quinta-feira, 7 de outubro de 2021

Úrsula - VIII Luísa B. (1)

 Maria Firmina dos Reis


Úrsula



VIII - Luísa B. 



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O dia ia já alto quando Úrsula entrou no quarto de sua mãe, e esta admirada de não vê-la logo ao amanhecer, como de costume, começava a inquietar-se, e por isso estendeu-lhe os braços com transporte de indizível satisfação, e disse-lhe: — Dormiste hoje muito, minha cara Úrsula, e eu julguei que me tinhas esquecido.

Suposto a voz de Luísa nada tivesse de repreensiva, todavia Úrsula corou de envergonhada e, ao mesmo tempo, o remorso lhe errou na alma.

— Deus meu! Perdoai-me – disse consigo, e correu com os braços abertos para abraçar sua carinhosa mãe, que lhe sorriu.

— É verdade, minha mãe, demorei-me muito; mas haveis de desculpar-me. Achei-me incomodada durante a noite, e foi-me preciso respirar o ar fresco da manhã para restabelecer as forças.

— Ah, minha filha! – tornou a senhora B., querendo atrair Úrsula aos seus braços, a qual afetada pelo primeiro remorso, receava algum tanto lançar-se nos braços maternos – Vem abraçar-me... que tão ansiosa estava por ver-te!

Então a tímida menina, vencendo a sua perturbação, lançou-se com júbilo no seio de sua mãe, e soluços mal sufocados lhe rebentaram do peito.

Luísa B. mal podia compreendê-la, e olhava-a enternecida. Pouco e pouco convencida de que o seu penoso estado era a única causa de tão sentido choro, que outro motivo não podia ela descobrir, procurou serenar a extremosa filha, chamando sua atenção para outro objeto, e disse-lhe:

— Enxuga, minha Úrsula, as tuas lágrimas, não vês que eu não choro? – e procurava sorrir-se; mas era um riso amargo; porque o coração não estava isento de dores.

— Minha filha – continuou afetando tranquilidade – o nosso hóspede intenta deixar-nos hoje: pediu que me queria ser apresentado, e eu te aguardava para fazer-lhe as honras desta pobre casa.

Úrsula levou o lenço ao rosto por um movimento rápido, Luísa julgou que ela procurava daí extinguir o vestígio das suas lágrimas; mas a donzela ocultava o rubor subitâneo, que lhe tingia as faces, ouvindo sua mãe falar do homem, que lhe ocupava a alma, e por disfarçar a sua comoção disse distraidamente:

— E o nosso Túlio, que também se vai?!...

— É verdade! – tornou a pobre paralítica – e a nossa casa vai-se tornando cada vez mais isolada e triste!

Úrsula deixou descair os olhos para a terra, e reprimiu magoado suspiro por amor de sua mãe.

E um profundo silêncio reinou no quarto da doente; porque cada uma dessas duas mulheres se abandonava a seus pensamentos. Luísa sem dúvida ocupava-se só do porvir de sua filha; esta pelo contrário recordava as doces expressões do cavaleiro, seus votos de amor, e sentia pesar por vê-lo partir. Contudo Úrsula tinha já uma esperança que lhe dava forças para arrostar as dores da vida: amava, e tinha a convicção de ser amada.

E ela meditava na breve mudança da sua vida, e sentia o coração palpitar com estranho desassossego.

Depois o silêncio foi interrompido pelo anúncio da chegada do mancebo.

— Ei-lo – disse a moça a sua mãe, que se tinha imergido em tristes reflexões, e não ouvira pronunciar o nome de seu hóspede – e levantou-se para ir ao seu encontro.

— Úrsula, – exclamou a enferma como quem acordava de um pesado sono – aonde vais? A moça compreendeu que sua mãe muito sofria, e com meiguice chegou-se a ela e disse-lhe:

— É o nosso hóspede, minha mãe.

— Ah! – exclamou então a infeliz senhora, caindo em si – sejais bem- -vindo, senhor. Esperava por vós. E o mancebo transpunha o liminar da porta.

— Perdoai a frieza desta recepção, – continuou – sou uma pobre paralítica; mas a honra, que me fazeis, e que aparentemente mal posso corresponder, ficará gravada profundamente em meu coração. Entrai, senhor.

E Úrsula, trêmula de pejo e de amor, guiava-o para o leito de sua mãe.

O mancebo ressentia-se ainda dos efeitos de uma longa enfermidade; e o seu rosto conservava mórbida palidez, que nessa hora sobressaía-lhe, aumentando a gravidade de seu porte, em presença dessa mulher, que semelhava o próprio sofrimento.

E ele entrou; mas ao aproximar-se do leito de Luísa B., uma comoção de pesar lhe feriu a alma. É que nesse esqueleto vivo, que a custo meneava os braços, o mancebo não podia descobrir sem grande custo os restos de uma penosa existência, que se finava lenta e dolorosamente.

Estremeceu de compaixão ao vê-la; porque em seu rosto estavam estampados os sofrimentos profundos, pungentes e inexprimíveis da sua alma. E os lábios lívidos e trêmulos, e a fronte pálida, e descarnada, e os olhos negros, e alquebrados diziam bem quanta dor, quanto sofrimento lhe retalhava o peito.

Luísa B. fora bela na sua mocidade, e ainda no fundo da sua enfermidade podiam descobrir-se leves traços de uma passada formosura.

Úrsula herdara as doces feições de sua mãe. Então o mancebo contemplou-a com religioso respeito, e o que sentiu em presença desse leito de tão apuradas dores mal poderia dizer.

Semelhava um cadáver a quem o galvanismo emprestara movimento limitado às extremidades superiores, mirradas e pálidas, e brilho a uns olhos negros, mas encovados.

Venceu a sua perturbação, e chegando-se à mãe de Úrsula estendeu-lhe a mão, que ela apertou com efusão, tanto quanto lhe permitiam suas débeis forças.

Essa mão era leal e generosa, e Luísa B. sentiu-se comovida; porque era a primeira pessoa que a visitava em sua triste morada, e que em face de sua enfermidade a não desdenhava, nem sentia repugnância da sua miséria e do seu penoso estado. E por isso disse com reconhecimento que tocou o mancebo.

— O céu vos proteja, senhor; porque sois generoso e bom. E quereis partir? – acrescentou com benevolência.

— Sim, senhora – tornou-lhe o cavaleiro com voz firme; mas magoada por aí lhe ficar parte do coração – o dever me chama. Acho-me restabelecido, e não devo por mais tempo abusar da vossa bondade. Com desvelo e carinho, e sem que eu o merecesse tendes me dado um novo existir, venho pois protestar-vos minha gratidão. Se algum dia – continuou depois de breve pausa – as vicissitudes da sorte vos obrigarem a recorrer a alguém, esse alguém seja eu; porque, senhora, jamais me esquecerei da franqueza e da bondade com que me acolhestes.

— Sim, senhor – redarguiu a enferma – creio em vós; porque sois generoso e bom: o fostes para com Túlio, sê-lo-eis também para comigo: mas...

E olhou para sua filha, que pálida e perturbada como a flor na ardentia da sesta, descaída a face nas mãos, estava à sua cabeceira, e suspendeu-se.

Luísa B. queria dizer: — eu peço para mim nada mais que a sepultura; mas se sois cavaleiro, se tendes virtude na alma, protegei essa pobre órfã. Mas aquele homem era-lhe desconhecido, e a ideia de sua próxima morte ia despertar em Úrsula sentimentos dolorosos. A pobre mulher calou-se.

— Falai, minha querida senhora – apressou-se o mancebo em dizer, reparando nessa penosa reticência – falai, não sabeis que nutro satisfação em escutar-vos?

— Ah! Senhor – exclamou Luísa B. reprimindo amarguradas lágrimas – sou tão desditosa, que falando de mim, só poderia dizer-vos coisas tão tristes e fastidiosas, que vos cansaríeis de as ouvir.

— Pelo contrário, – disse o mancebo – grande é o interesse, que me inspirais: quaisquer que sejam as vossas desditas, e por mais longa que seja a narração delas, eu as escutarei, e tomarei por elas todo o interesse.

— Sem dúvida, minha pobre Úrsula, tinhas razão quando, tocada pelo generoso proceder do vosso hóspede, me falavas de suas bondades, e de seus delicados pensamentos.

Então o mancebo inclinou-se para a donzela em sinal de gratidão, e viu- -lhe pender dos olhos uma lágrima, que do fundo do coração lhe arrancava a saudade de tão forçada separação.

Essa lágrima transportou de amor ao jovem adorador da filha do deserto, e ele desejou bebê-la em um longo e ardente beijo, e seu coração jurou de novo que aquela mulher angélica seria a doce companheira da sua peregrinação na terra. E quando ela houver deixado de existir, acrescentava ele em seu sonhar delicioso, eu a seguirei na campa, e lá numa outra vida, onde tudo é amor, pureza, e santidade, lá, redobrando de amor e de ternura, viveremos unidos para sempre.

E a senhora B., notando que seu hóspede estava comovido, e atribuindo ao exórdio da sua conversão a comoção do mancebo, apressou-se em dizer-lhe:

— Perdoai-me, senhor; uma pobre mulher enregelada pela doença, e pela morte, que se lhe aproxima, deve falar com toda a franqueza, e demais, a sensibilidade do meu coração ainda existe, e o céu permitiu-me simpatizar com as ações nobres, e desinteressadas. Eu amei, senhor, o vosso procedimento.

— Obrigado! Minha senhora. – murmurou o mancebo inclinando-se.

— Continuai, eu vos escuto.

— Há doze anos – começou Luísa B. suspirando aquele suspiro que vem do fundo da alma, não para comover a outrem, e captar a sua atenção, ou a sua bondade; mas aquele suspiro que é o momentâneo, mas triste alívio de um sofrimento apurado e baldo de toda esperança. – Há doze anos que arrasto a custo esta penosa existência. Deus conhece o sacrifício, que hei feito para conservá-la. Parece-vos isto incompreensível? – interrogou ela ao mancebo, que atento a escutava. – Sou mãe, senhor! Vede minha pobre filha! É um anjo de doçura e de bondade, e abandoná-la, e deixá-la só sobre este mundo, que ela mal conhece, é a maior dor de quantas dores hei provado na vida. Sim, é a maior dor – continuou ela com amargo acento – porque então perderá o único apoio que ainda lhe resta! Ao menos se meu irmão pudesse esquecer o seu ódio, e protegê-la!...



continua pág 71...

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Maria Firmina dos Reis nasceu em São Luís, no Maranhão, no dia 11 de outubro de 1825. Filha bastarda de João Pedro Esteves e Leonor Felipe dos Reis. Foi uma escritora brasileira, considerada a primeira romancista brasileira.

Em 1847, aos 22 anos, ela foi aprovada em um concurso público para a Cadeira de Instrução Primária, sendo assim a primeira professora concursada de seu Estado. Maria demonstrou sua afinidade com a escrita ao publicar “Úrsula” em 1859, primeiro romance abolicionista, primeiro escrito por uma mulher negra brasileira.

O romance “Úrsula” consagrou Maria Firmina como escritora e também foi o primeiro romance da literatura afro-brasileira, entendida esta como produção de autoria afrodescendente. Em 1887, no auge da campanha abolicionista, a escritora publica o livro “A Escrava”, reforçando sua postura antiescravista.

Ao aposentar-se, em 1880, fundou uma escola mista e gratuita. Maria morre aos 92 anos, na cidade de Guimarães, no dia 11 de novembro de 1917.

Em 1975, Maria recebe uma homenagem de José Nascimento Morais Filho que publica a primeira biografia da escritora, Maria Firmina: fragmentos de uma vida.

A importância da obra de Firmina, primeira escritora negra de que se tem notícia em nossa literatura, se deve ao pioneirismo na denúncia da opressão a negros e mulheres no Brasil do século XIX. Antes do Navio negreiro de Castro Alves, declamado pela primeira vez em 1868, Firmina já descrevia em seu livro Úrsula, de 1859, a crueldade do tráfico de pessoas sequestradas na África e transportadas nos porões dos “tumbeiros”. Neste mesmo romance, a crítica da escritora abrange o retrato lamentável da condição feminina da época ao delinear personagens como o pai de Tancredo ou o comendador, tiranos não só de escravos, mas também de mulheres. 

Maria Firmina foi uma voz profundamente legítima e dissonante que não encontrou acolhida e reconhecimento em seu tempo. Longe de fracassar, essa voz ressoa hoje cheia de significado, recriminando males que ainda assombram e permeiam nossa sociedade.

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Úrsula - VIII Luísa B. (1)


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