terça-feira, 26 de fevereiro de 2019

Edgar Allan Poe - Contos: Um Homem na Lua (05)

Edgar Allan Poe - Contos




Um Homem na Lua 
Título original: The Unparalleled Adventure of One Hans Pfaall 
Publicado em 1835






Cheio o coração de delirantes fantasias 
Que eu capitaneio, 
Com uma lança de fogo e um cavalo de ar 
Viajo através da imensidade.

— Canção de Tom O’Fedlan



continuando...




«Resolvi, então, escrever um diário da viagem, contando os dias de vinte e quatro horas consecutivas sem ter em conta os intervalos de trevas. Às dez, sentindo chegar-me o sono, resolvi deitar-me; mas então apresentou-se-me uma dificuldade que, apesar de ser muito lógica, não me tinha ocorrido até então. Se me pusesse a dormir, como renovaria o ar da câmara durante a noite? Respirar essa atmosfera mais de uma hora era absolutamente impossível, e se se prolongasse esta situação um quarto de hora mais as consequências não seriam deploráveis mas fatais. 
«Este receio, no entanto, não me preocupou muito tempo. O homem é escravo dos hábitos e a rotina faz com que considere essencialmente importantes para a sua existência urna série de necessidades que na realidade o não são. Claro está que eu não podia deixar de dormir; mas, em compensação, podia facilmente acostumar-me a despertar de hora a hora durante todo o tempo consagrado ao repouso. Bastavam cinco minutos para renovar completamente o ar. A única dificuldade real consistia em inventar um processo para despertar no momento preciso. Era este o problema cuja resolução se impunha. 
«Conhecia o caso daquele estudante que, para evitar adormecer sobre os livros, tinha na mão direita uma bola de cobre, cuja queda num recipiente do mesmo metal, posto ao lado da cadeira, servia para o despertar sobressaltado apenas se deixasse vencer pelo sono. O meu caso era bastante diferente do seu, porque eu não desejava ficar acordado mas despertar a intervalos regulares. Desta maneira ocorreu-me a seguinte combinação que, por muito simples que pareça, considerei, no momento em que a descobri, de uma importância só comparável às invenções do telescópio, da máquina a vapor e até da imprensa.
«É preciso não esquecer que o balão, à altura a que tinha chegado, continuava subindo em linha reta com perfeita regularidade, e que, por conseguinte, a barquinha seguia sem sofrer a mais ligeira oscilação. Esta circunstância favoreceu grandemente o meu plano. A provisão de água ia em barris de cinco galões cada um, solidamente presos ao interior da barquinha. Separei um desses barris, e, agarrando nas cordas, prendi-as fortemente de um extremo ao outro do bordo da barquinha, paralelamente e à distância de um pé uma da outra. Deste modo formavam uma espécie de suporte ou assento, sobre o qual coloquei o barril, obrigando-o a conservar uma posição horizontal. A oito polegadas aproximadamente abaixo dessas cordas, e a quatro pés do fundo da barquinha, pus uma tabuazinha e, por cima desta, justamente por baixo do barril, coloquei uma panela de barro. Fiz então um buraco no fundo do barril, por cima da panela, e pus uma estilha de forma cônica no buraco, metendo-a e tirando-a até que se adaptou o suficiente para que a água, ao filtrar-se pela ranhura e ao cair na panela, a enchesse até à borda num espaço de sessenta minutos. Conseguido isto, já se adivinha o resto. Como a cama estava situada no fundo da barquinha de maneira que a minha cabeça ficasse imediatamente por baixo da panela, era indubitável que esta, ao transbordar, ao fim de uma hora, de uma altura de mais de quatro pés, a água me cairia na cara, do que resultaria eu acordar instantaneamente, embora estivesse no mais profundo dos sonos. 
«Cerca das onze, terminei a instalação e deitei-me logo, cheio de confiança na eficácia do meu invento. Não eram descabidas as minhas esperanças. Todos os sessenta minutos era pontualmente despertado pelo meu fiel cronômetro. Esvaziava então o conteúdo da panela na abertura superior do barril, fazia funcionar o condensador e metia-me outra vez na cama. Estas interrupções regulares no sono causaram-me muito menos fadiga do que eu esperava, e quando, por fim, me levantei, para já não me deitar, eram sete da manhã; o sol atingia já alguns graus por cima da linha do meu horizonte

«3 de abril. — O balão chegou a uma imensa altura e a convexidade da Terra manifesta-se de maneira surpreendente. No oceano vê-se uma série de pontos negros que, indubitavelmente, devem ser ilhas. Por cima de mim o céu tem uma cor negra de azeviche e as estrelas cintilam muito visíveis. Muito longe, para o Norte, vejo no fim do horizonte uma linha branca e excessivamente brilhante, que deve ser o limite do mar Ártico. Fiquei surpreendido porque supunha ter avançado muito mais para o Norte e encontrar-me possivelmente por cima do próprio Polo. Deplorei então que a enorme altura a que estava me impedisse de fazer um exame detalhado. Tinha, no entanto, algumas observações a fazer não menos interessantes. 
«Durante esse dia não aconteceu nada de extraordinário. O meu aparelho funcionava regularmente e o balão subia sem oscilações. O frio era intenso e obrigou-me a pôr o sobretudo. Quando as trevas cobriram a Terra, deitei-me, embora restassem ainda, para mim, muitas horas de dia claro. O relógio hidráulico cumpria pontualmente o seu dever e eu dormi sem novidade até ao dia seguinte, salvo as periódicas interrupções.

«4 de abril. — Levanto-me em bom estado de saúde e de excelente humor. Espanta-me imenso a singular mudança que se verifica no aspeto do mar. Perdeu em grande parte o tom azul profundo que tinha até agora e tem, em troca, uma cor branca e acinzentada de um brilho deslumbrador. A convexidade do oceano é já tão evidente que a massa inteira das suas águas longínquas parece precipitar-se no abismo do horizonte, e cheguei a apurar o ouvido porque me parecia escutar o eco da terrível catarata. 
«As ilhas já não são visíveis, ou porque tenham ficado para trás do horizonte, para Sudoeste, ou porque a minha crescente elevação as tenha deixado mais longe que o alcance da minha vista. Inclino-me mais para esta última hipótese. O campo de gelo que há para o Norte é cada vez mais visível. O frio perdeu muito da sua intensidade. 
«Não me lembro de mais nada importante e passo o dia lendo, porque não me esqueci de fazer uma provisão de livros.

«5 de abril. — Contemplei o singular fenômeno do nascimento do Sol, ao mesmo tempo que toda a superfície visível da Terra permanece coberta de trevas. Pouco a pouco a luz começa a estender-se sobre todas as coisas e volto a ver a linha nórdica dos gelos. Agora é muito mais distinta e parece de tom mais escuro que as águas do oceano. 
«Não há dúvida de que me aproximo dela com grande rapidez. Creio distinguir uma faixa de terra para Este e outra para Oeste, mas não posso verificá-lo. Temperatura moderada. Não me acontece nada de importante. Deito-me cedo.

«6 de abril. — Fico surpreendido ao ver a faixa de gelo bastante próxima, e é indubitável que, se o balão conservar a sua direção, não tardarei a passar por cima do oceano boreal e do Polo. Durante o dia, aproximo-me cada vez mais dos gelos. 
«Próximo da noite, os limites do horizonte ampliaram-se súbita e sensivelmente, devido à forma do nosso planeta, que é a de um esferoide achatado, e porque passava naquele momento por cima das regiões vizinhas do círculo ártico. Deitei-me tarde, quando já as trevas me invadiam por completo, e meti-me na cama com grande ansiedade, temendo passar por cima de uma coisa tão digna de curiosidade sem a poder observar a meu gosto.

«7 de abril. — Levanto-me muito cedo e, com grande alegria, contemplo o que não hesito em considerar o Polo Norte. Estava, sem dúvida, por baixo de mim, mas — ai! — era demasiada a altura a que me encontrava para o poder distinguir suficientemente. Na verdade, a julgar pela progressão das cifras indicadoras das diferentes alturas, em diversos momentos, desde o dia 2 de abril, às seis horas da manhã, até às nove horas menos vinte da mesma manhã, quando o mercúrio desceu para o recipiente barométrico, tenho motivos para supor que o baião alcança hoje, 7 de abril, às quatro da manhã, uma altura não inferior a 7254 quilômetros acima do nível do mar. 
«Talvez pareça enorme esta elevação, mas, se se tiver em conta aquilo sobre que se baseia, veremos que se trata de um resultado bastante inferior à realidade. De qualquer fornia, tinha incontestavelmente debaixo de mim a totalidade do maior diâmetro terrestre. Todo o hemisfério norte se estendia a meus pés como um mapa e o grande círculo do Equador formava a linha fronteiriça do meu horizonte. 
«Compreenderão assim Vossas Excelências que aquelas regiões inexploradas até agora, e confinadas nos limites do círculo ártico, estavam demasiado longe de mim para que consentissem um exame mais minucioso. 
«Não obstante isso, gozava um espetáculo cheio de interesse. Nos bordos desse imenso limite da exploração humana existe sem interrupção, ou quase sem interrupção, uma planície de gelo. Na sua orla, a superfície deste mar de gelo mergulha sensivelmente; depois parece plana, para se tornar singularmente côncava, e por fim termina no próprio Polo numa cavidade central circular, cujos bordos claramente definidos e cujo diâmetro aparente formavam, em relação ao balão, um ângulo de seis segundos. Quanto à cor, era escura, de um negro de intensidade diferente, mas mais sombria que a de qualquer outro ponto do hemisfério visível, e chegando às vezes quase ao negro absoluto. 
«Ao meio-dia, a circunferência deste buraco central tornou-se sensivelmente mais pequena e, às sete da tarde, perdi-a completamente de vista. O balão cruzava então a parte oeste dos céus e fugia rapidamente em direção ao Equador.

«8 de abril. — Noto sensível diminuição no diâmetro aparente da Terra, sem falar na acentuada alteração na sua cor e aspetos gerais. Toda a superfície visível participa agora, com diferentes gradações, do tom amarelo pálido e, em alguns lugares, tem uma luminosidade quase dolorosa para os olhos. Incomoda-me a vista a densidade atmosférica e o montão de nuvens próximas da superfície. Com muita dificuldade posso, de vez em quando, e através da massa de nuvens, distinguir o planeta. De há quarenta e oito horas para cá, o obstáculo dos enormes grupos flutuantes de vapor é cada vez mais invencível. No entanto, posso aperceber-me de que o balão plana agora por cima dos grandes lagos da América do Norte, mas dirigindo-se para o Sul, ou seja para os trópicos. 
«Não me deixa de causar satisfação tal circunstância e saúdo-a como feliz presságio do êxito final. Realmente, a direção anterior causava-me preocupações, e se a tivesse seguido muito tempo não poderia chegar à Lua, cuja órbita apenas se inclina sobre a eclíptica num pequeno ângulo de cinco graus, oito minutos e quarenta e oito segundos. «Por estranho que possa parecer, só então compreendi o grande erro cometido não efetuando a minha partida de outro ponto terrestre situado no plano da elipse lunar.

«9 de abril. — Hoje, o diâmetro da terra diminui enormemente e a sua superfície adquire de hora a hora um tom amarelo cada vez mais profundo. O balão foge a direito para o Sul e chega, às nove horas da noite, por cima da costa norte do Golfo do México.

«10 de abril. — Sinto-me bruscamente despertado cerca das cinco da manhã por um estrondo terrível, cuja origem não pude descobrir. Foi de curta duração, mas nenhum ruído terrestre pode dar ideia da sua intensidade. 
«Inútil é dizer que me alarmei excessivamente, porque a princípio o atribuí a um rasgão no balão. Examinei-o cuidadosamente, sem lhe encontrar nenhuma avaria. Passei a maior parte do dia meditando sobre um acidente tão extraordinário sem lhe encontrar explicação. Por fim, deitei-me num estado de ansiedade extraordinária.

«11 de abril. — Noto uma diminuição sensível no diâmetro aparente da Terra, e aumento considerável, observável pela primeira vez, no da Lua próxima da sua plenitude. É cada vez maior e mais penosa a tarefa de condensar na câmara a quantidade de ar atmosférico suficiente para a vida.

«12 de abril. — Singular mudança na direção do balão, que nem por ser inesperada me causou menos prazer. Chego ao paralelo vinte de latitude Sul e o balão volta bruscamente para Este em ângulo agudo e segue esta direção durante todo o dia, sustentando-se no plano exato da elipse lunar. 
«É digno de observar-se que esta mudança de direção ocasionou uma oscilação muito sensível na barquinha, oscilação que durou muitas horas com maior ou menor intensidade.

«13 de abril. — Tornou a alarmar-me a repetição daquele espantoso ruído que me aterrou no dia 10. Volto também a meditar sobre ele, sem chegar a uma solução satisfatória. Maior decrescimento do diâmetro terrestre. Quanto à Lua, é-me impossível vê-la porque permanece sobre mim. Marcho sempre no mesmo plano elíptico, mas progrido pouco para Este.

«14 de abril. — Diminuição excessivamente rápida do diâmetro terrestre. Impressiona-me a ideia de que o balão corre agora sobre a linha dos apsides elevando-se para o perigeu. Mais claramente: que segue a direito a estrada que deverá conduzir-me à Lua na parte da sua órbita mais próxima da Terra.
«A Lua está justamente por cima do balão e oculta, portanto, da minha vista. Continua o penoso trabalho indispensável para a condensação do ar atmosférico.


«15 de abril. — Já não posso sequer distinguir sobre o planeta os contornos dos continentes e dos mares. Cerca do meio-dia, surpreende-me pela terceira vez o pavoroso estrépito. No entanto, desta vez dura mais tempo que das anteriores e tem maior intensidade. E quando, já estupefacto, quase enlouquecido de terror, esperava não sei que horrível destruição, a barquinha oscilou com violência extrema, e uma massa ígnea, cuja matéria não tive tempo de distinguir, passou ao lado do balão, gigantesca e inflamada, rugindo com a voz de mil trovões. 
«Quando o meu terror diminuiu um pouco, supus naturalmente que devia ser um enorme fragmento vulcânico vomitado por esse mundo de que me aproximo, e segundo todas as probabilidades um pedaço de uma dessas substâncias singulares que algumas vezes caem sobre a terra e que se chama aerólitos, à falta de outro nome mais próprio.

«16 de abril. — Olhando hoje para cima o melhor que pude, por cada uma das janelas laterais, alternativamente, vi com grande satisfação uma pequeníssima parte do disco lunar que sobressaía da ampla circunferência do balão. A minha agitação exacerbou-se até ao último extremo, porque agora estava certo de que chegaria depressa ao fim da minha perigosa viagem. 
«O trabalho exigido pelo condensador aumentara a ponto de ser uma verdadeira obsessão, e não me deixava descanso algum. Já nem sequer me preocupava com dormir; estava realmente doente e esgotado. A natureza humana não pode suportar longo tempo uma tal intensidade de dor como a que eu sofria. 
«Novamente cruzou comigo, quase roçando o balão, outra pedra meteórica. A frequência destes fenômenos começa a inquietar-me.


Continua...



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Edgar Allan Poe (nascido Edgar Poe; Boston, Massachusetts, Estados Unidos, 19 de Janeiro de 1809 — Baltimore, Maryland, Estados Unidos, 7 de Outubro de 1849) foi um autor, poeta, editor e crítico literário estadunidense, integrante do movimento romântico estadunidense.[1][2] Conhecido por suas histórias que envolvem o mistério e o macabro, Poe foi um dos primeiros escritores americanos de contos e é geralmente considerado o inventor do gênero ficção policial, também recebendo crédito por sua contribuição ao emergente gênero de ficção científica.[3] Ele foi o primeiro escritor americano conhecido por tentar ganhar a vida através da escrita por si só, resultando em uma vida e carreira financeiramente difíceis.

Ele nasceu como Edgar Poe, em Boston, Massachusetts; quando jovem, ficou órfão de mãe, que morreu pouco depois de seu pai abandonar a família. Poe foi acolhido por Francis Allan e o seu marido John Allan, de Richmond, Virginia, mas nunca foi formalmente adotado. Ele frequentou a Universidade da Virgínia por um semestre, passando a maior parte do tempo entre bebidas e mulheres. Nesse período, teve uma séria discussão com seu pai adotivo e fugiu de casa para se alistar nas forças armadas, onde serviu durante dois anos antes de ser dispensado. Depois de falhar como cadete em West Point, deixou a sua família adotiva. Sua carreira começou humildemente com a publicação de uma coleção anônima de poemas, Tamerlane and Other Poems (1827).

Poe mudou seu foco para a prosa e passou os próximos anos trabalhando para revistas e jornais, tornando-se conhecido por seu próprio estilo de crítica literária. Seu trabalho o obrigou a se mudar para diversas cidades, incluindo Baltimore, Filadélfia e Nova Iorque. Em Baltimore, casou-se com Virginia Clemm, sua prima de 13 anos de idade. Em 1845, Poe publicou seu poema The Raven, foi um sucesso instantâneo. Sua esposa morreu de tuberculose dois anos após a publicação. Ele começou a planejar a criação de seu próprio jornal, The Penn (posteriormente renomeado para The Stylus), porém, em 7 de outubro de 1849, aos 40 anos, morreu antes que pudesse ser produzido. A causa de sua morte é desconhecida e foi por diversas vezes atribuída ao álcool, congestão cerebral, cólera, drogas, doenças cardiovasculares, raiva, suicídio, tuberculose entre outros agentes.

Poe e suas obras influenciaram a literatura nos Estados Unidos e ao redor do mundo, bem como em campos especializados, tais como a cosmologia e a criptografia. Poe e seu trabalho aparecem ao longo da cultura popular na literatura, música, filmes e televisão. Várias de suas casas são dedicadas como museus atualmente.


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Edgar Allan Poe

CONTOS

Originalmente publicados entre 1831 e 1849 






Edgar Allan Poe - Contos: Um Homem na Lua (01)

Edgar Allan Poe - Contos: Um Homem na Lua (02)

Edgar Allan Poe - Contos: Um Homem na Lua (03)

Edgar Allan Poe - Contos: Um Homem na Lua (04)

Edgar Allan Poe - Contos: Um Homem na Lua (06)


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