domingo, 5 de junho de 2022

Edgar Allan Poe - Contos: Ligeia (2)

Edgar Allan Poe - Contos




Ligeia
Título original: Ligeia
Publicado em 1838



Há nisto uma vontade que não morre. Quem
conhece os mistérios da vontade e a sua força?
Porque Deus não é mais que uma grande
vontade, penetrando todas as coisas com a
intensidade que lhe é própria. O homem só
cede aos anjos e só se submete por completo à
morte pela fraqueza da sua pobre vontade.
— Joseph Glanville


continuando...


Não conheço forma para exprimir a feroz resistência que ela desenvolveu nas suas lutas com a Sombra. Eu gemia de angústia ao presenciar aquele lamentável espetáculo. Desejaria acalmá-la, esgotar todos os raciocínios, mas perante a intensidade selvagem do seu desejo de viver — de viver, nada mais do que viver — qualquer consolação e qualquer raciocínio seriam o cúmulo da loucura.
No entanto, até ao último momento, no meio das torturas e das convulsões do seu espírito, não desmentiu um só instante a aparente lucidez da sua conduta.
A sua voz tornava-se mais doce, mais profunda, e eu ficava, extasiado a ouvir essa melodia sobre-humana, na qual havia ambições e aspirações que a humanidade não conheceu antes dela. Tive sempre a certeza absoluta da sua ternura e de que, num peito como o seu, o amor era uma paixão avassaladora ; mas só perto da morte compreendi toda a força e toda a grandeza do seu carinho. Passava longas horas com as mãos nas minhas, desafogando o coração demasiado cheio e cujo amor por mim chegava até à idolatria. Ignoro o que fiz para merecer as suas confissões. Ignoro também qual foi o meu delito para que me castigassem arrebatando-me a minha adorada naqueles doces instantes. Não posso alargar-me muito sob este ponto. Só direi que no abandono mais que feminino de Ligeia a um amor não merecido e, no entanto, concedido gratuitamente, reconheci por fim a razão da sua ardente, da sua selvagem dor por abandonar a vida tão precocemente. Não poderia descobrir esse ardor desordenado, essa veemência no seu desejo de viver, apenas na vida.
Na noite da sua morte, chamou-me para junto do seu leito e obrigou-me a recitar uns versos que compusera uns dias antes. Obedeci:



Vejam a noite engalanada,
Depois de tantos anos desolados,
E esse coro angélico e alígero
Que oculta as suas lágrimas nos véus.
Sentai-vos no teatro para ver
Um drama de esperanças e temores
Enquanto a orquestra suspira
A música das esferas.
Os adores, tal como o deus que os criou,
Simulam as palavras, em silêncio,
E giram de um extremo a outro extremo
Como pobres bonecos que obedecem
Ao mandato dos seres invisíveis,
Os seres estranhos que os cenários mudam,
E que com asas de condor espalham
A desgraça invisível.
Oh, drama estranho que de ninguém
Poderá ser esquecido,
Com seu fantasma eternamente perseguido
E inatingível para a multidão!
Há um circulo que gira, gira sempre,
Sempre em torno, na mesma direção,
E muito de loucura e de pecado,
Que são os fios trágicos da intriga.
Mas olhem: através dos adores,
Um ser rasteja e no recinto entra,
Vermelho e ensanguentado ele contorce-se
E lá do fundo do cenário avança...
Como estremece!
Com que mortais ânsias,
Os adores em suas fauces se debatem!
E os serafins soluçam de tristeza.
Vendo que dos seus dentes
Escorre sangue humano.
Já se extinguem as luzes,
Já se apagaram todas,
E sobre a forma trágica e tremente
Desce como um sudário
O pano.
E eis que os anjos, soluçando pálidos,
Erguem-se e revelam
Que este drama é o Homem,
E o seu herói é o Verme.


— Meu Deus! — exclamou Ligeia soerguendo-se e estendendo os braços para o céu num movimento espasmódico quando terminei de recitar os versos. — Oh, meu Deus! Pai celestial! É possível que se cumpram irremissivelmente todas estas coisas? O verme não será nunca vencido? Não somos uma parte de Ti mesmo? Quem conhece os mistérios da vontade e a sua força? O homem só cede aos anjos e só se submete à morte pela fraqueza da sua pobre vontade.
E de súbito, esgotada pela comoção, deixou cair bruscamente os braços, e entre os seus últimos suspiros ouvi que saía dos seus lábios, como um murmúrio, o final do pensamento de Glanville: « O homem só cede aos anjos e só se submete à morte pela fraqueza da sua pobre vontade» .
Morreu. E eu, esmagado, pulverizado pela dor, não pude suportar muito tempo a espantosa desolação daquela casa na sombria cidade cheia de ruínas, das margens do Reno.
Não me faltava aquilo que o mundo chama fortuna. Além disso, Ligeia dera-me muito mais do que possui a maioria dos mortais. No entanto, passados alguns meses de uma vida de vagabundagem inútil, refugiei-me no fundo de uma abadia, cujo nome não direi, e que adquiri com o fim de me isolar numa das províncias mais incultas e menos frequentadas da bela Inglaterra. A sombria e triste grandeza do edifício, o aspecto quase selvagem dos arredores, as melancólicas e veneráveis recordações ligadas a ele, estavam de acordo com o sentimento de completo abandono da minha alma, que me obrigara a procurar aquela longínqua e solitária região.
Conservei à abadia o seu aspecto exterior, o seu caráter primitivo, e não quis arrancar sequer o musgo que lhe atapetava os muros arruinados. Mas tentei distrair-me, com infantil desejo, das minhas amarguras, espalhando dentro dela magnificências verdadeiramente régias.
Desde muito novo que tive certa tendência para o fausto e, agora, como consequência da minha dor, regressava aos meus primitivos sentimentos. Ai, de mim! Em todos aqueles esplêndidos e fantásticos tapetes, nas solenes esculturas egípcias, nas talhas medievais e nos móveis de extravagantes arabescos não era difícil descobrir um começo de loucura. O ópio tinha-me escravizado entre as suas garras, e os meus atos e as minhas ideias estavam como que impregnados da cor dos meus sonhos. Não esquecerei nunca aquele refúgio, mil vezes maldito, onde num momento de alienação mental tomei por esposa, depois da inolvidável Ligeia, a lady Rowena Trevanion de Tremaine, a da loura cabeleira e olhos azuis. Não esqueci nem um só pormenor daquela alcova nupcial que terei sempre presente ante os meus olhos. Como pôde a altiva família de minha noiva consentir que uma filha tão ternamente amada entrasse naquela casa decorada de tão estranha maneira?
Aquele quarto fazia parte de uma das torres da abadia, fortificada como um castelo, e tinha a forma de um pentágono de grandes dimensões. O lado sul do aposento era uma enorme e única janela formada por um imenso cristal de Veneza, de uma só peça e de cor sombria, que deixava passar o sol e a lua com sinistros fulgores. Por cima dessa enorme janela prolongavam-se os ramos de uma velha parreira abraçada e retorcida sobre os maciços da torre. O teto era de roble enegrecido pelo tempo, excessivamente alto e cheio de extravagantes arabescos, semigóticos e semidruídicos.
No centro do artesonado estava suspensa uma lâmpada de ouro. Tinha a forma de um incensório perfurado caprichosamente, de maneira que as luzes multicolores pareciam serpentinas. Algumas poltronas e candelabros orientais estavam dispersos pelo aposento e, no centro, ficava o leito nupcial, em estilo indiano, esculpido em ébano maciço e coberto por um baldaquino negro como o de uma câmara ardente. Em cada um dos cantos da alcova havia sarcófagos de granito negro, arrancados das augustas campas de Luxor e lavrados com primorosas esculturas. Mas onde a fantasia mais se manifestava era na tapeçaria. As paredes prodigiosamente altas, desproporcionadas até, estavam cobertas de cima abaixo com uma tapeçaria pesada, feita do mesmo tecido que recobria as poltronas, o baldaquino do leito e as sumptuosas cortinas que quase tapavam a janela. Era um tecido de ouro fino, bordado simetricamente com arabescos e grinaldas caprichosas, que se destacavam em negro sobre fundo doirado. Mas o que havia de curioso nesses desenhos era que, em virtude de um processo que já existia na mais remota antiguidade, mudavam de aspecto e de forma. Quando se entrava no aposento pareciam apenas simples e caprichosas monstruosidades; mas, à medida que se avançava, desaparecia gradualmente esta característica e o visitante via-se rodeado por uma multidão de formas inquietadoras como os cortejos macabros criados pela superstição nórdica ou como os desfiles diabólicos que perturbam os sonhos culposos dos frades. O efeito fantasmagórico dessas figuras de pesadelo aumentava com a passagem de uma corrente de ar contínua, provocada artificialmente, que vinha de trás dos estofos e os fazia ondular em movimentos assustadores.
Tal era a câmara nupcial daquela mansão, onde passei com Rowena Trevanion as ímpias horas do primeiro mês do nosso matrimónio. Devo confessar que não sentia demasiada inquietação; apercebia-me de que minha esposa era taciturna e não nutria grande amor por mim. Mas isso quase me divertia. Eu sentia por ela um ódio quase diabólico e pensava constantemente — e com que intensidade! — em Ligeia, a amada, a augusta, a bela, a morta. Era uma orgia de recordações: comprazia-me com evocar a sua pureza, a sua sabedoria, a sua elevada e etérea natureza, o seu amor apaixonado e idólatra. Consumia o meu espírito numa chama mais violenta que a que inflamou o seu. No entusiasmo dos meus sonhos de ópio gritava o seu nome em voz alta durante o silêncio da noite, durante o dia nos mais sombrios e recônditos refúgios do vale, como se a energia ressuscitasse a paixão solene, e o ardor do meu amor pela defunta pudessem fazê-la voltar àquela vida que abandonou; para sempre?
No começo do segundo mês do nosso casamento, lady Rowena caiu doente. Durante a noite aumentara-lhe a febre; no meio do delírio, falava de estranhos ruídos produzidos na alcova e que, sem dúvida, eram devidos às influências fantasmagóricas do mobiliário e da tapeçaria.
Mal se tinha restabelecido da sua enfermidade quando esta se agravou nova e subitamente, vendo-se obrigada a guardar o leito, e, desde então, todos os esforços da ciência foram inúteis para lhe devolver a saúde perdida. À medida que o seu mal, tornado crônico, aumentava, crescia nela uma irritação nervosa constante e uma excitação tal que as coisas mais vulgares adquiriam aos seus olhos um terrível aspecto. Nessa altura começou a falar, e cada vez com maior obstinação, em ruídos e movimentos insólitos atrás das cortinas.




continua na página 292...

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Edgar Allan Poe (nascido Edgar Poe; Boston, Massachusetts, Estados Unidos, 19 de Janeiro de 1809 — Baltimore, Maryland, Estados Unidos, 7 de Outubro de 1849) foi um autor, poeta, editor e crítico literário estadunidense, integrante do movimento romântico estadunidense. Conhecido por suas histórias que envolvem o mistério e o macabro, Poe foi um dos primeiros escritores americanos de contos e é geralmente considerado o inventor do gênero ficção policial, também recebendo crédito por sua contribuição ao emergente gênero de ficção científica. Ele foi o primeiro escritor americano conhecido por tentar ganhar a vida através da escrita por si só, resultando em uma vida e carreira financeiramente difíceis.
Ele nasceu como Edgar Poe, em Boston, Massachusetts; quando jovem, ficou órfão de mãe, que morreu pouco depois de seu pai abandonar a família. Poe foi acolhido por Francis Allan e o seu marido John Allan, de Richmond, Virginia, mas nunca foi formalmente adotado. Ele frequentou a Universidade da Virgínia por um semestre, passando a maior parte do tempo entre bebidas e mulheres. Nesse período, teve uma séria discussão com seu pai adotivo e fugiu de casa para se alistar nas forças armadas, onde serviu durante dois anos antes de ser dispensado. Depois de falhar como cadete em West Point, deixou a sua família adotiva. Sua carreira começou humildemente com a publicação de uma coleção anônima de poemas, Tamerlane and Other Poems (1827).
Poe mudou seu foco para a prosa e passou os próximos anos trabalhando para revistas e jornais, tornando-se conhecido por seu próprio estilo de crítica literária. Seu trabalho o obrigou a se mudar para diversas cidades, incluindo Baltimore, Filadélfia e Nova Iorque. Em Baltimore, casou-se com Virginia Clemm, sua prima de 13 anos de idade. Em 1845, Poe publicou seu poema The Raven, foi um sucesso instantâneo. Sua esposa morreu de tuberculose dois anos após a publicação. Ele começou a planejar a criação de seu próprio jornal, The Penn (posteriormente renomeado para The Stylus), porém, em 7 de outubro de 1849, aos 40 anos, morreu antes que pudesse ser produzido. A causa de sua morte é desconhecida e foi por diversas vezes atribuída ao álcool, congestão cerebral, cólera, drogas, doenças cardiovasculares, raiva, suicídio, tuberculose entre outros agentes.
Poe e suas obras influenciaram a literatura nos Estados Unidos e ao redor do mundo, bem como em campos especializados, tais como a cosmologia e a criptografia. Poe e seu trabalho aparecem ao longo da cultura popular na literatura, música, filmes e televisão. Várias de suas casas são dedicadas como museus atualmente.



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Edgar Allan Poe

CONTOS

Originalmente publicados entre 1831 e 1849


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