções e ideais, no que muito possivelmente se reflete em parte a personalidade do próprio Stendhal.

Outra importante obra de Stendhal é Napoleão, na qual o escritor narra momentos importantes da vida do grande general Bonaparte. Como o próprio Stendhal descreve no início deste livro, havia na época (1837) uma carência de registos referentes ao período da carreira militar de Napoleão, sobretudo a sua atuação nas várias batalhas na Itália. Dessa forma, e também porque Stendhal era um admirador incondicional do corso, a obra prioriza a emergência de Bonaparte no cenário militar, entre os anos de 1796 e 1797 nas batalhas italianas. Declarou, certa vez, que não considerava morrer na rua algo indigno e, curiosamente, faleceu de um ataque de apoplexia, na rua, sem concluir a sua última obra, Lamiel, que foi publicada muito depois da sua morte.

O reconhecimento da obra de Stendhal, como ele mesmo previu, só se iniciou cerca de cinquenta anos após sua morte, ocorrida em 1842, na cidade de Paris.



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