Diante da Dor dos Outros
2.
continuando...
Seja a foto entendida como um objeto ingênuo ou como a obra de um artífice experiente, seu significado — e a reação do espectador — depende de como a imagem é identificada ou erroneamente identificada; ou seja, depende das palavras. A ideia organizadora, o momento, o lugar e o público devotado fizeram dessa exposição uma notável exceção. A multidão de nova-iorquinos solenes que aguardavam em fila durante horas na Prince Street, todos os dias, no outono de 2001, para ver Aqui é Nova York não tinha necessidade de legendas. Tinha, a bem dizer, um excesso de compreensão do que estavam vendo, prédio a prédio, rua a rua — o fogo, os detritos, o medo, a desolação, a dor. Mas um dia, é claro, as legendas serão necessárias. E as leituras equivocadas e as recordações enganosas, e os novos usos ideológicos das fotos, farão sentir seu peso.
Normalmente, se existe alguma distância com relação ao tema, aquilo que uma foto “diz” pode ser lido de várias maneiras. Cedo ou tarde, lê-se na foto aquilo que ela deveria estar dizendo. Entremeie, numa longa tomada de um rosto completamente inexpressivo, imagens rápidas de um material tão discrepante como uma tigela de sopa fumegante, uma mulher dentro de um caixão e uma menina que brinca com um urso de brinquedo, e os espectadores — como demonstrou o primeiro teórico do cinema, Liev Kulechov, de forma memorável, no seu seminário, em Moscou, na década de 1920 — ficarão deslumbrados com a sutileza e a abrangência das expressões do ator. No caso de fotos paradas, usamos o que sabemos acerca do drama de que o objeto fotografado constitui uma parte. “Assembléia para distribuição de terras, Extremadura, Espanha, 1936”, a fotografia já muito reproduzida de David Seymour (“Chim”) de uma mulher macilenta, de pé, com um bebê no seio, olhando para cima (com atenção? com apreensão?), é muitas vezes referida como se mostrasse alguém que perscruta o céu à cata de aviões inimigos. A expressão do seu rosto e dos rostos em redor parece carregada de apreensão. A memória alterou a imagem, de acordo com as necessidades da memória, conferindo um caráter emblemático à foto de Chim não por aquilo que ela, em sua origem, mostrava (uma assembléia política ao ar livre, ocorrida quatro meses antes do início da guerra), mas por aquilo que pouco depois viria a ocorrer na Espanha e que teria uma enorme repercussão: ataques aéreos contra vilas e cidades, com o intuito puro e simples de destruí-las completamente, usados como arma de guerra pela primeira vez na Europa. Em pouco tempo, o céu passou a abrigar aviões que despejavam bombas sobre camponeses exatamente como aqueles da foto. (Olhe de novo para a mãe que amamenta seu bebê, para a sua testa franzida, seus olhos semicerrados, sua boca entreaberta. Ela ainda parece tão apreensiva? Não parece, agora, que tem os olhos semicerrados porque o sol bate de frente em seu rosto?)
As fotos que Woolf recebeu são encaradas como uma janela para a guerra: visões transparentes do tema em foco. Ela não tinha o menor interesse em que cada foto tivesse um “autor” — que as fotos representassem a visão de alguém —, embora tenha sido exatamente no fim da década de 1930 que se instituiu a profissão de produzir, por meio de uma câmera, um testemunho individual da guerra e das atrocidades da guerra. No passado, publicavam-se fotos de guerra sobretudo em jornais diários e semanais. (Os jornais já publicavam fotos desde 1880.) Então, em acréscimo às revistas populares mais antigas, fundadas no fim do século XIX, como National Geographic e Berliner Illustrierte Zeitung, que usavam fotos como ilustrações, surgiram revistas semanais de ampla circulação, em especial a francesa Vu (1929), a americana Life (em 1936) e a inglesa Picture Post (em 1938), inteiramente dedicadas a fotos (acompanhadas por textos curtos que remetiam às fotos) e a “histórias por imagens” — pelo menos quatro ou cinco fotos do mesmo fotógrafo interligadas por uma narrativa que dramatizava ainda mais as imagens. Num jornal, era a foto — em geral, havia só uma — que acompanhava a reportagem.
Ademais, quando publicada num jornal, a foto de guerra vinha cercada de palavras (a matéria que a foto ilustrava e outras matérias), ao passo que numa revista era mais provável que estivesse vizinha a uma imagem concorrente, que tentava vender alguma coisa. Quando a foto do soldado republicano tirada por Capa na hora exata da morte apareceu na revista Life em 12 de julho de 1937, ocupava a página direita inteira; ao lado, à esquerda, vinha um anúncio de página inteira de Vitalis, uma pomada de cabelo masculina, com uma pequena foto de alguém se exercitando no tênis e uma foto grande do mesmo homem de smoking branco ostentando na cabeça o cabelo lustroso, muito bem partido e escorrido. A vizinhança dessas duas páginas — em que cada emprego da câmera supõe a invisibilidade da foto ao lado — parece, hoje, não só bizarra mas também curiosamente datada.
continua pág 86...
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Leia também:
Susan Sontag - Na Caverna de Platão (01)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 1. (1)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 1. (2)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 1. (3)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 2. (1)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 2. (2)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 2. (4)
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para David
… aux vaincus!
Baudelaire
A sórdida mentora, a Experiência...
Tennyson
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Seja a foto entendida como um objeto ingênuo ou como a obra de um artífice experiente, seu significado — e a reação do espectador — depende de como a imagem é identificada ou erroneamente identificada; ou seja, depende das palavras. A ideia organizadora, o momento, o lugar e o público devotado fizeram dessa exposição uma notável exceção. A multidão de nova-iorquinos solenes que aguardavam em fila durante horas na Prince Street, todos os dias, no outono de 2001, para ver Aqui é Nova York não tinha necessidade de legendas. Tinha, a bem dizer, um excesso de compreensão do que estavam vendo, prédio a prédio, rua a rua — o fogo, os detritos, o medo, a desolação, a dor. Mas um dia, é claro, as legendas serão necessárias. E as leituras equivocadas e as recordações enganosas, e os novos usos ideológicos das fotos, farão sentir seu peso.
Normalmente, se existe alguma distância com relação ao tema, aquilo que uma foto “diz” pode ser lido de várias maneiras. Cedo ou tarde, lê-se na foto aquilo que ela deveria estar dizendo. Entremeie, numa longa tomada de um rosto completamente inexpressivo, imagens rápidas de um material tão discrepante como uma tigela de sopa fumegante, uma mulher dentro de um caixão e uma menina que brinca com um urso de brinquedo, e os espectadores — como demonstrou o primeiro teórico do cinema, Liev Kulechov, de forma memorável, no seu seminário, em Moscou, na década de 1920 — ficarão deslumbrados com a sutileza e a abrangência das expressões do ator. No caso de fotos paradas, usamos o que sabemos acerca do drama de que o objeto fotografado constitui uma parte. “Assembléia para distribuição de terras, Extremadura, Espanha, 1936”, a fotografia já muito reproduzida de David Seymour (“Chim”) de uma mulher macilenta, de pé, com um bebê no seio, olhando para cima (com atenção? com apreensão?), é muitas vezes referida como se mostrasse alguém que perscruta o céu à cata de aviões inimigos. A expressão do seu rosto e dos rostos em redor parece carregada de apreensão. A memória alterou a imagem, de acordo com as necessidades da memória, conferindo um caráter emblemático à foto de Chim não por aquilo que ela, em sua origem, mostrava (uma assembléia política ao ar livre, ocorrida quatro meses antes do início da guerra), mas por aquilo que pouco depois viria a ocorrer na Espanha e que teria uma enorme repercussão: ataques aéreos contra vilas e cidades, com o intuito puro e simples de destruí-las completamente, usados como arma de guerra pela primeira vez na Europa. Em pouco tempo, o céu passou a abrigar aviões que despejavam bombas sobre camponeses exatamente como aqueles da foto. (Olhe de novo para a mãe que amamenta seu bebê, para a sua testa franzida, seus olhos semicerrados, sua boca entreaberta. Ela ainda parece tão apreensiva? Não parece, agora, que tem os olhos semicerrados porque o sol bate de frente em seu rosto?)
As fotos que Woolf recebeu são encaradas como uma janela para a guerra: visões transparentes do tema em foco. Ela não tinha o menor interesse em que cada foto tivesse um “autor” — que as fotos representassem a visão de alguém —, embora tenha sido exatamente no fim da década de 1930 que se instituiu a profissão de produzir, por meio de uma câmera, um testemunho individual da guerra e das atrocidades da guerra. No passado, publicavam-se fotos de guerra sobretudo em jornais diários e semanais. (Os jornais já publicavam fotos desde 1880.) Então, em acréscimo às revistas populares mais antigas, fundadas no fim do século XIX, como National Geographic e Berliner Illustrierte Zeitung, que usavam fotos como ilustrações, surgiram revistas semanais de ampla circulação, em especial a francesa Vu (1929), a americana Life (em 1936) e a inglesa Picture Post (em 1938), inteiramente dedicadas a fotos (acompanhadas por textos curtos que remetiam às fotos) e a “histórias por imagens” — pelo menos quatro ou cinco fotos do mesmo fotógrafo interligadas por uma narrativa que dramatizava ainda mais as imagens. Num jornal, era a foto — em geral, havia só uma — que acompanhava a reportagem.
Ademais, quando publicada num jornal, a foto de guerra vinha cercada de palavras (a matéria que a foto ilustrava e outras matérias), ao passo que numa revista era mais provável que estivesse vizinha a uma imagem concorrente, que tentava vender alguma coisa. Quando a foto do soldado republicano tirada por Capa na hora exata da morte apareceu na revista Life em 12 de julho de 1937, ocupava a página direita inteira; ao lado, à esquerda, vinha um anúncio de página inteira de Vitalis, uma pomada de cabelo masculina, com uma pequena foto de alguém se exercitando no tênis e uma foto grande do mesmo homem de smoking branco ostentando na cabeça o cabelo lustroso, muito bem partido e escorrido. A vizinhança dessas duas páginas — em que cada emprego da câmera supõe a invisibilidade da foto ao lado — parece, hoje, não só bizarra mas também curiosamente datada.
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Leia também:
Susan Sontag - Na Caverna de Platão (01)
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Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 2. (1)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 2. (2)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 2. (4)
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"Quando o mundo estiver unido
na busca do conhecimento, e
não mais lutando por dinheiro e
poder, então nossa sociedade
poderá enfim evoluir a um novo
nível."
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"... conversar me dá a chance de saber o que penso..."
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